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Angel Otero : Desconstruir o ato de pintar

Publicado em: 5 Setembro 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 9 minutos

Angel Otero revoluciona a pintura contemporânea com a sua técnica única das “oil skins” : ele pinta sobre plexiglass antes de arrancar essas peles de matéria pictórica para as recompor em tela. Este método inovador materializa os processos de memória, criando obras onde abstração e figuração dialogam com um poder expressivo notável.

Ouçam-me bem, bando de snobs. Quando Angel Otero arranca metodicamente as suas peles de tinta a óleo do plexiglass para as recompor em tela, ele não está apenas a manipular um material. Ele orquestra uma verdadeira arqueologia da consciência, onde cada gesto técnico se torna a expressão de uma filosofia do tempo reencontrado. Este pintor porto-riquenho, nascido em 1981 em Santurce, não se contenta apenas em pintar : ele desconstrói o próprio ato de pintar para melhor o reinventar, criando na sua trilha uma obra que questiona tanto a materialidade da arte como os mecanismos íntimos da memória.

A singularidade de Otero reside neste processo laborioso que ele desenvolveu ao longo dos anos. Ele começa por pintar sobre plexiglass, trabalhando em camadas sucessivas, depois deixa secar parcialmente esta matéria pictórica antes de a despir literalmente do seu suporte inicial. Estas “peles” de óleo, enrugadas, rasgadas, recolladas em novos suportes, carregam consigo as marcas desta violência criativa. Este método não é apenas um capricho técnico : constitui uma metáfora poderosa da própria condição memorial, onde o passado nunca nos chega intacto mas sempre alterado, deformado pelo tempo e pelas manipulações da consciência.

A obra de Otero está profundamente enraizada numa reflexão sobre a identidade caribenha e a condição diaspórica. Nascido em Porto Rico mas formado em Chicago e depois estabelecido em Nova Iorque, o artista carrega em si esta multiplicidade geográfica que caracteriza tantos artistas contemporâneos. As suas telas recentes, nomeadamente as expostas sob o título evocativo “The Sea Remembers” na Hauser & Wirth em 2023, desenvolvem um imaginário doméstico assombrado pela ausência. Cadeiras de rattan, banheiras com patas de leão, telefones com discagem, dentaduras em copos de água : todo um mobiliário afetivo povoam estas composições onde a figuração emerge do magma abstrato como memórias que sobem à superfície da consciência.

Esta abordagem encontra um eco perturbador na obra literária de Jorge Luis Borges [1], particularmente na sua conceção do tempo e da memória. Tal como o escritor argentino, Otero compreende que o passado só existe na sua reconstrução presente, sempre lacunar e deformada. Em “Fictions”, Borges escreve estas palavras proféticas : “O tempo é a substância de que sou feito”. Esta frase poderia servir de epígrafe a toda a obra de Otero, tão a sua prática artística parece materializar essa intuição de Borges. As peles de pintura que o artista manipula carregam consigo uma temporalidade estratificada, onde cada camada corresponde a um momento diferente da criação, mas também da memória pessoal e colectiva.

A técnica dos “oil skins” desenvolvida por Otero desde 2010 assemelha-se ao método literário de Borges que consiste em sobrepor referências, entrelaçar temporalidades, fazer do presente o lugar de convergência de todos os passados possíveis. Quando Otero risca as suas pinturas em plexiglas, ele reproduz gestualmente o que Borges realiza narrativamente: revela a artificialidade de toda reconstrução memorial, mostrando ao mesmo tempo que essa própria artificialidade é portadora de verdade. As deformações que as suas imagens pintadas sofrem não são acidentes: são a essência da sua abordagem, pois tornam visível o processo pelo qual a memória se constitui e se deforma.

Esta proximidade com a estética de Borges manifesta-se também na forma como Otero trata o espaço doméstico. Os seus interiores vazios dos seus habitantes lembram as casas labirínticas de Borges, esses espaços onde a própria arquitetura se torna metáfora da psique. Em “The House of Asterion”, Borges escreve: “La maison est grande comme le monde ; ou plutôt, elle est le monde”. Os interiores de Otero funcionam segundo a mesma lógica: não representam simplesmente espaços domésticos, mas dão forma plástica ao espaço mental onde se desdobram as memórias. Os objetos que povoam suas telas, esta cadeira tombada em “Birdsong”, este piano submerso em “The Sea Remembers”, não são simples naturezas mortas mas fragmentos de um mundo interior que busca reconstituir-se através da pintura.

A influência de Borges em Otero não se limita a esta concepção comum do tempo e do espaço: também toca a questão da identidade cultural. Borges, escritor argentino alimentado pela literatura europeia, passou a vida a questionar as relações entre centro e periferia, entre tradição e inovação. Otero, artista porto-riquenho formado nas instituições artísticas americanas, navega numa problemática similar. Seu trabalho recente testemunha essa tensão produtiva entre herança local e linguagem artística internacionalizada. Os azulejos que pontilham suas composições recentes remetem diretamente à arquitetura doméstica porto-riquenha, mas estão integrados numa estética que dialoga com os grandes mestres da abstração americana.

Esta dimensão cultural da obra de Otero não pode ser compreendida sem referência à antropologia do quotidiano desenvolvida por Michel de Certeau [2]. Em “L’Invention du quotidien”, de Certeau analisa as “artes de fazer” através das quais os indivíduos se apropriam do espaço e do tempo que lhes são impostos, desviando as estruturas dominantes para criar espaços de liberdade e expressão pessoal. A prática artística de Otero insere-se plenamente nessa lógica de desvio criativo. Ao manipular a pintura a óleo segundo modalidades inéditas, ele transforma um meio tradicional em ferramenta de expressão contemporânea.

Os oil skins de Otero podem ser lidos como uma encarnação plástica dessas “táticas” que de Certeau opõe às “estratégias” do poder. Onde a pintura tradicional impõe suas regras e suas limitações materiais, Otero desenvolve uma tática que lhe permite contornar essas limitações ao mesmo tempo que conserva os legados históricos do meio. Ele não rejeita a tradição pictórica, mas reinventa-a por dentro, criando obras que são ao mesmo tempo profundamente inovadoras e surpreendentemente fiéis ao espírito da grande pintura.

Esta abordagem tática manifesta-se particularmente na forma como Otero aborda a questão da autenticidade cultural. Em vez de reivindicar uma identidade porto-riquenha pura ou de se assimilar completamente à cultura artística norte-americana, ele inventa uma posição terceira que empresta de diferentes tradições sem nunca se reduzir a elas. As suas referências ao barroco espanhol coexistem com alusões ao expressionismo abstrato americano, mas essas influências nunca são citadas de forma literal: são sempre filtradas pelo seu processo de transformação material.

De Certeau mostra que as práticas do quotidiano estão sempre ligadas a uma dimensão temporal específica: inscrevem-se no instante presente ao mesmo tempo que incorporam a memória dos gestos passados. Esta temporalidade complexa encontra o seu equivalente exato na técnica de Otero. Cada camada de tinta carrega a marca dos diferentes momentos da sua criação: o tempo da pintura inicial sobre plexiglass, o tempo da secagem parcial, o da remoção, o da recomposição sobre tela. Esta estratigrafia temporal confere às obras de Otero a sua densidade particular, essa impressão de que elas contêm várias épocas simultaneamente.

A dimensão antropológica do trabalho de Otero aparece com uma força particular nas suas obras recentes dedicadas aos interiores domésticos. Estes espaços esvaziados dos seus habitantes, mas saturados de objetos pessoais, revelam o que de Certeau chama “espaço praticado”, esse espaço doméstico moldado pelos hábitos e pelos gestos quotidianos dos seus ocupantes. As cadeiras, mesas, banheiras e outros elementos mobiliários que Otero pinta nunca são neutros: levam a impressão dos corpos que os usaram, dos rituais que aí se desenrolaram.

Esta atenção ao quotidiano doméstico acompanha-se em Otero por uma reflexão sobre a transmissão cultural. As suas constantes referências à avó, à sua casa de Santurce, aos objetos familiares da sua infância, atestam uma vontade de preservar e transmitir uma memória familiar e comunitária. Mas essa transmissão não ocorre por reprodução fiel: passa pela transformação, deformação, reinvenção. Como de Certeau mostrou, a tradição nunca se perpetua de forma idêntica mas sempre através de adaptações e desvios criativos.

Esta dialética entre conservação e inovação constitui talvez o aspeto mais interessante do trabalho de Otero. Suas peles de óleo conservam materialmente as marcas da sua criação inicial ao mesmo tempo que as transformam radicalmente. Esta conservação pela transformação encontra o seu equivalente teórico no conceito de de Certeau dos artes de fazer: permitem preservar o essencial de uma cultura adaptando-a às condições atuais.

A evolução recente do trabalho de Otero testemunha uma maturidade artística notável. As suas exposições de 2022 a 2024, nomeadamente “Swimming Where Time Was” na Hauser & Wirth e “That First Rain in May” na mesma galeria, mostram um artista que assumiu plenamente a sua singularidade. As composições ganham em complexidade narrativa sem perder a sua força abstrata, revelando um equilíbrio subtil entre legibilidade figurativa e invenção formal.

Esta evolução acompanha-se de uma expansão do seu vocabulário plástico. Otero integra agora nas suas obras elementos escultóricos, nomeadamente em “Rayuela (Hopscotch)” onde combina cerâmica e metal forjado em referência às grades de ferro forjado da sua infância porto-riquenha. Esta abertura à escultura marca uma nova etapa na sua exploração das possibilidades expressivas dos seus materiais, ao mesmo tempo que confirma o seu apego às referências memoriais que alimentam o seu imaginário.

O impacto internacional de Otero testemunha a pertinência contemporânea da sua abordagem. As suas obras figuram agora nas coleções do Guggenheim Museum, do Museum of Contemporary Art de Chicago, do Istanbul Modern, revelando a capacidade da sua arte para dialogar com contextos culturais variados, mantendo ao mesmo tempo a sua especificidade. Este reconhecimento internacional não parece ter alterado a radicalidade da sua pesquisa: as suas últimas obras prosseguem a exploração das possibilidades expressivas das suas oil skins com uma inventividade renovada.

O lugar de Angel Otero na arte contemporânea não se limita à originalidade da sua técnica. Ele reside na sua capacidade para renovar as questões fundamentais da pintura, a materialidade, a temporalidade, a memória, através de uma abordagem que conjuga inovação formal e profundidade conceptual. Ao inventar uma técnica que materializa os processos memoriais, Otero criou uma linguagem plástica de singularidade notável, capaz de dar forma aos mecanismos mais subtis da consciência temporal.

A sua obra testemunha também uma capacidade rara de articular experiência pessoal e questionamento universal. As suas referências à infância portoriquenha, longe de limitar o alcance do seu discurso, conferem-lhe, pelo contrário, essa autenticidade emocional que permite à arte tocar para além das barreiras culturais. Ao transformar a sua própria memória em material artístico, Otero criou uma arte que fala à memória de cada um, revelando os mecanismos universais através dos quais construímos a nossa relação com o tempo e com o espaço.

O futuro nos dirá se esta obra conseguirá manter a sua força de inovação face aos desafios do mercado da arte contemporânea. Mas desde já, Angel Otero conseguiu criar um corpus artístico de coerência e originalidade notáveis, capaz de renovar a nossa compreensão do que pode ser a pintura hoje. Num mundo saturado de imagens, conseguiu inventar uma abordagem que devolve à materialidade pictórica a sua carga emocional e conceptual, provando que a arte de pintar não esgotou as suas possibilidades expressivas.


  1. Borges, Jorge Luis, Fictions, tradução para português, Paris, Gallimard, 1957.
  2. De Certeau, Michel, L’Invention du quotidien. 1. Arts de faire, Paris, Union générale d’éditions, 1980.
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Referência(s)

Angel OTERO (1981)
Nome próprio: Angel
Apelido: OTERO
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Porto Rico

Idade: 44 anos (2025)

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