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A geometria sentimental de KYNE

Publicado em: 2 Abril 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

A economia de meios que KYNE demonstra não é apenas uma escolha estética, mas uma posição ética num mundo saturado de imagens supérfluas. Ele mostra-nos que é possível dizer muito com pouco, criar uma presença forte com uma intervenção mínima.

Ouçam-me bem, bando de snobs. Existe em Fukuoka um artista que redefine a feminilidade contemporânea por uma economia de linhas tão precisa que quase se torna matemática. KYNE, esse nome que agora ressoa muito para além do seu Japão natal, impõe-se como o arquiteto de uma nova iconografia feminina, simultaneamente enraizada na tradição pictórica nipónica e impulsionada pelas pulsões frenéticas da cultura urbana.

Este artista, que começou a sua carreira na sua cidade natal por volta de 2006, desenvolveu um estilo de singularidade impressionante. As suas mulheres de olhar enigmático, congeladas numa melancolia urbana, fixam-nos com uma intensidade que desafia toda interpretação unívoca. Poderíamos passar horas a procurar nesses rostos o sentido oculto de uma expressão que escapa a qualquer tentativa de definição. É precisamente aí que reside o poder da sua obra: nessa capacidade de criar um vazio narrativo que o espectador é convidado a preencher.

A trajetória de KYNE é fascinante. Formado em pintura tradicional japonesa na universidade, imergiu simultaneamente na cultura dos graffiti, navegando entre o academicismo e a arte urbana. Essa dupla influência constitui a espinha dorsal da sua identidade artística. As suas figuras femininas monocromáticas, de traços depurados, emprestam tanto às técnicas seculares do Nihonga como às expressões fugazes das tags urbanas. Essa hibridação cultural cria uma tensão visual que capta instantaneamente a atenção.

O que impressiona na obra de KYNE é a forma como soube transformar a estética da cultura pop dos anos 80 numa verdadeira abordagem conceptual. A estilização extrema dos rostos que representa evoca as ilustrações das capas de álbuns daquela época, mas transcendidas por uma abordagem minimalista que as ancora resolutamente na nossa contemporaneidade.

Para compreender KYNE, é preciso situá-lo na linhagem dos artistas que exploraram a geometria das emoções. Pensamos imediatamente em Giorgio Morandi, este mestre italiano das naturezas mortas, cuja busca por uma purificação formal ressoa estranhamente com o trabalho do japonês. Morandi, com suas composições de objetos cotidianos reduzidos à sua expressão mais simples, procurava um tipo de silêncio visual, um espaço onde a contemplação se torna possível [1]. KYNE prossegue essa mesma busca, mas aplicando-a ao rosto humano, e mais particularmente feminino.

A geometria morandiana, feita de volumes simples e relações espaciais medidas, encontra eco na maneira como KYNE constrói seus retratos. Cada linha é calculada, cada curva pensada para criar um equilíbrio visual que parece suspenso no tempo. Os rostos que ele desenha existem em um espaço pictórico autônomo, desligado das contingências do real, assim como as garrafas e vasos de Morandi parecem flutuar em um universo paralelo.

Essa busca do absoluto formal não é sem lembrar as palavras do próprio Morandi, que afirmava: “Acredito que nada pode ser mais abstrato, mais irreal, do que aquilo que realmente vemos.” [2] Essa frase poderia perfeitamente se aplicar ao trabalho de KYNE, que extrai da realidade observável silhuetas femininas para transformá-las em signos gráficos quase abstratos.

Os rostos de KYNE, como as naturezas mortas de Morandi, são objetos de meditação visual. Eles nos convidam a contemplar a tênue fronteira entre figuração e abstração, entre presença e ausência. São superfícies sobre as quais nosso olhar pode pousar, demorar-se, e finalmente se perder em uma contemplação que transcende a própria imagem.

Essa abordagem artística insere-se também em uma reflexão mais ampla sobre a representação feminina na arte contemporânea. Em uma época saturada de imagens hiperssexualizadas ou, inversamente, deliberadamente politizadas, KYNE propõe uma alternativa fascinante: rostos femininos que não contam nada de explícito, mas que contêm todas as histórias possíveis.

O próprio artista declarou em uma entrevista: “Eu não tento representar uma emoção particular. Prefiro que o espectador possa projetar seus próprios sentimentos toda vez que olha a obra.” É precisamente essa ausência voluntária de emoção definida que cria um espaço de apropriação para o observador. As mulheres de KYNE, além de sua aparente frieza, tornam-se recipientes emocionais universais.

Se a influência de Morandi se faz sentir na abordagem formal de KYNE, é do lado da sociologia que devemos olhar para compreender plenamente as implicações de seu trabalho. As silhuetas femininas que ele desenha são produto de uma sociedade japonesa em mutação, dividida entre tradição e modernidade, entre coletivismo e individualismo.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu, em sua análise dos mecanismos de distinção social, mostrou como os gostos estéticos e as práticas culturais estão intimamente ligados à nossa posição na sociedade [3]. Essa grade de leitura é particularmente pertinente para entender o sucesso de KYNE, cujas obras circulam tanto no mundo elitista das galerias de arte quanto naquele, mais democrático, das colaborações com marcas de streetwear.

As mulheres de KYNE, com a sua aparência ao mesmo tempo acessível e misteriosa, funcionam como sinais de reconhecimento social num mercado globalizado de arte. Possuir uma obra de KYNE é exibir a pertença a uma comunidade estética transnacional, a par das últimas tendências artísticas asiáticas. É o que Bourdieu teria identificado como uma forma de “capital cultural”, um marcador de distinção social no campo cultural contemporâneo.

Bourdieu escreveu que “o gosto classifica, e classifica aquele que classifica” [4]. Os admiradores de KYNE, ao escolherem apreciar a sua estética depurada e as suas referências culturais híbridas, classificam-se a si próprios numa categoria de amantes cosmopolitas de arte, capazes de decifrar as subtilidades de uma obra que mistura influências orientais e ocidentais, tradicionais e urbanas.

Esta dimensão sociológica do trabalho de KYNE é inseparável do seu contexto de surgimento. O Japão contemporâneo, com as suas contradições e tensões identitárias, constitui o solo fértil onde pôde florescer uma obra tão singular. Os rostos femininos que ele desenha são testemunhas silenciosas de uma sociedade em busca do equilíbrio entre o respeito pelas tradições e o desejo de inovação.

O que é particularmente impressionante em KYNE é a sua capacidade de transformar a cultura pop dos anos 80 numa linguagem visual simultaneamente nostálgica e decididamente contemporânea. As suas referências às capas de discos e revistas desse período não são meras citações, mas uma verdadeira reapropriação crítica que interroga a nossa relação com o passado recente.

Numa mundo onde tudo acontece demasiado rápido, onde as imagens se sucedem a um ritmo frenético nos nossos ecrãs, os rostos suspensos de KYNE impõem uma pausa, um momento de paragem contemplativa. Eles lembram-nos que a arte ainda pode oferecer experiências de tempo dilatado, onde o encontro com uma obra se prolonga numa duração que escapa à aceleração generalizada das nossas vidas.

A economia de meios que o artista demonstra, utilização mínima de linhas e paletas cromáticas restritas, não é apenas uma escolha estética, mas também uma posição ética num mundo saturado de imagens supérfluas. KYNE mostra-nos que é possível dizer muito com pouco, criar uma presença forte com uma intervenção mínima.

Esta abordagem encontra um eco particular na nossa época de hiperssobrecarga visual. No fluxo incessante de imagens que nos assaltam diariamente, as figuras femininas de KYNE destacam-se pela sua simplicidade assumida. São como ilhas de calma no oceano turbulento da nossa cultura visual.

A colaboração do artista com Takashi Murakami, figura incontornável da arte contemporânea japonesa, aumentou ainda mais a sua visibilidade internacional. Mas, ao contrário de Murakami, cuja obra joga deliberadamente com códigos de acumulação visual, KYNE mantém-se fiel a uma estética de contenção. As suas mulheres de olhar enigmático resistem à tentação do espetacular para se integrarem melhor na duração.

Talvez aí resida a verdadeira força de KYNE: na capacidade de criar imagens que, apesar da sua aparente simplicidade, nunca se esgotam ao olhar. Podemos contemplar os seus rostos femininos durante horas sem nunca nos cansarmos, tal é a sensação de que contêm multitudes sob a sua superfície lisa.

A arte de KYNE é um convite a abrandar, a tomar o tempo para ver verdadeiramente. Num mundo onde a atenção se tornou o bem mais raro, as suas obras oferecem-nos um espaço de concentração, um lugar onde o nosso olhar finalmente pode repousar sem ser imediatamente solicitado para outro lado.

Não consigo deixar de pensar que esses rostos femininos, no seu silêncio eloquente, são também espelhos colocados diante do nosso tempo conturbado. Eles nos refletem a nossa própria busca por identidade, o nosso desejo de nos definirmos num mundo onde os referenciais tradicionais se desfazem. As mulheres de KYNE são ao mesmo tempo pessoas em particular e todos em potencial, superfícies de projeção para os nossos desejos, os nossos medos e as nossas esperanças.

O artista conseguiu esse feito incrível: criar uma obra imediatamente reconhecível sem cair na facilidade da fórmula repetitiva. Cada um dos seus retratos é único, habitado por uma presença singular, ao mesmo tempo que se insere numa coerência estilística que é a sua assinatura.

KYNE lembra-nos que a arte não precisa de ser ruidosa para ser poderosa. No silêncio visual das suas composições, na economia refinada das suas linhas, desdobra-se um universo de uma riqueza infinita. Um mundo onde a contemplação volta a ser possível, onde o olhar pode finalmente pousar e encontrar sentido na simplicidade.

Então, bando de snobs, da próxima vez que encontrarem um rosto de KYNE, tomem o tempo para realmente parar. Olhem para além do óbvio formal, mergulhem nesses olhos que não dizem nada e tudo ao mesmo tempo. Talvez aí encontrem um fragmento de vocês mesmos, uma parcela dessa humanidade comum que o artista japonês capta de forma tão magistral na geometria sensível dos seus retratos.

Este é todo o paradoxo e toda a beleza da obra de KYNE: nesses rostos que são apenas conjuntos de linhas, reconhecemos a nossa própria condição humana, a nossa própria busca por identidade num mundo em constante mutação. E é precisamente porque eles não nos dizem o que pensar ou o que sentir que nos tocam tão profundamente.


  1. Bandera, M. C., & Miracco, R. (2008). Giorgio Morandi 1890-1964. Milão: Skira.
  2. Wilkin, K. (1997). Giorgio Morandi: Works, Writings, Interviews. Barcelona: Ediciones Polígrafa.
  3. Bourdieu, P. (1979). A Distinção. Crítica social do julgamento. Paris: Éditions de Minuit.
  4. Ibid.
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Referência(s)

KYNE (1988)
Nome próprio:
Apelido: KYNE
Outro(s) nome(s):

  • キネ (Japonês)

Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Japão

Idade: 37 anos (2025)

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