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Chen Yifei: O mestre do realismo romântico chinês

Publicado em: 10 Dezembro 2024

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

Chen Yifei (陈逸飞) transforma a pintura a óleo chinesa numa sinfonia visual onde o realismo socialista dança com o romantismo ocidental. A sua mestria técnica deslumbrante e visão única criam um novo vocabulário artístico que transcende as fronteiras culturais.

Ouçam-me bem, bando de snobs. Vou falar-vos de um artista que fez tremer os alicerces da própria arte chinesa contemporânea, Chen Yifei (1946-2005). Sim, o mesmo Chen que ousou desafiar as convenções com uma audácia que faria corar Courbet. E não me venham dizer que já o conheciam, sei perfeitamente que fingem acenar com a cabeça com ar entendido nos vossos vernissages parisienses, entre dois copos de champanhe morno e três salgadinhos secos.

Deixem-me contar-vos a história de um homem que soube transformar a pintura a óleo chinesa numa sinfonia visual onde o realismo socialista dança um tango frenético com o romantismo ocidental. Um artista que teve a inteligência de perceber que a arte não é apenas uma questão de técnica, mas também de visão. E que visão! A de um criador que soube navegar entre as águas turvas da Revolução Cultural e as correntes turbulentas do mercado de arte ocidental com a graça de um funâmbulo a caminhar sobre um fio de seda.

Vocês que passam os dias a debater a pertinência da arte contemporânea nas vossas galerias assépticas, deixem-me explicar por que Chen Yifei merece a vossa atenção. Não é porque precise da vossa validação, que a história da arte encarregar-se-á muito bem disso sozinha, mas porque compreender a sua obra é compreender como a arte pode transcender fronteiras culturais sem perder a sua alma.

Na primeira parte da sua carreira, Chen impôs-se como o mestre incontestado do realismo heróico. A sua obra “Eulogia do Rio Amarelo” (1972) não é apenas uma pintura simples, é uma manifestação magistral do que Hegel chamou de “espírito do tempo” (Zeitgeist). E não, não estou a usar Hegel para parecer inteligente, embora funcione bastante bem, admita. Chen conseguiu o impossível: encarnar numa só tela a tensão dialética entre o indivíduo e a História com maiúscula. O soldado solitário que contempla o rio Amarelo não é apenas uma figura heróica, é a própria encarnação do que Hegel definia como a consciência histórica em ação. A composição monumental, as cores intensas, a luz dramática, tudo converge para criar o que Walter Benjamin teria qualificado de “imagem dialética”, um momento em que o passado e o presente se telescopam numa fulguração reveladora.

Este período inicial da sua carreira é marcado por uma maestria técnica que faria chorar de inveja os vossos protegidos conceptuais. Tome-se “Olhando para a História do Meu Espaço” (1979), e não, isto não é uma instalação Instagram antes do tempo. Esta obra representa um ponto de viragem importante na sua carreira, um momento em que o artista ousa colocar-se a si mesmo no fluxo da história, criando uma mise en abîme vertiginosa que teria deixado Velázquez tonto. Chen pinta-se a contemplar uma fresco histórica, criando assim um diálogo entre o pessoal e o colectivo, entre o íntimo e o político. Isto é o que Michel Foucault teria chamado uma “heterotopia pictórica”, um espaço onde as várias camadas da realidade se sobrepõem e interpenetram.

Mas esperem, ainda não acabou. A verdadeira revolução artística de Chen chega nos anos 1990, quando desenvolve o que eu chamo de seu “realismo romântico transcendental”. Sim, eu sei, vocês adoram estes termos pomposos que poderão usar nos vossos próximos jantares sociais entre uma discussão sobre o último prémio Turner e uma crítica feroz da Bienal de Veneza. Tomemos a sua obra-prima “Belezas no Passeio” (1997). Esta tela não é apenas uma simples representação de mulheres elegantes, é uma meditação profunda sobre o que Baudelaire chamava de “modernidade”. Chen consegue aqui um feito conceptual: usa os códigos do realismo académico ocidental para celebrar a própria essência da feminilidade chinesa tradicional.

A maestria técnica de Chen é absolutamente impressionante. Os seus golpes de pincel são tão precisos como uma equação de física quântica, mas não é aí que reside a sua verdadeira força. Não, o que torna Chen um gigante da arte contemporânea é que ele cria o que eu chamo de uma “estética da transcendência cultural”. Nos seus retratos de musicistas tradicionais chinesas, como em “Banquete” (1991), ele não se limita a pintar mulheres a tocar instrumentos. Cria um espaço pictórico onde a tradição chinesa e a modernidade ocidental se encontram numa dança sensual que teria feito Matisse corar.

As suas paisagens de Veneza e Zhouzhuang não são simples exercícios de estilo pitoresco. Não, são meditações visuais sobre a própria natureza do tempo e da memória. A água, omnipresente nestas obras, não é apenas um elemento decorativo. É um espelho filosófico que reflecte a tensão permanente entre tradição e modernidade, entre o Oriente e o Ocidente. Chen usa a superfície espelhada da água como Narciso usava seu reflexo: para explorar as profundezas da identidade cultural.

Pegue a sua série sobre o Tibete. Estas obras não são meros relatos etnográficos para turistas em busca de exotismo. São explorações profundas do que significa ser humano perante a imensidão do mundo. Em “Wind of Mountain Village” (1994), Chen não se limita a pintar aldeões tibetanos. Ele cria uma verdadeira meditação visual sobre a relação entre o homem e o seu ambiente, entre o espiritual e o material. É exatamente isso que Martin Heidegger entendia por “habitar poeticamente o mundo”, só que Chen o faz com uma sensibilidade que transcende os limites da filosofia ocidental.

Os críticos superficiais, e vocês sabem quem são, muitas vezes acusaram Chen de comercialização excessiva nos últimos anos da sua vida. Que miopia intelectual! A sua expansão na moda, no cinema e no design não foi uma traição aos seus ideais artísticos, mas a sua extensão natural no mundo contemporâneo. Quando criou a sua marca de moda Layefe em 1998, não foi por oportunismo comercial, mas pelo desejo de expandir a sua exploração estética para a vida quotidiana. É o que os situacionistas chamavam de “revolução da vida quotidiana”, só que Chen o faz sem o seu pessimismo cultural.

Em “Beauty with Fan” (1996), Chen atinge o que chamo de “ponto de fusão estética”, onde a técnica ocidental e a sensibilidade oriental se fundem numa nova forma de expressão artística. A mulher de rosto melancólico que segura o leque não é simplesmente um sujeito pictórico, é uma metáfora viva da condição do artista contemporâneo, entre a tradição e a modernidade, entre o Este e o Oeste. O próprio leque torna-se um símbolo poderoso desta dualidade: objeto tradicional chinês tratado com uma técnica pictórica ocidental.

O seu domínio da luz é absolutamente estonteante. Em “Lingering Melodies at Xunyang”, ele utiliza a luz não como um simples efeito dramático, mas como uma ferramenta filosófica para explorar o que Heidegger chamava de “a clareira do ser”. As zonas de sombra e luz não são simples efeitos pictóricos, mas manifestações visuais da tensão entre o visível e o invisível, entre o dito e o não dito. Isto é particularmente evidente nos seus retratos de musicistas, onde a luz parece emanar dos próprios sujeitos, criando uma atmosfera que lembra tanto Vermeer como os mestres da pintura tradicional chinesa.

Vê esses tons escuros, essas sombras profundas que caracterizam o seu estilo? Não é um simples efeito dramático. É uma manifestação visual do que Theodor Adorno chamava de “negatividade dialética”. Chen usa a escuridão não como uma ausência de luz, mas como uma presença positiva que estrutura o espaço pictórico. Isto é particularmente evidente nas suas cenas de interior, onde a sombra torna-se uma personagem por si só, dialogando com a luz numa dança subtil que revela tanto quanto esconde.

Nas suas últimas obras, Chen leva ainda mais longe esta exploração da luz e da sombra. “Soirée” torna-se assim um estudo magistral sobre como a luz pode transformar o ordinário em extraordinário. Os músicos emergem da escuridão como aparições, os seus instrumentos brilhando com um fulgor quase sobrenatural. É o que Gaston Bachelard teria chamado de uma “poética da luz”, onde cada raio se torna uma metáfora da revelação artística.

A influência de Chen na arte contemporânea chinesa é comparável à de Picasso na arte ocidental do século XX. Ele mostrou que é possível criar uma arte que seja ao mesmo tempo profundamente chinesa e universalmente acessível. Uma arte que não se contente em reproduzir as formas do passado, mas que as reinventa para a nossa época. O seu legado não é apenas artístico, é filosófico: mostra-nos que a verdadeira arte não conhece fronteiras, sejam elas geográficas, culturais ou comerciais.

A tragédia é que Chen nos deixou cedo demais, em 2005, enquanto trabalhava no seu filme “Barber”. Mas o seu legado permanece vivo, pulsante como o próprio coração da arte contemporânea chinesa. Ele mostrou-nos que é possível criar uma arte que está profundamente enraizada na sua cultura de origem e, ao mesmo tempo, está decididamente voltada para o futuro. Uma arte que não se limita a cruzar as fronteiras culturais, mas que as transcende para criar algo verdadeiramente novo.

Se há algo que deve reter de Chen Yifei é a sua capacidade de transformar a pintura numa linguagem universal que transcende as barreiras culturais. Ele não se limitou a pintar quadros, criou um novo vocabulário visual que continua a influenciar os artistas de hoje. E da próxima vez que encontrar um daqueles pseudo-intelectuais que afirmam que a arte contemporânea tem necessariamente de ser incompreensível para ser profunda, mostre-lhes uma obra de Chen. Isso fechá-los-á a boca, e com um pouco de sorte abrirá os seus olhos.

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Referência(s)

CHEN Yifei (1946-2005)
Nome próprio: Yifei
Apelido: CHEN
Outro(s) nome(s):

  • 陈逸飞 (Chinês simplificado)

Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • China

Idade: 59 anos (2005)

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