Ouçam-me bem, bando de snobs, vocês que circulam entre vernissages a beber espumante enquanto murmuram banalidades sobre arte contemporânea. Abram os olhos, por amor de Deus! Aquilo de que vos vou falar aqui, com Luc Tuymans, não tem nada a ver com as vossas pequenas poses intelectuais. É uma luta até à morte com a imagem, uma batalha feroz contra a nossa memória coletiva amnésica, um estalo na cara do nosso conforto visual.
Tuymans não é um pintor “interessante”, não é um artista “estimulante”, não é um criador “que coloca questões”. Esses eufemismos de salão não são suficientes. Tuymans é um cirurgião da imagem que opera a frio, sem anestesia, forçando-nos a olhar para aquilo que preferiríamos esquecer. As suas pinturas, esses fantasmas pálidos com tons doentios, ocres, azuis biliosos, cinzentos sujos, são como radiografias da nossa consciência histórica.
Vamos reservar um momento para considerar o ato fundamental deste pintor belga. Numa época saturada de imagens, onde o fluxo visual ininterrupto nos tornou cegos, onde passamos pelas atrocidades do mundo com a indiferença de zumbis saciados, Tuymans desacelera tudo. Ele pinta num só dia, certamente, mas depois de meses de ruminação conceptual. E este gesto, extrair uma imagem dos milhões que nos bombardeiam, degradá-la, simplificá-la, perturbá-la, e depois restitui-la em pintura, é um ato de resistência pura.
Tuymans e a fenomenologia da percepção
Olhem atentamente para as suas obras e entenderão que Tuymans partilha com Maurice Merleau-Ponty, sem nunca citá-lo diretamente, uma obsessão pelo enigma da percepção. Se o filósofo francês escreveu que “o visível é o que se capta com os olhos, o sensível é o que se capta pelos sentidos” [1], Tuymans parece responder: “mas o que resta do visível quando as imagens são agora simulacros de si mesmas?” A sua pintura “Gas Chamber” (1986) não é a imagem de uma câmara de gás, mas a imagem da impossibilidade de representar uma câmara de gás, a imagem da nossa incapacidade de ver o horror de frente.
Como escrevia Merleau-Ponty: “Ver é ter distância” [2]. Toda a arte de Tuymans reside nesta distância deliberadamente imposta. As suas telas são imagens de imagens de imagens, memórias de memórias, fantasmas de fantasmas. Ele pinta com base em fotografias, capturas de ecrã, clichés tirados com o seu iPhone, nunca da natureza. Esta estratégia não é um atalho técnico mas uma posição fenomenológica: ele mostra-nos como percebemos agora o mundo, através de camadas e camadas de mediação.
A sua forma de enquadrar, de desfocar, de descolorar, tudo isso evoca a nossa consciência contemporânea, onde a violência e o horror nos chegam como através de um nevoeiro anestesiante. Em 2002, durante a Documenta 11, quando todos esperavam dele uma resposta aos atentados de 11 de setembro, ele apresentou uma natureza morta gigantesca. Este gesto tipicamente tuymansiano era uma forma de nos dizer: “Aqui está como olhamos agora para as catástrofes, como naturezas mortas, incapazes de captar a realidade ardente”.
O seu método de trabalho ilustra perfeitamente esta fenomenologia da distância: ele reflete, conceptualiza, acumula imagens fonte durante meses, e depois executa cada tela num só dia. Esta rapidez de execução não é expressionismo, pelo contrário, serve para criar um efeito de frieza clínica, como se o próprio pintor não pudesse suportar estar demasiado tempo na presença destas imagens traumáticas que invoca.
O teatro da memória coletiva
Se Tuymans dialoga silenciosamente com a fenomenologia, ele também mantém uma relação complexa com o teatro, não como entretenimento, mas como um dispositivo de memória e de verdade. As suas pinturas funcionam como aquilo a que o dramaturgo alemão Bertolt Brecht chamava um “teatro épico”, uma arte que recusa a ilusão para melhor despertar a consciência crítica do espetador [3].
Como no teatro brechtiano, as pinturas de Tuymans mantêm deliberadamente uma distância em relação ao seu tema. Elas mostram que mostram, exibem a sua própria mediação. A “distanciamento” brechtiano encontra um eco surpreendente nestas imagens desbotadas que nos impedem de nos identificar emocionalmente com o que vemos, para melhor nos forçar a pensar.
Pegue em “Der Architekt” (1997), este retrato de Albert Speer, o arquiteto de Hitler, caído na neve durante uma excursão de esqui. Tuymans, a partir de um filme amador, pinta este criminoso nazi numa situação banal, quase cómica, mas apaga o seu rosto com uma mancha branca. Este gesto pictórico é eminente teatral: mostra-nos o próprio processo de apagamento da memória, como os criminosos se misturam na paisagem quotidiana, como a história se dissolve na anedota.
Na sua série “Mwana Kitoko” (2000), dedicada ao passado colonial belga no Congo, Tuymans adota uma abordagem que Brecht teria aprovado. Em vez de nos servir uma carga moral simplista, ele justapõe imagens aparentemente desconexas, um retrato do jovem rei Baudouin, uma sala vazia, um motivo leopardo, criando assim uma montagem que nos força a construir a história por nós próprios. Como Brecht escreveu: “A arte não é um espelho para refletir a realidade, mas um martelo para a moldar” [4].
O teatro brechtiano procurava mostrar as contradições da sociedade para despertar uma consciência política. Da mesma forma, Tuymans revela as contradições da nossa relação com a imagem e a história. Quando pinta Condoleezza Rice em 2005, não nos oferece um retrato psicológico, mas uma imagem da forma como o poder se encena. Como no teatro, ele trabalha com “tipos” mais do que com indivíduos, os seus personagens são máscaras sociais, funções na grande narrativa da história.
A dimensão teatral da sua obra é particularmente evidente na forma como concebe as suas exposições como conjuntos coerentes, onde cada quadro dialoga com os outros num espaço cuidadosamente orquestrado. Na sua exposição “Retrospective” no BOZAR em 2011, a sucessão dos espaços criava uma verdadeira trajetória dramática, uma progressão na nossa confrontação com a imagem e a história.
Para além da imagem: a física quântica da pintura
Tuymans é talvez o pintor que melhor compreendeu que a nossa época não sofre de escassez de imagens, mas sim do seu excesso obsceno. Todos os dias, somos bombardeados com milhares de imagens que já nem sequer vemos. A televisão, as redes sociais, a publicidade tornaram-nos cegos pela sobreexposição. Neste contexto, pintar torna-se um ato de resistência, não criando ainda mais imagens, mas desacelerando o nosso olhar.
As obras de Tuymans são como vírus que infectam o nosso sistema visual saturado. Com a sua paleta reduzida e execução deliberadamente incompleta, forçam-nos a tomar consciência do nosso próprio ato de perceção. Recordam-nos que ver é um ato ativo, político, ético, e não o consumo passivo a que estamos habituados.
Pegue na sua série “Der diagnostische Blick” (1992), baseada num manual médico de diagnóstico. Estas pinturas de corpos doentes, representadas com uma frieza clínica, confrontam-nos com o nosso próprio olhar médico sobre o sofrimento alheio. Ou ainda “Bend Over” (2001), esta figura humana inclinada para a frente para um exame médico, imagem humilhante que evoca tanto a submissão ao poder como a nossa vulnerabilidade fundamental.
Tuymans obriga-nos a perguntar: o que significa olhar o sofrimento dos outros? Como é que as imagens nos tornam cúmplices ou testemunhas da violência? Como é que a memória coletiva se constrói através de imagens que simultaneamente revelam e escondem?
Se a fenomenologia nos ensina que a nossa perceção do mundo é sempre já interpretada, e se o teatro brechtiano nos mostra como desmontar os mecanismos da ilusão, Tuymans acrescenta uma dimensão adicional: ele faz-nos tomar consciência do caráter político do nosso olhar. Cada imagem é um campo de batalha onde se jogam relações de poder, onde certas coisas são mostradas e outras ocultas, onde a história é escrita pelos vencedores mas assombra os vencidos.
A sua pintura “The Secretary of State” (2005), esse retrato glacial de Condoleezza Rice mencionado anteriormente, não nos diz o que pensar dessa figura política, mas obriga-nos a refletir sobre a forma como o poder se representa, como certos corpos se tornam representantes de nações inteiras, como a política se transforma em espetáculo mediático.
Luc Tuymans, no fundo, é um pintor profundamente ético. Num mundo onde as imagens perderam todo o valor por terem sido reproduzidas e manipuladas em excesso, ele cria espaços de reflexão, momentos de pausa no fluxo incessante. As suas pinturas não são respostas, mas perguntas urgentes colocadas à nossa consciência coletiva.
O que torna o seu trabalho forte é precisamente o que o torna difícil: a sua recusa em confortar-nos nas nossas certezas, a sua insistência em mostrar-nos que a história nunca termina, que os fantasmas do passado continuam a assombrar o nosso presente. O maior perigo é a indiferença. E se há algo que as pinturas de Tuymans não nos permitem, é a indiferença.
Então, bando de snobs, da próxima vez que vir uma pintura de Tuymans, não se limite a acenar com a cabeça com um ar entendido. Deixe-se assombrar por essas imagens desbotadas, esses fantasmas do passado que se recusam a desaparecer. Pois é talvez aí, nesse desconforto que provocam os seus quadros, que reside a nossa última chance de lucidez.
- Merleau-Ponty, Maurice, Fenomenologia da percepção, Gallimard, Paris, 1945.
- Merleau-Ponty, Maurice, O Olho e o Espírito, Gallimard, Paris, 1964.
- Brecht, Bertolt, Pequeno Organon para o teatro, L’Arche, Paris, 1978.
- Brecht, Bertolt, Escritos sobre o teatro, L’Arche, Paris, 1972.
















