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Adriana Varejão e a história colonial do Brasil

Publicado em: 28 Março 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

A obra de Adriana Varejão explora as violências coloniais do Brasil através de superfícies de azulejos partidos de onde surgem vísceras pintadas. A sua manipulação dos azulejos desconstrói a herança portuguesa enquanto cria uma estética barroca singular.

Ouçam-me bem, bando de snobs, já estou farta destes artistas contemporâneos que se comportam como crianças comportadas. Adriana Varejão, ela, oferece-nos um estalo visual cuja bochecha ruborizada vão lembrar-se durante muito tempo. Esta brasileira nascida em 1964 no Rio de Janeiro não anda com rodeios, prefere os azulejos partidos de onde jorram entranhas sangrentas.

Varejão é sem dúvida uma das poucas artistas capazes de transformar uma casa de banho banal num manifesto político. As suas superfícies polidas e rachadas são como a pele de um país que esconde as suas feridas sob um verniz de modernidade. Quando ela expõe as suas “Ruinas de Charque”, estas estruturas arquitetónicas de onde transbordam vísceras pintadas, é todo o peso do passado colonial brasileiro que nos cai em cima. Estas obras são bombas-relógio antropológicas, que explodem com a violência de quatro séculos de história reprimida.

A estética de Varejão é deliberadamente ambivalente, oscilando entre sedução e repulsa. Ela prende o espectador em espaços azulejados de uma beleza clínica antes de os despedaçar para revelar os seus interiores caóticos. Este método evoca irresistivelmente o pensamento de Michel Foucault sobre a arquitetura como instrumento de poder. Como explicava o filósofo francês: “O espaço é fundamental em todo exercício do poder” [1]. Nos seus “Saunas” e “Banhos” monocromáticos, Varejão desconstrói esses espaços disciplinares, esses locais onde os corpos são simultaneamente controlados e libertados, para expor as falhas de um sistema de representação herdado dos colonizadores.

A sua utilização obsessiva do azulejo, esta telha de cerâmica de origem portuguesa, não é fortuita. O azulejo é um testemunho cultural que carrega as marcas de múltiplas influências: árabe, chinesa, europeia, africana. Estas telhas azuis e brancas contam a história de uma mestiçagem forçada, de uma crioula antes da letra. Quando Varejão se apropria delas, as deforma e faz sangrar, ela não critica só a herança colonial, ela digere-a, transforma-a, numa perfeita ilustração da antropofagia cultural teorizada por Oswald de Andrade no seu famoso “Manifesto Antropófago” de 1928.

Este processo de digestão cultural faz-me lembrar Jacques Derrida e a sua teoria da desconstrução. Em “De la grammatologie”, Derrida escreve: “Não há fora-texto” [2], sugerindo que nada existe fora de um contexto, de uma rede de significados. As obras de Varejão funcionam exatamente neste princípio: elas desvendam as camadas sucessivas de significados acumulados na arte colonial, despedaçam-nas e depois remontam-nas segundo uma lógica nova, subversiva.

A sua série “Polvo” é talvez o seu trabalho mais impactante sobre esta questão. Ao criar a sua própria paleta de tons de pele inspirada nos termos usados pelos brasileiros para descrever o seu tom de pele no censo de 1976, ela expõe a absurda das classificações raciais enquanto reconhece o seu poder persistente. Do “branquinha” (branco neve) ao “morenão” (grande preto), estes autorretratos quase idênticos revelam o quanto as nossas perceções da raça são socialmente construídas, arbitrárias e ainda assim terrivelmente consequentes.

A abordagem de Varejão é radicalmente diferente da de artistas europeus que se contentam em denunciar o colonialismo a partir da sua posição confortável. Ela não pretende estar fora do sistema que critica. Pelo contrário, coloca-se deliberadamente no centro, reconhecendo a sua própria implicação nesta história complexa. Como destaca o historiador de arte Jochen Volz, “ela faz uso da sua própria imagem, mas nenhuma dessas obras diz respeito ao autorretrato. Parece antes que a artista destaca o facto de estar implicada nesse passado” [3].

A obra de Varejão é profundamente erótica, não num sentido vulgar ou gratuito, mas na tradição barroca que sempre liga a carne à transcendência. O seu erotismo é o de Georges Bataille, para quem “o erotismo é a aprovação da vida até na morte” [4]. Esta tensão entre vida e morte, entre prazer e sofrimento, entre beleza e horror é constante no seu trabalho. As suas “Línguas e Incisões” e as suas “Ruínas de Charque” expõem a carne como sítio de palavra e silêncio, de desejo e violência.

Não pense que Varejão se limita a reproduzir azulejos para fazer bonito. A sua prática é infinitamente mais complexa e política. Ela nunca faz simples citações ou apropriações, pratica antes o que o crítico cubano Severo Sarduy chamava “substituição”, um procedimento tipicamente barroco que desloca o sentido original para estabelecer um novo [5]. Quando insere feridas abertas em cenas coloniais aparentemente inocentes, não está apenas a subverter essas imagens, está a revelar a sua violência inerente.

Mas o aspeto mais fascinante do seu trabalho é talvez a sua capacidade de brincar com o tempo. As suas fissuras, inspiradas nas cerâmicas da dinastia Song do século XI, evocam um tempo geológico antes que histórico. Como escreve o antropólogo Claude Lévi-Strauss sobre as cidades do Novo Mundo, tudo aí “parece em construção e já em ruínas” [6]. As obras de Varejão capturam perfeitamente essa temporalidade paradoxal, suspensa entre um futuro jamais alcançado e um passado jamais realmente ultrapassado.

Ao navegar constantemente entre essas temporalidades e geografias, Varejão cria o que o escritor martinicano Édouard Glissant chamaria de “poética da Relação”, um pensamento rizomático que se opõe à raiz única. “A raiz única é aquela que mata à sua volta enquanto o rizoma é a raiz que se estende ao encontro de outras raízes” [7], escrevia Glissant. A arte de Varejão é precisamente esse rizoma, uma cartografia tecida de diferentes culturas, eras e latitudes.

Há algo de profundamente cinematográfico na sua maneira de abordar a imagem. As suas saunas monocromáticas com perspetivas impossíveis evocam os espaços labirínticos de Stanley Kubrick (pense em “The Shining”, não é acaso que uma das suas obras se intitule “O Iluminado”). Mas, ao contrário de Kubrick, Varejão não procura criar um sentimento de alienação, explora antes as possibilidades de conexão num mundo fragmentado pela história colonial.

A sua manipulação dos padrões geométricos, nomeadamente nas suas obras inspiradas na Talavera mexicana, revela uma compreensão sofisticada da forma como as formas migram através das culturas. Ao isolar e ampliar esses padrões, ela mostra que a abstração geométrica não é apanágio exclusivo do pensamento ocidental branco. Da arte pré-colombiana às decorações corporais indígenas, dos azulejos de Athos Bulcão em Brasília aos padrões sagrados de Rubem Valentim, existem muitas raízes e destinos para uma “geometria sensível” [8].

Como não ficar espantado com a sua capacidade de transformar um simples azulejo em um campo de batalha ideológico? Essas superfícies aparentemente neutras tornam-se, sob o seu pincel, o palco de uma luta acirrada entre diferentes conceções do mundo. Em “Proposta para uma Catequese”, ela inverte literalmente o guião da catequese ao mostrar indígenas a comerem Cristo em vez de receberem passivamente a comunhão. Este gesto de “contra-conquista” barroca, como lhe chamou José Lezama Lima, é típico do seu método.

Mais recentemente, na sua série “Talavera”, apresentada na Gagosian em Nova Iorque em 2021, Varejão leva ainda mais longe esta abordagem ao explorar a tradição cerâmica mexicana, fruto por sua vez de um cruzamento entre técnicas espanholas e saberes indígenas. Como explica a curadora Luisa Duarte, “não se trata apenas de justapor geometria, ideal, límpida, organizada, com traços rizomáticos imprevisíveis próximos do domínio vital do corpo; trata-se também de especular sobre outra origem, e, por que não?, outro destino, para a abstração geométrica” [9].

O trabalho de Varejão lembra-nos constantemente que a arte nunca é inocente, nunca puramente estética. Está sempre entrelaçada em sistemas de poder, histórias de dominação e resistência. Mas em vez de se encerrar numa postura acusatória estéril, ela propõe uma visão mais complexa, mais matizada, que reconhece os traumas do passado ao mesmo tempo que imagina novas possibilidades para o futuro.

É sem dúvida isso que torna o seu trabalho tão relevante hoje, numa época em que vemos ressurgir por toda a parte movimentos reaccionários que promovem o reagrupamento identitário e o repúdio da diferença. Perante esta tentação do muro, da barreira, da fronteira fechada, a arte de Varejão relembra-nos que as nossas identidades são sempre já mestiças, sempre já em relação com o outro. Nesse sentido, a sua obra não é apenas uma crítica ao passado colonial, mas também uma proposta para um futuro descolonial.

Enquanto alguns se agarram desesperadamente a noções de pureza cultural, de comunidade imaginada fundada na semelhança, Varejão afirma a fecundidade do cruzamento, da mistura, do encontro. A sua poética da diferença é afinal um acto político dos mais radicais, convidando-nos a imaginar outras epistemologias, distintas dos discursos anthro/phallo/egocêntricos e totalizantes que dominaram até agora.

Como não ficar subjugado pela coerência de uma obra que, há várias décadas, explora incansavelmente os mesmos temas ao mesmo tempo que se renova constantemente? Das primeiras pinturas barrocas dos anos 1980 às instalações monumentais de hoje, Varejão construiu uma linguagem visual singular, imediatamente reconhecível mas nunca previsível.

Já vai sendo altura das instituições artísticas ocidentais reconhecerem plenamente a importância do seu trabalho, não como uma curiosidade exótica vinda do Sul global, mas como uma contribuição maior para os debates contemporâneos sobre identidade, história e poder. Porque Adriana Varejão não é apenas uma grande artista brasileira, é uma artista essencial para compreender o nosso mundo pós-colonial.


  1. Michel Foucault, “O olhar do poder”, entrevista com Jean-Pierre Barou e Michelle Perrot, in Bentham, “O Panóptico”, Paris, Belfond, 1977.
  2. Jacques Derrida, “Da gramática”, Paris, Éditions de Minuit, 1967.
  3. Jochen Volz, citado em “Adriana Varejão: Suturas, fendas, ruínas”, catálogo de exposição, Pinacoteca de São Paulo, 2022.
  4. Georges Bataille, “O Erotismo”, Paris, Éditions de Minuit, 1957.
  5. Severo Sarduy, “Escrito sobre un cuerpo”, São Paulo, Perspectiva, 1979.
  6. Claude Lévi-Strauss, “Tristes Trópicos”, Paris, Plon, 1955.
  7. Édouard Glissant, “Introdução a uma poética do diverso”, Paris, Gallimard, 1996.
  8. Roberto Pontual, “América Latina, geometria sensível”, catálogo de exposição, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 1978.
  9. Luisa Duarte, “Adriana Varejão: Por uma poética da diferença”, Gagosian Quarterly, 2021.
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Referência(s)

Adriana VAREJÃO (1964)
Nome próprio: Adriana
Apelido: VAREJÃO
Género: Feminino
Nacionalidade(s):

  • Brasil

Idade: 61 anos (2025)

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