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As sublimes metamorfoses de Vik Muniz

Publicado em: 24 Abril 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

Vik Muniz transforma materiais ordinários, como açúcar, chocolate, resíduos, em obras de arte deslumbrantes que desafiam a nossa percepção. As suas fotografias capturam estas criações efémeras, obrigando-nos a questionar a fronteira entre original e cópia, entre matéria bruta e representação sofisticada.

Ouçam-me bem, bando de snobs, se acham que a arte contemporânea se resume a molduras douradas penduradas em galerias assépticas, enganem-se. Vik Muniz, este brasileiro nascido em 1961 em São Paulo, oferece-nos um choque visual de que desesperadamente precisávamos. Sim, este homem reinventa literalmente a nossa relação com as imagens ao transformar lixo em Marat, o chocolate em Medusa, e o açúcar em retratos de crianças caribenhas. A sua obra, mais do que um simples exercício de estilo, é uma dissecação clínica da nossa cultura visual contemporânea.

Muniz é o tipo de artista que nos faz atravessar um território inexplorado entre o original e a cópia, entre a imagem e a sua representação. Ele brinca constantemente com a nossa perceção, obrigando-nos a olhar duas, três, cem vezes a mesma obra. Quando se vê à distância o seu “Marat (Sebastiao)” da série “Pictures of Garbage”, avista-se a famosa pintura de Jacques-Louis David. Aproximem-se e descobrirão uma montagem de detritos de Jardim Gramacho, um dos maiores aterros sanitários do mundo situado perto do Rio de Janeiro. Foi aqui que Muniz trabalhou com os catadores, aqueles recolhedores de resíduos que sobrevivem ao reciclar materiais. Esta colaboração não é simplesmente artística, é profundamente social, com os lucros revertidos para esses trabalhadores marginalizados.

O que me agrada em Muniz é esta insistência em manipular a nossa perceção visual, como um prestidigitador que nos mostrasse os seus truques enquanto continua a iludir-nos. O seu método é transparente mas o resultado mantém-se mágico. Este paradoxo lembra-me inevitavelmente o pensamento de Marcel Duchamp que declarou: “São os espectadores que fazem os quadros” [1]. Duchamp, como Muniz, compreendia que a arte só existe neste espaço ambíguo entre o objeto e quem o percebe. A obra é simplesmente um desencadeador, um mecanismo que ativa a nossa própria experiência. Quando Muniz reproduz “A Bar at the Folies-Bergère” de Manet com pedaços recortados de revistas, não simplesmente copia uma imagem icónica, cria um novo objeto visual que contém simultaneamente o original e a sua reinterpretação. Obriga-nos a reconhecer o processo de construção da imagem, preservando o seu poder de evocação.

Mas atenção, não se enganem. Muniz não é um simples imitador técnico. A sua arte não é uma questão de virtuosismo manual, embora o possua em abundância. Não, o seu verdadeiro génio reside na sua capacidade de transformar o significado dos materiais que utiliza. Tomem a sua série “Sugar Children” onde fotografou crianças de trabalhadores nas plantações de cana-de-açúcar, depois recriou os seus retratos com açúcar. O resultado final não é simplesmente uma imagem bonita, mas um comentário pungente sobre como esses trabalhadores extraem literalmente a “doçura” das suas próprias vidas para satisfazer o nosso consumo ocidental. A matéria torna-se mensagem. O meio torna-se metáfora.

Esta abordagem faz-me lembrar a teoria literária de Roland Genette sobre a transtextualidade [2]. Genette explora como os textos se constroem em referência a outros textos pré-existentes, criando níveis de significado que ultrapassam o simples conteúdo. Muniz faz exatamente isso com as imagens. Cada obra é ao mesmo tempo uma referência à história da arte e uma criação nova que transcende o seu original. Tome a sua série “Pictures of Junk” onde reproduz obras-primas clássicas com lixo. Não é um simples exercício de citação, mas uma transformação completa que acrescenta camadas de significado. Quando reinterpreta “Leda e o Cisne” de Leonardo da Vinci utilizando detritos, não se limita a reciclar uma imagem famosa, questiona a nossa relação com a mitologia, a beleza e o nosso próprio património cultural. A Barbie abandonada que marca a decoração ao lado da perna de Leda não é apenas um detalhe divertido, mas um comentário sobre a forma como os nossos mitos contemporâneos coabitam com os antigos.

O que Muniz compreende perfeitamente é que a fotografia nunca foi um simples registo da realidade. Desde a sua invenção, tem sido manipulada, construída, encenada. Em 2023, quando 73 museus de história natural em todo o mundo colaboraram para inventariar 1,1 mil milhões de objetos, reconheceram simplesmente aquilo que Muniz demonstra há várias décadas: que o nosso mundo é constituído por objetos que adquirem o seu valor pela forma como os percebemos, classificamos e preservamos. A sua série “Museum of Ashes”, criada após o incêndio devastador do Museu Nacional do Brasil em 2018, é talvez a sua obra mais comovente. Ao utilizar as cinzas dos objetos destruídos para recriar as suas imagens, Muniz transforma a perda em memória, a ausência em presença.

A experiência de Muniz na imensa lixeira de Jardim Gramacho é reveladora. Ali descobriu aquilo a que chama “uma arqueologia dos desejos materiais”, camadas e camadas de objetos outrora preciosos, agora reduzidos a fragmentos irreconhecíveis. Neste purgatório material, encontrou uma verdade fundamental sobre a nossa cultura de consumo: somos definidos tanto pelo que descartamos quanto pelo que conservamos. Este tema ressoa profundamente com o pensamento do sociólogo Zygmunt Bauman sobre a “modernidade líquida” [3], onde nada é concebido para durar, onde identidades, relações e posses são constantemente substituídas, atualizadas, descartadas. Muniz visualiza esta teoria ao transformar este lixo em arte.

A crítica cultural de Muniz é aguçada mas nunca cínica. Há uma alegria evidente na sua metodologia, um prazer quase infantil em brincar com os materiais, experimentar, enganar o olhar. Há algo profundamente democrático na sua abordagem. Ao usar materiais quotidianos como chocolate, ketchup, fio, pó, ele desacraliza a arte ao mesmo tempo que eleva o ordinário. Qualquer pessoa pode compreender e apreciar uma imagem feita de manteiga de amendoim e compota. Mas esta acessibilidade oculta uma sofisticação intelectual notável.

Formado no contexto repressivo do Brasil dos anos 1970, Muniz aprendeu a comunicar através de metáforas, a esconder mensagens em imagens aparentemente inocentes. Esta experiência certamente influenciou a sua prática artística. Como declarou ele próprio: “Prefiro que as imagens sejam como canções de amor, que sejam fáceis, sabe, para que você se abra a elas” [4]. Esta abordagem acessível esconde uma complexidade considerável, uma reflexão profunda sobre a própria natureza da representação.

O que realmente distingue Muniz de tantos outros artistas contemporâneos é a sua recusa da abstração pura. Ele permanece resolutamente ligado à imagem reconhecível, ao poder da iconografia familiar. Num mundo artístico frequentemente dominado pelo incompreensível e pelo esotérico, esta clareza visual é refrescante. Mas não se engane, a sua legibilidade não é uma concessão à facilidade. É uma escolha deliberada, uma estratégia para nos envolver numa conversa mais profunda sobre como as imagens moldam a nossa compreensão do mundo.

Quando Muniz manipula objetos físicos para criar as suas obras, ele lembra-nos que todas as imagens são construções. Mesmo a fotografia mais “direta” implica escolhas, enquadramentos, manipulações. Tornando este processo explícito, convida-nos a ser espectadores mais críticos, mais conscientes. É um ato político num mundo saturado de imagens que tentam fazer-se passar pela realidade.

A metamorfose está no coração da prática de Muniz. Não admira que ele cite As Metamorfoses de Ovídio como o seu livro preferido, com a sua abertura “Proponho-me a contar as metamorfoses das formas em corpos novos” [5]. Cada obra de Muniz é uma metamorfose, de materiais em imagens, de imagens em ideias. Esta transformação contínua reflete a nossa própria experiência num mundo em constante mudança.

E, no entanto, apesar de toda esta complexidade conceptual, a arte de Muniz permanece profundamente humana. As suas colaborações com as crianças de rua no Brasil, com os trabalhadores de Jardim Gramacho, testemunham um compromisso sincero com as comunidades marginalizadas. Ele usa a sua arte não apenas para comentar o mundo, mas para o mudar activamente, para criar conexões, para transformar vidas. As crianças que participaram no seu projecto “Invisible Objects” aprenderam a visualizar os seus desejos, a criar objectos que representam as suas aspirações e a interiorizá-los de modo a que ninguém lhes possa tirar. É uma lição poderosa de empowerment através da imaginação.

Há uma contradição produtiva na obra de Muniz. As suas fotografias são frequentemente documentos de obras efémeras, desenhos de chocolate que derretem, arranjos de lixo que se dispersam, retratos de açúcar que se dissolvem. A imagem fotográfica torna-se assim não um simples registo, mas o único testemunho de um momento de criação que já não existe. Esta tensão entre permanência e impermanência, entre o objecto e a sua representação, está no coração da sua prática. Lembra-nos que toda a arte existe nesse espaço intermédio entre a criação e a percepção, entre a intenção e a interpretação.

O que torna Vik Muniz tão extraordinário não é simplesmente a sua virtuosidade técnica ou a sua engenhosidade conceptual. É a sua capacidade de nos fazer ver o mundo de forma diferente, de transformar a nossa percepção não apenas da arte, mas da realidade quotidiana que nos rodeia. Depois de ver o seu trabalho, nunca mais olhará para um monte de lixo, uma tigela de xarope de chocolate ou um punhado de açúcar da mesma maneira. E não é esse o verdadeiro poder da arte, fazer-nos ver o extraordinário no ordinário, o sublime no banal, a beleza no inesperado?

Num mundo onde a arte contemporânea parece frequentemente desconectada da experiência quotidiana, Muniz oferece-nos uma visão alternativa: uma arte que envolve, questiona, transforma. Uma arte que não se limita a ser “sobre” algo, mas que realmente encarna as suas ideias na sua própria materialidade. Uma arte que não nos deixa indiferentes, mas que nos obriga a repensar a nossa própria relação com as imagens que nos rodeiam. Uma arte, finalmente, que nos recorda que a verdadeira alquimia não é transformar o chumbo em ouro, mas transformar a nossa perceção do mundo.


  1. Marcel Duchamp, numa conferência no Museum of Modern Art, Nova Iorque, 1961.
  2. Gérard Genette, “Palimpsestos: A literatura em segundo grau”, Éditions du Seuil, 1982.
  3. Zygmunt Bauman, “A Vida Líquida”, Éditions du Rouergue, 2006.
  4. Vik Muniz, numa entrevista com Mark Magill para a BOMB Magazine, 1 de outubro de 2000.
  5. Ovídio, “As Metamorfoses”, Livro I, versos 1-2, tradução de Georges Lafaye.
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Referência(s)

Vik MUNIZ (1961)
Nome próprio: Vik
Apelido: MUNIZ
Outro(s) nome(s):

  • Vicente José de Oliveira Muniz

Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Brasil

Idade: 64 anos (2025)

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