Ouçam-me bem, bando de snobs que pensam saber tudo sobre arte contemporânea chinesa porque viram três exposições na Fundação Louis Vuitton. Chen Yujun, nascido em 1976 na província de Fujian, não é o vosso artista chinês de serviço que recicla clichês orientalistas para agradar aos colecionadores ocidentais. Não, este tipo tem algo a dizer, e diz-o com uma força que faria tremer as paredes das vossas galerias minimalistas.
Falemos primeiro da sua obsessão pelo rio Mulan. Não o guerreiro da Disney, seus ignorantes! A verdadeira Mulan, aquela que corre nas veias da sua cidade natal, Putian. Na sua série “Mulan River”, Chen atira-nos à cara uma verdade que Gaston Bachelard já tinha apreendido em “A Água e os Sonhos”: a água não é apenas uma substância, é um destino. Só que Chen leva o conceito ainda mais longe. As suas instalações e pinturas a tinta não se limitam a representar a água, elas incorporam o próprio fluxo da memória coletiva. Quando olham para as suas obras monocromáticas de 2013, não veem simplesmente um rio turbulento, são confrontados com o que Walter Benjamin chamava de “a experiência do limiar”, esse momento em que o passado e o presente se sobrepõem numa constelação explosiva.
E não venham dizer-me que isto é “bonito”. Se acham que isto é bonito, é porque não perceberam nada. Esses redemoinhos de tinta, esses destroços flutuantes, são a violência silenciosa da modernização chinesa a expressar-se. É a história de 600 000 chineses da diáspora que têm raízes em Putian. É o grito silencioso de uma cultura que se dissolve no grande banho da globalização. Chen não faz nostalgia barata, ele faz arqueologia do presente, como diria Foucault se ainda estivesse aqui para ver isso.
Mas esperem, não é tudo. A segunda obsessão de Chen é o espaço doméstico. Sua instalação “Origin of Food” de 2017 é um soco no estômago da nossa sociedade de consumo. Pedras, madeira esculpida, louça arranjada como oferendas, parece um altar pós-apocalíptico dedicado aos nossos rituais diários. A árvore arrancada pintada de preto e ouro que domina a instalação não está ali para decorar sua sala. É uma metáfora visceral da nossa condição contemporânea, o que o filósofo Peter Sloterdijk chamaria de nosso “desraizamento ontológico”.
As suas instalações “Temporary Constructions” são ainda mais perturbadoras. Chãos de madeira reciclada, recortes de jornais que se destacam das paredes, uma cadeira vazia, um baú abandonado, é como se Gordon Matta-Clark decidisse dissecar não edifícios, mas a própria alma da domesticidade. Chen obriga-nos a confrontar aquilo que Martin Heidegger chamava “estar-no-mundo”, mas num contexto onde o “mundo” em si se tornou precário, transitório, inatingível.
E sabem uma coisa? Ele tem a audácia de suspender uma casa em ruínas num pedaço de madeira flutuante. Não é preciso ser Jacques Derrida para entender a desconstrução em ação aqui. É uma imagem tão poderosa da nossa condição contemporânea que faz 90% da arte conceptual atual parecer um exercício de estilo para estudantes do primeiro ano das Belas-Artes.
Chen não se limita a pintar ou instalar, ele mapa uma geografia emocional. As suas colagens, com janelas recortadas e vistas fragmentadas, não são simples exercícios formais. Incarnam aquilo que o sociólogo Zygmunt Bauman chamava “modernidade líquida”, onde as identidades se formam e desfazem como ondas no rio Mulan.
A forma como utiliza materiais encontrados, jornais, tábuas gastas, objetos abandonados, não é uma excentricidade de artista a brincar a faz-tudo. É uma arqueologia do quotidiano que ecoa as teorias de Georges Bataille sobre o informe e o baixo materialismo. Cada pedaço de madeira podre, cada fragmento de jornal amarelecido é uma testemunha do que perdemos na nossa corrida desenfreada para o “progresso”.
O seu trabalho sobre a memória familiar, nomeadamente nas suas séries fotográficas, não é um álbum de família glorificado. É uma exploração daquilo que Maurice Halbwachs chamava de “memória colectiva”, mas vista através do prisma de uma modernidade que fragmenta tudo o que toca. Os retratos de família dobrados na forma de barcos em “Everyday Relationships” não estão ali para fazer chorar no aconchego dos lares. Eles falam-nos da fragilidade dos laços sociais num mundo onde até a família se tornou uma construção temporária.
Para aqueles que ainda pensam que a arte contemporânea chinesa se resume a pandas estilizados e caracteres caligráficos, Chen Yujun é uma bofetada necessária. Ele mostra-nos que a identidade cultural não é um fato que se veste para os vernissages, mas uma luta diária entre enraizamento e desraizamento, entre memória e esquecimento.
E se acha que sou muito duro, é porque ainda não percebeu que a arte não está aqui para embalar ilusões suaves. Chen Yujun faz parte daqueles raros artistas que têm a coragem de nos mostrar o nosso mundo como ele é: um lugar onde os rios não se lembram, mas onde as casas não podem esquecer. Um mundo onde cada mudança de ateliê, e ele já teve doze em vinte e três anos, se torna uma metáfora da nossa condição de exilados permanentes.
O seu trabalho está exposto no Brooklyn Museum, no M+ de Hong Kong e nas maiores coleções de arte contemporânea do mundo. Mas isso não é o que importa. O que importa é que ele continua a cavar, como um arqueólogo obstinado, nas camadas do nosso presente fracturado. Ele lembra-nos que a arte não é um investimento para o seu portfólio, mas uma maneira de compreender quem somos e o que nos tornamos neste mundo onde até os rios esqueceram o seu nome.
















