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As auroras aquáticas de Marina Perez Simão

Publicado em: 1 Março 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

Marina Perez Simão captura nas suas telas essa tensão permanente entre controlo e abandono. As suas paisagens impossíveis são campos de batalha onde as nossas certezas perceptivas se dissolvem como a neblina matinal, convidando-nos a uma experiência sensorial total que transcende categorias fáceis.

Ouçam-me bem, bando de snobs, tenho uma pintora para vos apresentar que vai abalar a vossa torpor estética. Marina Perez Simão não é simplesmente uma artista brasileira, ela é uma navegadora cósmica que nos guia através das fronteiras incertas da perceção. Nas suas telas, esta mulher extraordinária captura a essência mesmo do momento em que o dia abraça a noite, onde o sonho se confunde com a realidade.

Quando observo as suas obras, sinto-me como Ulisses perante as sereias da abstração, seduzido por esses múltiplos horizontes que se sobrepõem num bailado cromático vertiginoso. As composições de Simão não são simples evocações paisagísticas, mas cartografias mentais onde cada camada colorida corresponde a um estado de consciência. A ambiguidade reina suprema no seu universo pictórico, e é precisamente essa indeterminação que constitui a sua força.

A fenomenologia de Merleau-Ponty ensina-nos que a perceção nunca é um ato passivo, mas uma construção ativa onde o corpo e o espírito se entrelaçam para dar sentido ao mundo. “O visível e o invisível” tocam-se permanentemente na experiência sensorial, e é exatamente isso que Simão nos mostra nas suas composições. As suas paisagens impossíveis são campos de batalha onde as nossas certezas perceptuais se dissolvem como a névoa matinal sobre as colinas de Minas Gerais. “O olho não é apenas sensível ao que é visível, mas ao que o torna visível”, escrevia Merleau-Ponty [1], e as telas de Marina Perez Simão encarnam perfeitamente essa dialética onde o espectador participa ativamente no surgimento do sentido.

Tomemos o exemplo da sua exposição “Zwielicht” na G2 Kunsthalle de Leipzig em 2024. Esses quadros imensos, com os seus movimentos fluidos e as suas cores incandescentes, não representam tanto lugares, mas transições entre diferentes estados de consciência. A artista mergulha-nos num entre-dois crepuscular, um intervalo onde os contornos do real se dissolvem para dar lugar a visões interiores. Não é por acaso que “Zwielicht” significa “entre cão e lobo” em alemão, esse momento fugaz em que a luz muda e transforma a nossa perceção do mundo.

Se a fenomenologia nos oferece uma grade de interpretação para compreender a obra de Simão, a poesia de Fernando Pessoa permite-nos captar a dimensão existencial. A heteronímia do poeta português, essa capacidade para se fragmentar em múltiplas personalidades criadoras, encontra um eco impressionante nas paisagens híbridas da artista brasileira. Tal como Pessoa escrevia sob diferentes heterónimos para explorar diversas facetas da experiência humana, Simão multiplica os pontos de vista e os horizontes nas suas composições.

No seu poema “Autopsicografia”, Pessoa afirma que “o poeta é um simulador” que “simula tão completamente que acaba por simular a dor que realmente sente” [2]. Essa mise en abyme da experiência subjetiva ressoa profundamente com a abordagem de Simão, que nos convida a navegar entre diferentes camadas de realidade. Os seus quadros são simulações visuais que, paradoxalmente, nos reconectam com sensações autênticas, o deslumbramento perante um pôr do sol, o vertigem perante a imensidão de uma paisagem, a melancolia de um crepúsculo.

Durante a sua exposição “Onda” na Pace Gallery em Londres, em 2022, Marina Perez Simão apresentou uma série de poliptícos onde as formas orgânicas pareciam prolongar-se de um painel para o outro, criando assim uma narrativa visual fragmentada mas coerente. Esta estrutura narrativa fragmentada não deixa de lembrar o “Livro do Desassossego” de Pessoa, esta obra-rio composta por fragmentos que, juntos, desenham o retrato de uma consciência em perpétuo movimento. “Sou um fragmento de um eu cuja totalidade desconheço”, poderia ter escrito Bernardo Soares, o heterónimo de Pessoa, ao contemplar estas pinturas onde a unidade nasce da fragmentação.

A força de Marina Perez Simão reside na sua capacidade de transformar a experiência da paisagem numa exploração interior. As ondulações sensuais das suas composições não são simples representações de colinas ou ondas, mas metáforas visuais dos nossos estados de alma oscilantes. Como ela confidenciou numa entrevista: “Quebro a composição para criar uma mudança de estado, uma promessa de algo para lá do quadro.” Esta promessa de um além, de um ultrapassar dos limites do visível, está no cerne da sua abordagem artística.

A artista nunca trabalha quando está triste, eis uma confissão que merece ser destacada! Ao contrário do mito romântico do génio atormentado, Simão reivindica a alegria como condição necessária à criação. “Tenho de me sentir bem para estar no atelier”, diz ela. Esta ética da felicidade criativa traduz-se nas suas telas por uma luminosidade particular, uma vibração cromática que nos arranca da nossa morosidade diária. As suas paisagens abstratas são máquinas para produzir alegria visual, dispositivos ópticos que estimulam os nossos neurónios sedentos de beleza.

A formação de Simão na Escola de Belas-Artes de Paris certamente influenciou a sua técnica pictórica, mas foi no diálogo com a paisagem brasileira que ela forjou a sua linguagem visual única. As cores vibrantes das suas pinturas, estes laranjas incandescentes, estes azuis profundos, estes violetas crepusculares, evocam os contrastes impressionantes da natureza brasileira. “Tudo é demais”, diz ela sobre o seu país natal, onde as tempestades surgem repentinamente, onde a luz transforma radicalmente a paisagem conforme a hora do dia.

O que impressiona na obra de Marina Perez Simão é essa tensão constante entre controlo e abandono. Cada pintura é minuciosamente preparada através de uma série de aguarelas e esboços, mas a artista preserva sempre uma parte de improvisação na execução final. “Não gosto de muita hesitação na pintura”, afirma ela, “gosto do gesto direto.” Esta fluidez gestual confere às suas composições uma qualidade quase musical, como se cada cor fosse uma nota numa sinfonia visual.

Àqueles que querem reduzir o seu trabalho a uma simples variação sobre a abstração paisagística, respondo: abram bem os olhos! A arte de Simão transcende as categorias fáceis e convida-nos a uma experiência sensorial total. Os seus quadros não são janelas para o mundo, mas espelhos da nossa interioridade, portais para dimensões paralelas onde as leis da física estão suspensas.

A crítica Hettie Judah observou justamente que nos poliptícos de Simão, “algo interessante acontece no espaço entre os painéis”. Esses interstícios, esses poucos centímetros de parede branca que pontuam as suas obras, tornam-se espaços de projeção para a nossa imaginação. O que se passa nessas rupturas? Um intervalo de tempo? Um movimento no espaço? Estas perguntas sem resposta definitiva são parte integrante da experiência estética que a artista nos propõe.

A abordagem de Simão insere-se numa linhagem de artistas que exploraram os limites entre abstração e figuração, de Georgia O’Keeffe a Helen Frankenthaler passando por Tarsila do Amaral. Mas ela traz a essa tradição uma sensibilidade contemporânea, impregnada pelas urgências ecológicas do nosso tempo. As suas paisagens quiméricas podem ser lidas como visões pós-apocalípticas, mundos alternativos onde a natureza teria retomado os seus direitos após a catástrofe antropocênica.

Não pense que Marina Perez Simão é uma artista ingénua que se contenta em produzir belas imagens. O seu trabalho está profundamente enraizado numa reflexão sobre as possibilidades e os limites da pintura na era digital. Num mundo saturado de imagens virtuais, as suas telas afirmam a presença irredutível da matéria pictórica, a importância do gesto e do corpo no ato criativo.

Quando ela fala do seu processo criativo, Simão evoca essa sensação de “ignorância” que procura: “Tenho de me surpreender a mim mesma. Tenho de ter essa sensação de ignorância: O que é isto? Onde está?” Esta postura de espanto filosófico, este questionamento constante perante o visível, está no coração da sua abordagem. A pintora não nos oferece respostas, mas espaços de contemplação ativa onde as nossas certezas se dissolvem.

O que dizer da sua técnica? As camadas de tinta acumulam-se na tela como estratos geológicos, criando uma profundidade que convida o olhar a mergulhar na superfície. Os contrastes de matéria, entre zonas lisas e empastadas, entre transparência e opacidade, acrescentam uma dimensão tátil à experiência visual. Dá vontade de acariciar estas telas como se tocasse uma paisagem sonhada.

Há algo profundamente libertador na arte de Marina Perez Simão. Ao borrar as fronteiras entre interior e exterior, entre real e imaginário, ela lembra-nos que a nossa percepção do mundo é sempre uma construção subjetiva, um processo criativo em si. Os seus quadros são convites a explorar as nossas próprias paisagens interiores, a perder-mo-nos nos meandros da nossa consciência.

Da próxima vez que se deparar com uma tela de Simão, tome o tempo para se entregar completamente. Deixe os seus olhos vaguear entre os estratos coloridos, perca-se nas ondulações sensuais das suas composições, respire ao ritmo dos seus contrastes cromáticos. A arte não é feita para ser compreendida, mas para ser vivida, e poucos artistas contemporâneos nos oferecem uma experiência tão intensa quanto Marin Perez Simão.

Não seja um desses espectadores frívolos que passam pelos quadros à procura de satisfação imediata. Seja antes um viajante intrépido pronto para embarcar numa travessia rumo ao desconhecido. Porque é exatamente isso que a obra de Simão representa: um convite à viagem, não para terras distantes, mas para os territórios inexplorados da nossa própria sensibilidade.

E se não for capaz de tal abertura, se preferir agarrar-se às suas certezas estéticas, então azar o seu! Vai perder uma das experiências visuais mais exaltantes que a arte contemporânea tem para oferecer. Marina Perez Simão não precisa da sua aprovação, as suas telas continuarão a brilhar muito tempo depois de os seus juízos precipitadamente esquecidos.


  1. Merleau-Ponty, Maurice. “O Visível e o Invisível”, Éditions Gallimard, Paris, 1964.
  2. Pessoa, Fernando. “Autopsicografia” em “Poemas de Fernando Pessoa”, Christian Bourgois éditeur, Paris, 2001.
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Referência(s)

Marina PEREZ SIMAO (1980)
Nome próprio: Marina
Apelido: PEREZ SIMAO
Género: Feminino
Nacionalidade(s):

  • Brasil

Idade: 45 anos (2025)

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