Ouçam-me bem, bando de snobs, vou falar-vos de um pintor que faz derreter a realidade como ninguém. Philippe Cognée não é simplesmente um artista talentoso, é um cirurgião da imagem, um piromaníaco pictórico que opera precisamente na junção onde o nosso mundo contemporâneo se dissolve na sua própria banalidade. Não é por acaso que este homem, armado com um ferro de engomar como outros empunham pincéis, se tornou um dos artistas franceses mais pertinentes da sua geração.
A sua técnica, absolutamente singular, assemelha-se a uma forma de sabotagem visual. Ele fotografa o mundo, projeta essas imagens numa tela, pinta-as meticulosamente com uma mistura de cera de abelha e pigmentos, depois, aqui vem o momento crítico, cobre tudo com um filme plástico que ataca com o ferro de engomar. O calor liquefaz a cera, deforma a imagem, e a realidade tão cuidadosamente reproduzida começa a derreter, a escorregar, a transformar-se num fantasma de si mesma. É como se Cognée tivesse inventado um dispositivo para mostrar a memória a apagar-se ao vivo.
Esta técnica não é apenas uma assinatura, é uma posição filosófica. Numa época em que as imagens nos bombardeiam até à asfixia, Cognée oferece-nos imagens que respiram, que sangram, que suam. Pensem nesses congeladores pintados nos anos 1990, esses monumentos brancos da vida doméstica transformados em túmulos fantasmagóricos. Ou esses supermercados, essas catedrais modernas onde comungamos em torno do capitalismo, tornados estranhos e quase abstratos pela sua visão. Cognée dissolve o quotidiano para revelar a poesia brutal, a inquietante fragilidade.
O que me leva à sua próxima exposição, “Paisagens fragmentadas”, na Galerie Templon de 8 de março a 10 de maio de 2025 em Paris. Após décadas a dissecar o nosso ambiente urbano, Cognée volta o olhar para as florestas, os campos e o mar. Mas não imaginem quadros de paisagens tranquilas, estas novas obras são arenas onde a natureza e a técnica, a permanência e a dissolução confrontam-se.
A arte de Cognée dialoga brilhantemente com a filosofia de Gaston Bachelard, para quem a matéria não é apenas um objeto, mas um parceiro ativo da imaginação criadora. Em La Psychanalyse du feu, Bachelard escreve que “o homem é um criador de fogo” [1]. Esta observação parece feita à medida para Cognée, cujo processo criativo utiliza literalmente o calor para transformar a matéria. Não é uma simples técnica, é uma metáfora viva da nossa relação com o mundo. Como nota Bachelard, o fogo é simultaneamente “íntimo e universal” [2], assim como os temas de Cognée oscilam entre o profundamente pessoal e o arquetípico coletivo.
Esta dialética da matéria está no coração da obra de Cognée. Quando pinta uma floresta, não é uma simples representação da natureza, mas uma exploração de como a natureza é já uma imagem na nossa cultura saturada de representações. A sua floresta é duplamente mediada: primeiro pelo aparelho fotográfico ou vídeo que utiliza para capturar a imagem original, depois pelo seu processo de deformação com cera. A natureza que emerge é estranha, inquietante, como vista através do vidro embaciado de uma civilização em sobreaquecimento.
Este processo de estranhamento recorda o que o filósofo Martin Heidegger chamava de “desvelamento”, a ideia de que a arte não representa simplesmente o mundo, mas o desvela de uma maneira nova. No seu ensaio “A Origem da Obra de Arte”, Heidegger defende que “a arte não é a reprodução do visível, mas torna visível” [3]. As obras de Cognée encarnam perfeitamente esta função: elas não reproduzem o nosso mundo, fazem-no visível de maneira diferente, sublinhando precisamente aquilo que já não vemos por o vermos em excesso.
Pegue na sua série “Carcaças” (2003), esses pedaços de carne suspensos, ao mesmo tempo repulsivos e fascinantes. Cognée transforma-os em monumentos orgânicos, em abstrações sangrentas que nos recordam o nosso próprio estatuto de seres de carne. A série forma uma espécie de arena onde o espetador se vê cercado por estes memento mori contemporâneos. Há aqui um confronto direto com a nossa mortalidade, mas também com as realidades brutais que a nossa civilização asséptica tenta esconder.
É aqui que o pensamento heideggeriano ressoa com a obra de Cognée: nesta recusa em aceitar o mundo tal como nos é apresentado diariamente. Ao desfocar a realidade, ao fazê-la derreter, Cognée convida-nos a vê-la verdadeiramente, talvez pela primeira vez. Como escreve Heidegger, “a verdade originária não é senão o desvelamento das coisas, o aparecimento do ser” [4], uma frase que poderia servir de manifesto para toda a obra de Cognée.
Esta busca por revelar o que se esconde sob a superfície das coisas é particularmente evidente na sua série “Paisagens vistas do comboio” (2013). Aqui, Cognée capta o mundo em alta velocidade, a partir das janelas de um TGV. O resultado não é uma simples representação desfocada de uma paisagem rápida, mas uma meditação sobre a própria perceção num mundo sempre em movimento. “Mais do que a imagem de uma paisagem, é a passagem do tempo da sua visão que restituto no meu quadro”, diz ele [5]. Esta observação é profundamente heideggeriana na sua compreensão da arte como revelação de uma verdade temporal, e não como reprodução simples de uma realidade estática.
Mas seria um erro ver Cognée apenas através do prisma da filosofia alemã. O seu trabalho está também profundamente enraizado na história da pintura, nomeadamente na tradição das vaidades. As suas flores murchas, essas peónias e amarílis capturadas no preciso momento em que a sua beleza começa a decompor-se, inserem-se nessa longa linhagem de memento mori. Mas, ao contrário das vaidades clássicas, que utilizavam símbolos codificados para evocar a morte, Cognée trabalha diretamente com a materialidade perecível do mundo.
As suas flores monumentais, expostas em 2020 em “Carne dei fiori” (Carne das flores), não são simplesmente representações da decomposição, mas encarnações desta na própria matéria pictórica. A cera que escorre, que se deforma, que se rasga em certos pontos, torna-se uma metáfora perfeita da vida orgânica na sua fragilidade. Como ele mesmo explica: “Estas flores murchas, chegadas ao fim da sua vida, remetem-nos para as nossas próprias existências frágeis e efémeras” [6].
Esta consciência aguda da fragilidade também se encontra na sua forma de abordar a arquitetura. Os edifícios de Cognée, essas estruturas supostamente sólidas e permanentes, dissolvem-se diante dos nossos olhos, como se a fixidez do mundo construído fosse uma ilusão. A sua série “Google Earth” leva esta lógica ainda mais longe, transformando as vistas de satélite das cidades em configurações gráficas abstratas, semelhantes a escritas encriptadas. Há aqui uma arqueologia do presente, uma forma de olhar para a nossa civilização como se já estivesse em ruínas.
É esta qualidade arqueológica que realmente liga Cognée ao pensamento de Gaston Bachelard. Em La Terre et les rêveries du repos, Bachelard explora a nossa relação íntima com a matéria terrestre, a nossa forma de projetar nela os nossos sonhos e angústias. Ele escreve que “a matéria é o nosso espelho energético; é um espelho que focaliza os nossos poderes iluminando-os com alegrias imaginárias” [7]. Esta frase poderia perfeitamente descrever a relação de Cognée com a cera, esta matéria que ele usa não simplesmente como meio, mas como parceira ativa no processo criativo.
A cera, esta substância que pode passar do estado sólido ao estado líquido e vice-versa, torna-se para ele um meio de explorar a plasticidade da própria realidade. Como ele diz: “A cera é uma matéria mágica… Parece aprisionar a cor entre o fundo e a superfície. […] O que me agrada é que se trata de uma matéria frágil e delicada que carrega em si esta possibilidade de se transformar constantemente pelo calor e assim fazer desaparecer o sujeito” [8]. Encontramos aqui exatamente esta dialética bachelardiana entre permanência e transformação, entre repouso e ação.
O facto de Cognée escolher a cera, material associado aos retratos funerários do Egipto romano, não é casual. Há nesta escolha uma consciência histórica profunda, uma forma de ligar o seu trabalho contemporâneo a uma tradição milenar de representação do ser humano face à sua finitude. Mas há também um gesto profundamente subversivo: onde os retratos do Fayum procuravam preservar a imagem do falecido para a eternidade, Cognée usa a mesma técnica para mostrar a dissolução inexorável de todas as coisas.
Esta tensão entre preservação e dissolução está no centro do seu projeto artístico. Face a um mundo onde tudo se torna imagem, onde a própria realidade parece dissolver-se na sua representação mediática, Cognée propõe uma pintura que aceita e integra essa dissolução, mas a faz um ato de resistência. Ao mostrar a fragilidade do mundo, afirma paradoxalmente a permanência da nossa necessidade de o representar, de o compreender através da arte.
O seu trabalho é particularmente pertinente na nossa época de ansiedade climática. Nas suas novas paisagens que estão expostas na galeria Templon, Cognée usa a sua técnica de encáustica para criar “uma impressão de sujeitos engolidos na cera, quase irreconhecíveis, desfocados até à abstração” [9]. Estas cenas naturais, ao mesmo tempo fascinantes e preocupantes, confrontam-nos com um dilema: contemplar a natureza na sua majestade ameaçada, ou agir. Cada paisagem testemunha um incompreensão irreconciliável entre a natureza e a humanidade, celebrando a beleza de um mundo assombrado pela ansiedade climática que consome as nossas sociedades.
O que é notável em Cognée é que ele mantém esse nível de tensão crítica enquanto cria obras de uma beleza impressionante. Há uma sensualidade quase carnal na sua forma de trabalhar a matéria, um prazer evidente na cor e na textura que contrabalança perfeitamente a gravidade dos seus temas. Essa tensão produtiva lembra o que Heidegger chamava o “combate” (Streit) entre mundo e terra na obra de arte, essa luta constante entre o sentido e a matéria, entre o que se revela e o que se retira.
Para retomar as palavras do artista: “Sempre houve em mim essa vontade de construir e destruir ao mesmo tempo com o intuito de encontrar um terceiro estado nesse entremeio” [10]. É precisamente nesse entremeio que reside a potência do seu trabalho, nem totalmente abstrato, nem totalmente figurativo; nem inteiramente na celebração do mundo, nem completamente na sua crítica; mas nessa zona intermédia onde a arte se torna verdadeiramente necessária para pensar a nossa condição.
Então sim, vão ver “Paysages fragmentés” na Galerie Templon. Lá verão um artista no auge da sua arte, um pintor que encontrou uma forma única de dar conta do nosso mundo em dissolução sem nunca ceder ao desespero. Num panorama artístico frequentemente dividido entre o cinismo pós-moderno e a ingenuidade reacionária, Cognée traça um terceiro caminho, o de um compromisso crítico que nunca abandona a beleza.
E se não forem, bem, terão perdido a oportunidade de ver um dos maiores pintores franceses contemporâneos mostrar-nos não como o mundo é, mas como ele se desfaz e se refaz diante dos nossos olhos, no calor transformador da sua visão.
- Bachelard, Gaston. A Psicanálise do fogo. Gallimard, 1938.
- Idem.
- Heidegger, Martin. Caminhos que não levam a lugar nenhum. Gallimard, 1962.
- Idem.
- Cognée, Philippe. Citado por Guillaume Lasserre. “Philippe Cognée, transgredir o real”. Mediapart, 4 de novembro de 2023.
- Cognée, Philippe. Entrevista com Isabelle Capalbo. “Philippe Cognée: Carne dei fiori, a beleza trágica e sensual das flores”. Artistikrezo, 5 de junho de 2020.
- Bachelard, Gaston. A Terra e os devaneios do repouso. José Corti, 1948.
- Cognée, Philippe. Entrevista com Isabelle Capalbo. “Philippe Cognée: Carne dei fiori, a beleza trágica e sensual das flores”. Artistikrezo, 5 de junho de 2020.
- Dossiê de imprensa, exposição “Philippe Cognée, Paisagens fragmentadas”, Galerie Templon Paris, 2025.
- Cognée, Philippe. Entrevista com Philippe Piguet. Art Interview, junho de 2021.
















