Ouçam-me bem, bando de snobs. Vocês passeiam por galerias assépticas, saboreando o vosso champanhe morno, contemplando obras que não compreendem mas que fingem adorar porque lhes disseram que valem uma fortuna. Entretanto, Song Kun, esta artista chinesa nascida na Mongólia Interior, trabalha como uma louca, criando um universo paralelo onde o real e o imaginário se confundem com uma graça que vos faria chorar se não tivessem medo de estragar a maquilhagem.
A obra de Song Kun produz aquela sensação estranha que se sente quando se observa um corpo através do vidro fosco de um duche: distinguem-se os contornos, adivinham-se os movimentos, mas a essência permanece misteriosamente velada. É precisamente este jogo entre revelação e ocultação que caracteriza o seu trabalho. As suas pinturas a óleo, aparentemente simples, são na realidade portais para dimensões psíquicas que Jung adoraria explorar.
Na sua série “It’s My Life” (2006), composta por 366 quadros que representam cada um um dia da sua vida, Song Kun oferece-nos um diário íntimo visual de rara autenticidade. A psicanálise freudiana ensina-nos que o desejo se manifesta através de símbolos que escapam à nossa consciência [1]. Song Kun, expondo diariamente a sua vulnerabilidade, transforma o ato criativo numa forma de autoanálise que nos permite aceder às suas angústias e às suas alegrias mais íntimas. Se Freud tivesse podido ver esta obra, provavelmente teria revisto a sua teoria dos impulsos para incluir uma dimensão estética que muitas vezes negligenciou.
Cada quadro desta série é como uma sessão no divã do psicanalista, onde as memórias, os sonhos e os fantasmas se manifestam sob a forma de cores e formas. A tonalidade cinzenta dominante nas suas obras não deixa de recordar o conceito freudiano de “neutralidade benevolente”, essa postura que permite ao terapeuta acolher os conteúdos psíquicos sem julgá-los. Song Kun adopta essa mesma neutralidade perante a sua própria vida, transmutando as suas experiências em imagens que nos interpela pela sua sinceridade desarmante.
O trabalho de Song Kun inscreve-se também numa reflexão profunda sobre a natureza do tempo, tema central da filosofia de Bergson. Para o filósofo francês, o tempo vivido (a duração) não pode ser dividido em instantes sucessivos como sugere a ciência [2]. Esta duração é um fluxo contínuo, uma melodia onde cada nota contém em si todas as que a precederam. Os 366 quadros de Song Kun funcionam de acordo com este princípio bergsoniano: cada imagem, embora independente, contém em si a memória de todas as outras, criando assim uma experiência temporal unificada que a artista nos convida a partilhar.
Bergson distinguiu o tempo medido pelos relógios (tempo espacial) do tempo vivido na consciência (duração pura). Song Kun, ao apresentar as suas obras de acordo com uma cronologia rigorosa, mas injectando-lhes uma dimensão emocional intensa, mostra-nos como estas duas concepções do tempo podem coexistir. A série torna-se assim uma meditação visual sobre o paradoxo bergsoniano do tempo: simultaneamente divisível e indivisível, quantificável e qualificável.
Como Bergson escreveu em “A Evolução Criadora”: “O tempo é invenção ou não é nada” [3]. Song Kun, inventando a cada dia uma nova imagem, fazendo de cada momento uma ocasião de criação, encarna perfeitamente essa concepção do tempo como força criadora. Ela nos mostra que viver autenticamente é transformar constantemente o presente em obra de arte.
A fascinação que exerce Song Kun vem da sua capacidade de criar uma arte que recusa os artefactos pomposos para se concentrar no essencial. Em 2012, com a sua instalação “A Thousand Kisses Deep”, ela nos mergulha num universo aquático onde corpos flutuam, se transformam, se decompõem e se recompoêm. Esta obra evoca irresistivelmente a ideia bergsoniana da mudança perpétua: “Nossa personalidade cresce, amadurece, evolui sem cessar. Cada momento é algo novo que se adiciona ao que era antes” [4].
A transparência, tanto no sentido literal quanto metafórico, está onipresente nas suas criações recentes. Na sua série “ASURA SUKHAVATI” (2015), Song Kun inspira-se no budismo para explorar os limites entre o paraíso e o inferno, o desejo e o sofrimento. Os corpos translúcidos que ela pinta parecem suspensos entre existência e não existência, materialidade e espiritualidade. Essa busca pela transparência não deixa de recordar a investigação de Bergson sobre a intuição como modo de conhecimento direto e imediato, transcendendo os limites do intelecto analítico.
Se os primeiros trabalhos de Song Kun inseriam-se numa tradição figurativa relativamente convencional, as suas obras recentes testemunham uma evolução para uma abordagem mais sinestésica, onde a pintura dialoga com a música, o vídeo e a instalação. Como ela própria explica: “A narração no estilo do fluxo de consciência e as imagens de intervalo e sinestesia no subconsciente são os dois conceitos que desempenham um papel chave nas minhas obras” [5]. Esta referência à literatura modernista não é fortuita.
Virginia Woolf, figura emblemática do movimento literário do “fluxo de consciência”, procurava capturar nos seus romances a complexidade e fluidez da consciência humana. O seu romance “As Ondas” (1931), em particular, apresenta uma estrutura narrativa descontínua onde os monólogos interiores de seis personagens entrelaçam-se para formar uma tapeçaria mental coletiva [6]. Song Kun, com a sua série “Visual Stream of Consciousness” (2013), realiza uma transposição visual dessa técnica literária.
Nesta série, Song Kun abandona a cronologia linear para criar imagens que funcionam como instantâneos da consciência, fragmentos de perceções, emoções e memórias que coexistem num mesmo espaço pictórico. Como escreveu Woolf: “A vida não é uma série de lâmpadas dispostas simetricamente; a vida é um halo luminoso, uma cobertura semi-transparente que nos envolve do princípio ao fim” [7]. As pinturas de Song Kun são precisamente esses “halos luminosos” que envolvem a experiência humana em toda a sua complexidade.
A técnica literária do fluxo de consciência visa reproduzir o caráter descontínuo e associativo do pensamento humano. Song Kun, ao transpor essa técnica para o domínio visual, cria obras que resistem a uma leitura linear e unívoca. Os seus quadros funcionam como testemunhos visuais onde diferentes camadas de significado se sobrepõem, entrelaçam e por vezes se contradizem, refletindo assim a natureza fundamentalmente ambígua e polissémica da nossa experiência do mundo.
O que chama particularmente a atenção na obra de Song Kun é a sua recusa de qualquer postura didática ou moralista. Ao contrário de tantos artistas contemporâneos que nos sobrecarregam com as suas mensagens políticas previsíveis, ela prefere explorar as zonas de sombra e ambiguidade da experiência humana. A sua série “Xijia, River Lethe” (2008) é particularmente reveladora a esse respeito. Inspirando-se no rio mitológico do esquecimento, apresenta-nos imagens enigmáticas onde figuras humanas parecem suspensas entre a memória e o esquecimento, presença e ausência.
Esta série evoca a conceção woolfiana do tempo como fluxo contínuo onde passado, presente e futuro se interpenetram. Em “Orlando”, Woolf escreve: “Uma hora, uma vez alojada no corpo humano estranho, pode esticar-se cinquenta ou cem vezes o seu comprimento de relógio; por outro lado, uma hora pode ser representada com precisão pelo pequeno círculo de um pequeno ponteiro que se move num mostrador” [8]. As figuras fantasmagóricas de Song Kun parecem habitar precisamente esse espaço-tempo elástico onde um segundo pode conter a eternidade.
A força de Song Kun reside na sua capacidade de criar imagens que funcionam como evocações em vez de ilustrações. Ela não nos conta histórias, mas mergulha-nos em atmosferas, estados de espírito, sensações. As suas explorações recentes do conceito budista de “Sukhavati” (a Terra Pura) testemunham uma busca espiritual que transcende os dogmas religiosos para alcançar uma dimensão universal.
Na sua série “SUKHAVATI。o 0” (2018), Song Kun combina pintura tradicional, instalações luminosas e criaturas transparentes que evocam organismos marinhos. Esta série convida-nos a refletir sobre os limites entre o natural e o artificial, o orgânico e o tecnológico. Tal como Virginia Woolf explorava nos seus romances as fronteiras porosas entre o eu e o mundo, Song Kun propõe-nos uma visão onde o humano já não está no centro, mas faz parte de uma rede complexa de interdependências.
Há algo profundamente libertador na arte de Song Kun. Ao recusar as dicotomias simplistas (Oriente/Ocidente, tradicional/contemporâneo, figurativo/abstrato), ela cria um espaço onde diferentes tradições culturais e artísticas podem dialogar. Formada na Academia Central de Belas Artes de Pequim, incorpora no seu trabalho tanto referências à pintura tradicional chinesa como à cultura pop globalizada, ao budismo e às subculturas contemporâneas.
Ao contrário de tantos artistas chineses que exploram de forma cínica os estereótipos ocidentais sobre a China, Song Kun desenvolve uma linguagem visual autenticamente pessoal que transcende as etiquetas nacionais ou culturais. Como ela explica: “A minha arte não procura impor símbolos ou conceitos rígidos. Em vez disso, proponho uma visão pessoal que explora como podemos sentir plenamente as experiências e emoções que a vida nos oferece, mantendo ao mesmo tempo uma perspetiva própria da China contemporânea” [9].
Esta posição parece-me corresponder perfeitamente à visão woolfiana da arte como exploração dos “momentos de ser”, esses instantes de consciência aguda em que percebemos subitamente a realidade na sua complexidade e beleza totais. Song Kun captura esses momentos fugazes em que o véu do hábito se rasga para deixar entrever uma realidade mais profunda e autêntica.
Ao combinar diferentes meios, pintura, vídeo, instalação, música, Song Kun cria experiências imersivas que estimulam todos os nossos sentidos. Esta abordagem sinestésica lembra-nos que a nossa perceção do mundo nunca é puramente visual, mas envolve todo o nosso corpo. Como escrevia Woolf: “Eu não sou uma pessoa, sou várias pessoas. Nem preto nem branco, nem homens nem mulheres. Nem uma idade nem um momento preciso no tempo. Eu sou vários tempos, várias pessoas” [10].
A abordagem artística de Song Kun parece-me profundamente corajosa num mundo da arte contemporânea dominado pelo cinismo e conformismo. Explorando sem concessões a sua subjetividade e espiritualidade, ela lembra-nos que a arte ainda pode ser um espaço de transformação e transcendência. Num panorama artístico chinês frequentemente polarizado entre a propaganda oficial e a crítica social codificada, ela traça um terceiro caminho que privilegia a exploração da interioridade.
Não se engane, no entanto: a arte de Song Kun não é uma fuga para um espiritualismo desincorporado. Pelo contrário, as suas obras estão profundamente enraizadas na experiência corporal e social. A sua série recente “IMBODY-Feeling Real · Nude” (2019) explora as representações do corpo feminino numa sociedade chinesa em plena mutação, onde tradições patriarcais e a hipersexualização consumista coexistem de forma contraditória.
Song Kun consegue, de forma impressionante, expressar uma visão pessoal ao mesmo tempo que ressoa com preocupações universais. A sua arte fala-nos de desejo, perda, memória, espiritualidade, temas que transcendem as fronteiras culturais e temporais. Como escrevia Woolf: “Estes momentos de visão são de grande profundidade; a memória mantém-nos verdes muito tempo depois de tudo o que os rodeava ter-se desfeito em pó” [11].
A arte de Song Kun oferece-nos precisamente esses “momentos de visão” que iluminam a nossa consciência e persistem na nossa memória muito depois de termos saído da exposição. Num mundo saturado de imagens descartáveis e sensações efémeras, as suas obras convidam-nos a abrandar, contemplar, sentir. Lembram-nos que a arte, no seu melhor, pode ser uma forma de meditação ativa que aguça a nossa perceção e aprofunda a nossa relação com o mundo.
Perante uma obra de Song Kun, devemos parar. Tirar tempo para olhar verdadeiramente. Deixar-nos impregnar por essas atmosferas etéreas, esses corpos translúcidos, essas paisagens mentais. Talvez então sintamos o que Bergson chamava “a intuição”, esse conhecimento imediato e simpático que permite captar a essência das coisas para além dos conceitos e das categorias. E com um pouco de sorte, poderemos até esquecer por um momento que somos snobs.
- Freud, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Paris: PUF, 1967.
- Bergson, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Paris: PUF, 2013.
- Bergson, Henri. A Evolução Criadora. Paris: PUF, 2007.
- Bergson, Henri. O Pensamento e o Mutável. Paris: PUF, 2009.
- Song Kun, citada no catálogo da exposição “Visual Stream of Consciousness”, Museu de Arte Contemporânea Minsheng, Xangai, 2014.
- Woolf, Virginia. As Ondas. Paris: Stock, 1974.
- Woolf, Virginia. The Common Reader. Londres: Hogarth Press, 1925.
- Woolf, Virginia. Orlando. Paris: Stock, 1974.
- Song Kun, citada no catálogo da exposição “SUKHAVATI。o 0”, Cc Foundation & Art Center, Xangai, 2018.
- Woolf, Virginia. As Ondas. Paris: Stock, 1974.
- Woolf, Virginia. Momentos de Existência. Londres: Hogarth Press, 1985.
















