English | Português

Terça-feira 18 Novembro

ArtCritic favicon

A coragem de Ai Weiwei contra a maré do silêncio

Publicado em: 6 Maio 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

Ai Weiwei transforma objetos ordinários e preciosos em poderosas declarações contra a injustiça. Através das suas instalações monumentais, esculturas e intervenções mediáticas, cria uma arte que transcende a estética para se tornar um ato de resistência cívica e uma afirmação inabalável da dignidade humana.

Ouçam-me bem, bando de snobs. Ai Weiwei não é apenas um artista. É um fenómeno cultural, uma força política, um meteoro que atravessa a nossa consciência coletiva com a subtilidade de um pilão. Num mundo artístico povoado por carreiristas sem substância, Ai ergue-se como uma anomalia gloriosa, um criador que não se limita a fazer objetos bonitos para ornamentar os vossos apartamentos assépticos.

Cada vez que Ai parte uma urna Han milenar ou mergulha vasos ancestrais em tinta industrial de cores berrantes, ele não faz apenas um gesto iconoclasta. Pratica uma alquimia cultural, transformando o respeito paralisante pelo passado numa urgência vibrante que questiona o nosso presente. Não é um ato de destruição, mas de transmutação. Esses vasos não desaparecem, renascem como questões encarnadas.

A arte contemporânea está cheia de posers que fazem rebeliões nas suas galerias climatizadas. Ai, ele, conhece o preço real da dissidência. A sua arte nasceu no exílio e na perseguição, formada pela experiência direta da repressão. Em 2011, quando o governo chinês o deteve durante 81 dias sem acusação, as suas obras adquiriram uma dimensão que a maioria dos artistas jamais poderá alcançar: a de uma autenticidade total, visceral e incontestável.

Tomemos como exemplo “Sunflower Seeds” (2010), essa instalação monumental composta por 100 milhões de sementes de girassol em porcelana, cada uma feita à mão por 1 600 artesãos chineses de Jingdezhen. À primeira vista, parece apenas um enorme monte de pequenos objetos. Mas ao aproximar-se, percebe-se a imensa escala do trabalho humano contido neste mar cinzento. Cada semente, única mas visualmente idêntica às outras, torna-se uma metáfora do indivíduo na massa social chinesa, ao mesmo tempo insignificante e fundamental.

Mas o que verdadeiramente distingue Ai da multidão de artistas conceptuais é a sua capacidade de criar obras que ressoam simultaneamente como manifestos políticos e como objetos de uma beleza arrebatadora. As suas instalações de barras de aço recuperadas após o terramoto de Sichuan em 2008, cuidadosamente endireitadas e dispostas em ondulações telúricas no chão, são ao mesmo tempo uma denúncia da corrupção governamental que levou ao colapso de escolas mal construídas e uma meditação formal sobre a resiliência e transformação.

Não consigo deixar de pensar nas teorias de Walter Benjamin sobre a aura das obras de arte [1]. Benjamin afirmava que a reprodução mecânica das obras de arte diminuía a sua “aura”, essa qualidade quase mística que emana do original. Ai reverte completamente essa noção. Quando reproduz milhões de sementes em porcelana ou centenas de bicicletas Forever, ele não dilui a aura, multiplica-a exponencialmente. Cada repetição não é uma cópia mas uma reafirmação, um ato de resistência por acumulação.

A obra de Ai estabelece um diálogo fascinante com a tradição chinesa do sacrifício ritual. Na antiguidade chinesa, o sacrifício de objetos preciosos servia para comunicar com o mundo espiritual e afirmar o poder. Quando Ai deixa cair uma urna dinástica, não está apenas a destruir um artefacto, está a reativar esse ritual ancestral num contexto contemporâneo, sacrificando o passado para invocar um futuro diferente. O ruído da porcelana a partir-se torna-se numa oração por um mundo novo.

Essa dimensão ritualística encontra-se também nas suas instalações monumentais como “Straight” (2008-2012), onde as 150 toneladas de varas de aço metodicamente endireitadas após serem recuperadas dos destroços das escolas de Sichuan se tornam num memorial às crianças desaparecidas. A obra não é apenas conceptual, é profundamente litúrgica, transformando o trabalho físico numa forma de luto coletivo e de comemoração.

Ao contrário dos artistas que procuram chocar para aumentar o seu valor no mercado, o carácter provocador de Ai está sempre ancorado numa reflexão profunda sobre as estruturas de poder. As suas obras não são eventos explosivos mas intervenções calculadas que revelam os mecanismos ocultos da autoridade. Quando documenta meticulosamente os nomes dos 5.219 alunos que morreram no terramoto de Sichuan, informação que o governo chinês se recusava a divulgar, usa a arte como uma ferramenta de verdade contra o apagamento institucional.

A relação de Ai com o digital é também notável. Onde muitos artistas contemporâneos usam as plataformas sociais como simples vitrinas promocionais, Ai percebeu muito cedo que o Twitter, Instagram e os blogs poderiam ser meios artísticos autonomizados. A sua utilização das redes sociais não era acessória mas central à sua prática, uma extensão lógica da sua abordagem conceptual que desfoca as fronteiras entre arte e vida, entre o gesto artístico e a ação política.

Essa compreensão intuitiva dos meios digitais recorda as teorias de Marshall McLuhan sobre a “mensagem do meio” [2]. McLuhan sustentava que o próprio meio, independentemente do conteúdo que transmite, exerce uma influência profunda na sociedade. Ao abraçar os novos meios digitais como parte integrante da sua prática artística, Ai não adopta apenas novas ferramentas, redefine fundamentalmente o que significa ser artista na era da informação globalizada.

Sempre pensei que os melhores artistas são aqueles que conseguem ser perfeitamente do seu tempo e ao mesmo tempo profundamente intemporais. Ai encarna essa contradição com uma facilidade desconcertante. As suas obras estão ancoradas nas crises políticas do momento, migração, vigilância, censura, mas ressoam com questões fundamentais que atravessam toda a história humana: a relação com o poder, a memória colectiva, o valor das coisas, a dignidade individual.

Há algo fundamentalmente cinematográfico na forma como Ai constrói as suas obras. Tome-se “Fairytale” (2007), onde ele transportou 1.001 chineses comuns para a Documenta de Kassel. Esta obra não é simplesmente uma instalação ou uma performance; é uma narrativa complexa que se desenrola no tempo e no espaço, com personagens, reviravoltas, momentos de tensão e resolução. Ai não cria objetos estáticos, mas experiências dinâmicas que envolvem o espetador na sua própria lógica interna.

Esta qualidade cinematográfica não é acidental. Ai estudou cinema na Academia de Cinema de Pequim, e essa formação é evidente na sua mestria do enquadramento, da montagem conceptual e do ritmo visual. As suas instalações fotográficas como “Study of Perspective” (1995-2011), onde ele estende o dedo médio para várias instituições de poder pelo mundo, funcionam como sequências cinematográficas descontínuas que, juntas, formam uma narrativa coerente sobre a relação do indivíduo face à autoridade.

O que me agrada em Ai é a sua capacidade de se manter autêntico apesar da sua fama mundial. Num sistema artístico onde o sucesso comercial leva frequentemente a uma diluição da radicalidade inicial, Ai continua a criar obras que perturbam, que questionam, que recusam o conforto intelectual. A sua transformação de uma figura da dissidência chinesa num ícone artístico internacional poderia facilmente tê-lo conduzido para gestos mais simbólicos do que substanciais. Em vez disso, usou a sua plataforma ampliada para amplificar a sua mensagem, para estender o alcance da sua intervenção.

A arte de Ai é profundamente política sem cair no didatismo simplista ou na propaganda inversa. Ele não oferece respostas fáceis ou slogans reconfortantes. Pelo contrário, as suas obras abrem espaços de questionamento, criam zonas de desconforto produtivo onde o espetador é convidado a reconsiderar as suas próprias posições. É uma arte que não lhe diz o que pensar, mas que o obriga a pensar.

Em “Human Flow” (2017), o seu documentário sobre a crise dos refugiados, Ai abandona o conforto da metáfora artística para confrontar diretamente a realidade bruta. Assim, ele dilui ainda mais a distinção entre o artista e o ativista, entre a obra de arte e a intervenção social. Este filme não é um simples documentário, é uma extensão lógica da sua prática artística, uma obra que recusa ficar confinada nos espaços dedicados à arte e que insiste em existir no mundo real.

Esta porosidade entre arte e vida caracteriza toda a abordagem de Ai. Ele não cria obras que comentam o mundo desde uma distância estética segura; fabrica intervenções que participam ativamente na transformação deste mundo. A sua arte não é um reflexo passivo, mas uma força ativa, um catalisador de mudança.

Devo admitir que por vezes fiquei agitado com certos aspetos do trabalho de Ai. A sua tendência para a auto-mitificação, a sua omnipresença mediática, a sua propensão para reciclar certos gestos iconoclastas, tudo isto poderia facilmente ser interpretado como um narcisismo artístico bem calculado. Mas sempre que começo a duvidar, ele produz uma obra de tal urgência, de tal necessidade, que as minhas reservas desmoronam.

Porque no fundo, o que distingue Ai de tantos outros artistas contemporâneos é precisamente esta qualidade de necessidade. As suas obras não parecem ser os produtos de uma carreira cuidadosamente orquestrada ou de uma procura abstrata pela novidade formal; aparecem como manifestações inevitáveis de uma consciência artística confrontada com as contradições fundamentais do nosso tempo. Elas existem porque têm de existir.

Numa paisagem artística em que tantas obras parecem intercambiáveis, genéricas, produzidas em série para satisfazer um mercado voraz, a arte de Ai conserva uma singularidade irreductível. Podemos gostar ou detestar o que ele faz, mas nunca o podemos confundir com o trabalho de outro artista. Esta assinatura distintiva não é o resultado de um estilo visual imediatamente reconhecível, mas de uma coerência conceptual e ética que atravessa todas as suas criações.

Ai Weiwei é mais do que um artista, é um princípio ativo, um vírus benigno que infeta o sistema imunitário da arte contemporânea para o forçar a reagir, a defender-se, a evoluir. A sua maior conquista talvez não seja uma obra específica, mas a transformação que operou na nossa compreensão coletiva do que a arte pode e deve fazer no mundo.

Perante a sua obra, somos obrigados a reavaliar as nossas próprias posições, os nossos próprios compromissos, a nossa própria cumplicidade silenciosa com os sistemas que pretendemos criticar. É uma arte que não nos deixa incólumes, muda-nos, incomoda-nos, desloca-nos. E não é isso, no fundo, o que pedimos secretamente à arte? Não que nos confirme na nossa visão do mundo, mas que a alargue até que esta rebente sob a pressão de novas perspetivas.

Pois sim, bando de snobs, Ai Weiwei é grande, não apesar das suas contradições mas precisamente por causa delas. Num mundo artístico que recompensa tão frequentemente a coerência superficial em detrimento da complexidade autêntica, Ai mantém-se gloriosamente, necessariamente, vitalmente contraditório. E talvez essa seja a sua lição mais preciosa: que a verdadeira arte não resolve as tensões, ela habita-as.


  1. Benjamin, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Tradução para o francês por Lionel Duvoy. Éditions Allia, 2ª edição, outubro de 2011.
  2. McLuhan, Marshall. Para compreender os meios de comunicação. Seuil, Paris, 1968.
Was this helpful?
0/400

Referência(s)

AI Weiwei (1957)
Nome próprio: Weiwei
Apelido: AI
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • China

Idade: 68 anos (2025)

Segue-me