Ouçam-me bem, bando de snobs: Carroll Dunham pinta a América tal como ela é, sem maquilhagem nem complacência, com a brutalidade de um psicanalista que trocou o seu divã por um pincel. Há várias décadas, este homem disseca os nossos impulsos mais crus em telas que têm o efeito de estalos dados diretamente na nossa consciência burguesa. As suas últimas obras, recentemente expostas na Max Hetzler em Londres em Open Studio & Empty Spaces, confirmam o que já sabíamos: Dunham não pinta, ele opera a coração aberto no inconsciente coletivo ocidental.
É preciso aceitar a evidência: a obra de Carroll Dunham insere-se na linha direta do surrealismo, mas num surrealismo americano, livre das pretensões poéticas europeias. Onde André Breton procurava “mudar a vida” pela escrita automática, Dunham muda a nossa percepção pelo que se poderia chamar “pintura automática”. As suas personagens antropomórficas, esses famosos “dickheads” com nariz fálico que assombram as suas telas desde os anos 1990, não são criaturas de fantasia mas arquétipos junguianos saídos diretamente do nosso inconsciente coletivo.
O próprio artista reconhece: ele inspira-se na “arte histórica, mas também na cultura pop incluindo a ficção científica e os desenhos animados”, revisitando “os temas duradouros que compõem a nossa existência” [1]. Esta abordagem não é casual. Revela uma compreensão profunda dos mecanismos do inconsciente tal como descritos por Sigmund Freud em A Interpretação dos Sonhos. As imagens de Dunham funcionam como sonhos acordados, misturando o recalcado sexual com referências culturais populares para criar uma linguagem pictórica de eficácia impressionante.
O surrealismo histórico promovia a “resolução dos principais problemas da vida” através do automatismo e da escrita espontânea. Dunham, por sua vez, resolve as nossas contradições americanas contemporâneas por uma figuração que assume plenamente a sua vulgaridade. As suas banhistas com formas geométricas e os seus lutadores de corpos desmesurados não procuram sublimar o instinto mas expô-lo em toda a sua crueza. É nisso que Dunham ultrapassa os seus predecessores europeus: ele não foge à realidade pelo onirismo, mas confronta-a de forma explícita.
A influência da psicanálise na arte de Dunham não é mera inspiração, mas um método de trabalho. Como um analisando no divã freudiano, o artista deixa emergir as suas associações livres na tela. Os seus desenhos diários, que ele próprio compara a um diário íntimo, funcionam como sessões de análise onde o inconsciente dita a lei ao consciente. Esta abordagem explica porque as suas personagens escapam a qualquer vontade narrativa coerente para se transformarem em fragmentos psíquicos puros, “clichés do inconsciente” para usar a expressão de Breton.
A dimensão arquetípica do seu trabalho torna-se ainda mais evidente quando se observa a evolução das suas séries. As suas “Bathers” dos anos 2000, essas mulheres nuas com cabelos dreadlocks que se banham em paisagens edênicas, não são pin-ups mas incorporações do eterno feminino junguiano. Elas trazem em si toda a ambivalência da nossa relação com a natureza e a sexualidade, oscilando entre a inocência primitiva e o conhecimento corrompido. Dunham pinta assim os nossos Édenes perdidos com a precisão de um cartógrafo da alma.
Esta dimensão psicanalítica da sua arte encontra o seu apogeu nas suas obras mais recentes da série “Qualiascope”. O próprio título, um neologismo erudito que mistura “qualia” (as propriedades qualitativas da experiência consciente) e “scope” (o instrumento de observação), revela a ambição do artista: observar cientificamente os mecanismos da percepção e da consciência [2]. Estas telas funcionam como máquinas para revelar o inconsciente, “qualiascopes” pictóricos que nos mostram o que recusamos ver em nós mesmos.
Mas o que realmente distingue Dunham dos seus contemporâneos é a sua compreensão inovadora do espaço pictórico como arquitetura da mente. Esta dimensão surge com uma força particular nas suas últimas obras, onde o artista integra a representação do seu próprio atelier nas suas composições. Esta mise en abyme não é um exercício de estilo, mas uma revelação da própria natureza da criação artística.
A arquitetura, desde Vitrúvio, baseia-se em três princípios fundamentais: a solidez (firmitas), a utilidade (utilitas) e a beleza (venustas). Dunham desvia estes conceitos para fazer deles os pilares de uma arquitetura psíquica. Os seus espaços pintados possuem a sua própria solidez estrutural, a do inconsciente que resiste a todos os ataques da razão. Eles têm a sua própria utilidade, a de revelar os nossos impulsos reprimidos. E alcançam a sua beleza particular, essa beleza convulsiva cara aos surrealistas que nasce do choque entre o esperado e o inesperado.
A influência de Andrea Palladio na arquitetura ocidental encontra aqui um eco inesperado. Assim como o arquiteto veneziano teorizava a villa perfeita, Dunham teoriza o atelier perfeito como lugar de revelação da alma. Os seus Open Studio não são representações de espaços de trabalho, mas planos arquitetónicos do inconsciente. Cada elemento é disposto segundo uma lógica que escapa à razão mas obedece às leis secretas do desejo.
Esta abordagem arquitetónica da pintura está enraizada numa tradição que remonta às Prisons de Piranèse, estas gravuras do século XVIII que representavam arquiteturas carcerárias impossíveis. Mas, enquanto Piranèse criava espaços de opressão, Dunham concebe espaços de libertação. Os seus ateliers pintados são prisões cujas barras foram quebradas pela força da arte. O artista aparece como um prisioneiro liberto, nu e triunfante, num espaço que é ao mesmo tempo o seu atelier real e o teatro do seu imaginário.
A inovação de Dunham reside na sua capacidade de fazer da arquitetura uma personagem a par inteira das suas composições. As paredes dos seus ateliers pintados não são meros cenários, mas actores da dramaturgia pictórica. Elas enquadram, constrangem, libertam alternadamente as figuras humanas que evoluem dentro dos seus limites. Esta antropomorfização do espaço arquitectónico revela uma compreensão profunda das ligações entre psíquico e ambiente, entre interioridade e exterioridade.
A influência dos arquitectos desconstrutivistas como Bernard Tschumi ou Daniel Libeskind sente-se aqui, não na forma, mas no espírito. Tal como esses arquitectos quebram as convenções espaciais para revelar novos modos de habitar, Dunham quebra as convenções pictóricas para revelar novos modos de ser. Os seus espaços pintados possuem essa qualidade destabilizadora própria da arquitetura desconstrutivista: obrigam-nos a repensar a nossa relação com o espaço e, por extensão, connosco mesmos.
Esta dimensão arquitetônica da sua obra atinge o auge nas suas composições mais recentes, onde o atelier se torna uma metáfora da consciência [3]. Os objetos representados nele ( cavaletes, telas, pincéis ) funcionam como atributos psíquicos, ferramentas da alma e não instrumentos materiais. Dunham revela-nos assim que todo atelier de artista é, antes de mais, um laboratório do espírito, um lugar onde o pensamento ganha forma na matéria.
Carroll Dunham pinta a América contemporânea com a ferocidade de um Jérôme Bosch do século XXI. Suas criaturas disformes, suas paisagens psicadélicas, suas cenas de cópula primitiva revelam uma nação obcecada pelo sexo e pela violência, incapaz de assumir seus impulsos de outra forma senão pela pornografia ou pela guerra. Assim, o artista torna-se o cronista impiedoso de uma civilização em crise, de um país que perdeu seus referenciais morais e espirituais.
Esta dimensão crítica da sua obra escapa com demasiada frequência aos comentadores, ofuscados pela virtuosidade técnica do artista. No entanto, os “Wrestlers” de Dunham, esses lutadores nus que confrontam-se em paisagens desoladas, não são meros exercícios de estilo, mas alegorias políticas de uma violência inaudita. Eles encarnam a América trumpista, essa América da brutalidade assumida que prefere a força à negociação, a dominação à cooperação.
Os “homens e mulheres de Carroll Dunham têm físicos estereotipados, com características imediatamente reconhecíveis”, mas “escapam a qualquer referência à pornografia” pela sua “neutralidade e objetividade” [4]. Esta observação revela toda a subtilidade da abordagem do artista. Ao representar o sexo com a frieza de um anatomista, Dunham denuncia a hipersexualização da sociedade americana, revelando ao mesmo tempo o que ela esconde: a incapacidade de viver serenamente a sua sexualidade.
A arte de Dunham funciona como um espelho distorcido projetado à América contemporânea. As suas banhistas de formas impossíveis revelam a obsessão americana pela transformação corporal, essa fuga perpétua perante o envelhecimento e a morte. As suas personagens masculinas com nariz fálico denunciam uma masculinidade tóxica que só se define pela agressão e dominação. As suas paisagens paradisíacas manchadas pela presença humana ilustram a destruição sistemática da natureza pela indústria e ganância.
Esta dimensão crítica atinge o seu auge nas obras mais recentes, onde o artista representa cenas de acasalamento com uma crueza impressionante. Estes “Proof of Concept” não são obras pornográficas, mas estudos antropológicos sobre a animalidade do homem ocidental. Dunham revela aí o que a nossa civilização prefere esconder: somos apenas primatas civilizados, bestas que aprenderam a falar mas não a amar.
A influência da arte tribal africana e oceânica na obra de Dunham não é fortuita. Tal como as máscaras dogons ou os totens maori, as suas personagens possuem essa potência evocativa que transcende o realismo para tocar no essencial. Revelam o homem por trás do cidadão, a besta por trás do consumidor, o impulso por trás da razão. Nesse sentido, Dunham junta-se à tradição das “Artes primárias” que nunca separam a estética do espiritual, o belo do verdadeiro.
Hoje, Carroll Dunham pertence a essa geração de artistas que atravessaram todas as modas sem jamais se renegarem. Formado nos anos 1970 em contacto com o minimalismo triunfante, soube inventar uma linguagem pictórica pessoal que empresta tanto ao surrealismo quanto à banda desenhada, tanto à arte bruta quanto ao expressionismo abstrato. Esta capacidade de síntese faz dele um dos pintores mais importantes da sua geração, ao lado de David Salle ou Julian Schnabel.
Mas ao contrário de seus contemporâneos, Dunham nunca cedeu às seduções do mercado de arte. Suas telas permanecem fiéis à sua inspiração inicial, aquela de uma arte que incomoda mais do que decora, que questiona mais do que tranquiliza. Suas exposições recentes confirmam essa constância: “Andar na linha entre ordem e caos, figuração e abstração, superficialidade e profundidade pictórica”, o artista continua explorando os territórios do inconsciente com a rigor científico e a paixão de um poeta.
A influência de Dunham nas gerações mais jovens de artistas torna-se cada vez mais evidente. Sua capacidade de misturar cultura alta e baixa, arte erudita e cultura popular, anuncia as preocupações da arte contemporânea do século XXI. Artistas como Matthew Ritchie ou Inka Essenhigh lhe devem muito, mesmo que nem sempre o reconheçam. Dunham abriu caminho para uma arte que assume suas contradições sem tentar resolvê-las, uma arte que aceita ser vulgar para melhor revelar nossa humanidade.
O futuro dirá se Carroll Dunham permanecerá na história da arte como um inovador ou como um epígono. Mas uma coisa é certa: ele terá conseguido criar um universo pictórico de coerência e potência de evocação raras. Seus personagens, uma vez vistos, não se esquecem mais. Eles se instalam em nossa memória visual como vírus benéficos que contaminam pouco a pouco nossa percepção do mundo. Nesse sentido, Dunham terá cumprido a missão de todo grande artista: mudar nosso olhar sobre nós mesmos e sobre nosso tempo.
- Galeria Max Hetzler, “Carroll Dunham”, apresentação do artista, 2025.
- Éric Simon, “Carroll Dunham ‘Transmissão Somática & Qualiascópio'”, ACTUART, maio 2022.
- Galeria Max Hetzler, “Open Studio & Espaços Vazios”, comunicado da exposição, 2025.
- Sigmund Freud, A Interpretação dos Sonhos, Paris, PUF, 1899.
















