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Terça-feira 18 Novembro

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Calvin Marcus e a liberdade de desagradar

Publicado em: 14 Novembro 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 9 minutos

Calvin Marcus trabalha em séries visualmente distintas, passando de soldados mortos monumentais a peixes cerâmicos em miniatura. Baseado em Los Angeles, ele inventa para cada conjunto novas abordagens materiais, abolindo as fronteiras entre pintura, escultura e instalação. Sua obra investiga territórios psíquicos perturbadores com um tom impassível que mantém o espectador numa inquietação produtiva.

Ouçam-me bem, bando de snobs: Calvin Marcus nunca vos pedirá permissão para vos desagradar. Este artista californiano, nascido em São Francisco em 1988, constrói há uma década uma obra que recusa obstinadamente toda forma de conforto intelectual. Suas pinturas de soldados mortos, seus autorretratos com a língua de fora, seus esturjões desmedidos espalhados por telas compridas como limusinas, tudo isso faz parte de uma estratégia deliberada de evasão, de uma recusa sistemática em se deixar encaixar em qualquer caixa. Marcus trabalha em séries estilisticamente distintas, desenvolvendo para cada corpus novas metodologias materiais que exploram temas inquietantes, tanto psíquicos quanto sociais, através de uma variedade de meios. Como ele mesmo explica sem rodeios: “Não sinto nenhuma lealdade a um meio particular, deixo a ideia ditar a forma e parto daí” [1].

Esta fluidez formal não é um capricho de esteta em busca de reconhecimento. Revela, ao contrário, uma postura filosófica profundamente enraizada no pensamento existencialista, a de um artista que reivindica a liberdade como valor central da sua prática. Questionado sobre sua relação com a razão e a lógica, Marcus responde com uma franqueza desarmante: “A minha relação com a razão é o meu interesse pela mudança de si; reconhecer que a liberdade é o que eu realmente quero para mim e para a minha arte” [2]. Esta declaração ressoa com uma acuidade particular quando confrontada com os conceitos desenvolvidos por Jean-Paul Sartre em L’être et le néant. Para Sartre, a existência humana é definida pela sua liberdade radical, por essa capacidade, e essa condenação, de se escolher constantemente. O homem de Sartre está “condenado a ser livre”, lançado num mundo sem essência pré-estabelecida, obrigado a definir-se pelos seus atos. Marcus parece ter interiorizado esta lição com uma inteligência notável. Recusando-se a desenvolver uma “marca” reconhecível, mutando estilisticamente de uma exposição para outra, ele inscreve-se nesta tradição existencialista que faz da liberdade não um luxo, mas uma necessidade ontológica.

No entanto, essa liberdade reivindicada por Marcus nunca é leve nem despreocupada. Ela carrega o peso da angústia existencial, aquela náusea sartriana que surge quando se toma consciência da própria contingência. As suas séries, os soldados mortos de 2016, os peixes cerâmicos sorridentes, as pinturas de erva meticulosamente reproduzidas, funcionam como tantas explorações de situações limites onde o absurdo disputa com o trágico. A série Were Good Men, apresentada na Clearing em 2016, oferece um exemplo particularmente impressionante dessa tensão. Em trinta e nove telas monumentais, Marcus apresenta figuras de soldados caídos em combate, retratados num estilo que evoca desenhos infantis, com seus traços grosseiros e suas cores primárias. Esses corpos contorcidos com rostos inchados, tingidos de violeta, verde ou castanho, com olhos esbugalhados e longas línguas cor-de-rosa pendentes, jacinham sobre massas herbáceas de um verde vibrante. A força da instalação residia na escala desmesurada das telas e na sua disposição labiríntica, criando uma experiência espacial opressiva que literalmente prendia o espectador num universo de morte estilizada. Essas imagens, paradoxalmente silenciosas visualmente e eticamente, colocam questões vertiginosas sobre identidade masculina, representação, poder e a pulsão de autodestruição.

A obra de Marcus encontra aliás um eco perturbador no teatro do absurdo, e mais particularmente no universo de Samuel Beckett. Tal como as personagens de Beckett, prisioneiras de situações incompreensíveis e repetitivas, os sujeitos de Marcus parecem suspensos numa temporalidade indefinida, entre presença e ausência, entre ser e nada. Tomemos Esperando Godot, essa peça fundamental do teatro do absurdo onde Vladimir e Estragon esperam indefinidamente um Godot que nunca chegará. A espera, em Beckett, não está orientada para um objetivo mas constitui a própria essência da existência. Da mesma forma, os soldados mortos de Marcus não contam uma história de guerra particular; eles encarnam a guerra em geral, despida de qualquer contexto político ou social específico. São figuras à espera de sentido, corpos suspensos num estado que recusa tanto a glorificação heróica como a denúncia militante. Essa neutralidade aparente, longe de ser uma fraqueza, pode ser a força subversiva dessas pinturas. Elas confrontam-nos com a absurda violência organizada sem nos oferecer o conforto moral de uma posição ideológica clara.

O paralelo com Beckett aprofunda-se quando se examina a estrutura serial do trabalho de Marcus. Tal como Beckett repete situações e motivos numa busca obstinada de um núcleo de verdade sempre evasivo, Marcus revisita certos temas, o autorretrato demoníaco, os objetos do quotidiano magnificados ou deformados, em variações que não progridem linearmente mas giram à volta de um centro ausente. Em Fim de Partida, Beckett encena Hamm, cego e paralítico, e o seu criado Clov, num ritual diário desprovido de finalidade. O mundo lá se desintegra lentamente, sem catástrofe, numa agonia que se recusa a terminar. As cerâmicas dos peixes sorridentes de Marcus, apresentadas nos seus diferentes contextos (um prato de esparguete, uma concha de ostra), possuem essa mesma qualidade de estranheza familiar, essa oscilação entre ingenuidade e ameaça que caracteriza o universo de Beckett. Esses pequenos mundos auto-contidos, ao mesmo tempo frágeis e herméticos, parecem tão privados, e tão universais, quanto as profundezas fervilhantes da imaginação de Marcus.

A questão da escala, recorrente no trabalho de Marcus, é particularmente interessante. As suas telas podem atingir o comprimento de uma limousine para acomodar esturjões anormalmente longos; as suas pinturas de relva magnificam detalhes normalmente relegados ao plano de fundo até se tornarem o único tema de composições quadradas obsessivas. Este jogo de escala não é gratuito. Funciona como um dispositivo de ativação do espaço de exposição e de perturbação da experiência do espetador. Ao aumentar desmesuradamente certos elementos, Marcus obriga-nos a reconsiderar a nossa relação com o mundo das aparências. O que parecia banal, uma ponta de relva, um peixe em miniatura, adquire subitamente uma presença monumental que altera a nossa perceção. Esta estratégia recorda os processos do cinema expressionista, onde a distorção espacial servia para exteriorizar estados psicológicos. Em Marcus, a escala torna-se uma linguagem que expressa a inquietante estranheza do real. As mudanças inesperadas de escala e a estranheza que delas resulta constituem um tema marcante na sua prática, criando efeitos visuais que oscilam entre o encanto e o grotesco.

Seria tentador ler a obra de Marcus apenas através do prisma do surrealismo, etiqueta que o artista rejeita explicitamente: “Não, mas eu compreendo porque alguém poderia pensar que eu me interessasse por isso” [2]. Esta negação é reveladora. Marcus não procura aceder a qualquer inconsciente coletivo nem libertar as forças do sonho. A sua abordagem é mais pé no chão e, paradoxalmente, mais destabilizadora. Ele trabalha no registo do pince-sans-rire, aquele tom neutro e impassível que recusa a ênfase enquanto transmite conteúdos profundamente perturbadores. Os seus quadros “parecem enganadoramente reconhecíveis à primeira vista, seja pela temática, pela cena ou pelo absurdo apresentado, mas com o mínimo empenho, o sentido cresce frequentemente até que a própria ambiguidade parece monstruosa” [3]. Esta capacidade de revelar o lado obscuro de um objeto, de fazer emergir por uma ampliação intensa um terror real ou imaginado, ou uma inquietação latente, constitui um dos talentos distintivos de Marcus.

Voltemos por um momento a esta noção de liberdade que parece assombrar o trabalho de Marcus. Num clima artístico contemporâneo onde existe “um desejo de desenvolver algo que tem quase um estatuto icónico de marca”, Marcus reivindica o direito à esquiva, à fluidez, à mudança perpétua [4]. Esta posição não é sem lembrar a crítica que Sartre fazia à “má-fé”, essa tendência humana para se fixar em papéis predefinidos para fugir à angústia da liberdade. O artista que desenvolve uma “assinatura” reconhecível condena-se à repetição, fecha-se numa essência que precede e limita a sua existência. Marcus recusa esta facilidade com uma determinação feroz. As suas exposições, descritas como “panoramas estreitamente construídos” e “apresentações labirínticas”, amplificam o efeito inquietante das suas obras enquanto criam experiências imersivas que prendem e desorientam o espetador. Esta organização do espaço nunca é inocente: participa da mesma vontade de perturbação, da mesma desconfiança em relação ao conforto perceptivo.

A trajetória de Marcus, desde as suas primeiras exposições na Public Fiction e Peep-Hole até à sua participação na Bienal de Whitney em 2019 e suas recentes exposições institucionais no Museum Dhondt-Dhaenens, na Bélgica, revela uma ascensão fulgurante no mundo da arte contemporânea. As suas obras fazem agora parte das colecções permanentes do Museum of Modern Art de Nova Iorque, do Musée d’Art Moderne de Paris, do Los Angeles County Museum of Art, entre outras instituições importantes. Este reconhecimento institucional poderia parecer contraditório com a postura anti-sistémica do artista. Mas Marcus compreendeu que se pode jogar conforme as regras sem ser ingénuo, aceitar as regras do mercado da arte sem renunciar à liberdade criativa. A sua abordagem lembra a de Philip Guston, uma das suas principais influências, que abandonou o expressionismo abstracto no auge da sua glória para regressar a uma figuração caricata perturbadora. Guston, como Francis Bacon e Paul Thek, outras referências citadas por Marcus, recusava a complacência e não hesitava em trair as expectativas do seu público para permanecer fiel à sua própria necessidade interior.

O futuro de Marcus permanece deliberadamente imprevisível. É precisamente isso que torna o seu trabalho tão estimulante. Num mundo da arte muitas vezes preso aos seus próprios códigos, onde o reconhecimento passa pela identificação imediata de um estilo, Marcus propõe uma alternativa rara: a de um artista que se reinventa constantemente, que aceita o risco de desagrad ar e desconcertar para preservar a sua liberdade. As suas obras não procuram agradar nem chocar pelo simples prazer da provocação. Colocam questões incómodas sobre identidade, representação, violência, masculinidade, sem nunca impor respostas definitivas. Confrontam-nos com a absurdidade fundamental da existência, recusando ao mesmo tempo o cinismo niilista. Neste aspeto, inserem-se plenamente na tradição existencialista que reconhece o absurdo não como uma fatalidade paralisante mas como o ponto de partida de uma liberdade autêntica.

A prática de Marcus lembra-nos que a arte, na sua melhor expressão, não é um produto de consumo cultural mas uma experiência que nos desestabiliza e nos força a reconsiderar as nossas certezas. Os seus soldados mortos não glorificam a guerra mas também não a condenam de forma simplista; os seus autorretratos demoníacos não revelam nenhuma verdade psicológica transparente; as suas meticulosas pinturas de relva não celebram ingenuamente a natureza. Tudo na sua obra resiste à interpretação unívoca, mantém uma tensão produtiva entre significados contraditórios. Esta ambiguidade não é uma fraqueza mas a marca de uma inteligência artística que compreende que o mundo contemporâneo não se deixa captar por fórmulas simples. Perante a complexidade do real, Marcus escolhe a multiplicação de abordagens, a exploração sem fim, a recusa em cristalizar-se. Ele convida-nos a fazer o mesmo: aceitar a incerteza, abraçar a liberdade no seu aspeto mais vertiginoso. É um risco, um desafio desconfortável, muitas vezes desconcertante. Mas é também isso que faz do seu trabalho uma das aventuras artísticas mais estimulantes da sua geração. A obra de Calvin Marcus constitui assim um território instável onde a beleza convive com o mal-estar, onde o humor flerta com o horror, onde cada certeza é imediatamente desmentida. É precisamente nesta instabilidade que reside a sua força: obriga-nos a manter-nos despertos, vigilantes, incapazes de nos acomodar a hábitos perceptivos confortáveis. Faz de nós, espectadores, cúmplices involuntários de uma busca que nunca terá fim, de uma liberdade que nunca conhecerá descanso.


  1. Site oficial de Karma, biografia de Calvin Marcus.
  2. Flaunt Magazine, entrevista com Ben Noam, “Calvin Marcus: Home is where the undulating, wise, and aquarist scale is”.
  3. David Kordansky Gallery, texto para Frieze Seoul 2022.
  4. Louisiana Channel, “Calvin Marcus: I Want to Be Far from Polite”, junho de 2022.
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Referência(s)

Calvin MARCUS (1988)
Nome próprio: Calvin
Apelido: MARCUS
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Estados Unidos

Idade: 37 anos (2025)

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