Ouçam-me bem, bando de snobs. Quando se fala de Michael Kvium, não se fala simplesmente de um pintor dinamarquês nascido em 1955 em Horsens. Fala-se de um artista que fez do nosso desconforto existencial a sua matéria-prima, que transformou as nossas negações coletivas em quadros de uma beleza perturbadora. Desde a década de 1980, Kvium obriga-nos a olhar para aquilo que preferimos ignorar: a nossa própria decadência, a nossa hipocrisia, a nossa fragilidade.
O seu universo pictórico está povoado de criaturas andróginas, deformadas, frequentemente nuas, com rostos por vezes semelhantes ao seu. Seres de corpos estendidos, costas curvadas, membros desproporcionais. Seres que nos remetem para nós mesmos, despidos dos artifícios que nos confortam diariamente. Não é por acaso que o primeiro choque sentido perante as suas obras dá rapidamente lugar a uma estranha familiaridade. O que vemos não é o outro na sua monstruosidade, mas sim nós próprios sem as nossas máscaras habituais.
Em “The Naked Eye on a Welldressed Lie III” (2012), Kvium apresenta-nos uma bailarina careca com o rosto assumindo os seus próprios traços. Esta figura, ao mesmo tempo grotesca e graciosa, cristaliza toda a ambivalência da sua obra. A beleza clássica da dança confronta-se com a crueza de um corpo que recusa a idealização. O próprio título convida-nos a olhar para além das aparências, a ultrapassar a mentira bem vestida que constitui a nossa relação com o corpo e a estética.
As personagens de Kvium frequentemente usam atributos reconhecíveis: uma batina de padre, um tutu de bailarina, uma toga de juiz. Estes trajes funcionam como símbolos de autoridade, que o artista apressa-se a subverter pela representação crua dos corpos. Em “Tail to Tail” (2012), um cardeal vestido de vermelho aponta para o céu enquanto um juiz de preto nos indica com o seu dedo. Estas duas figuras de autoridade, uma religiosa, outra jurídica, estão ligadas por uma cauda de rato, um símbolo pouco subtil da corrupção dos poderes. Kvium não se limita a criticar, ele anatoma as estruturas sociais que nos governam.
A relação com o teatro é fundamental na obra de Kvium. As suas telas evocam cenas, as suas personagens são atores a desempenhar um papel. Esta teatralidade não é gratuita, serve um propósito essencial: as nossas vidas decorrem entre dois cortinados, o do nascimento e o da morte. Todo o resto não passa de representação, jogo social, encenação. Esta visão encontra um eco impressionante no pensamento do sociólogo Erving Goffman, para quem a vida social é uma perpétua representação teatral onde cada um desempenha um papel [1]. Como escreve Goffman, “o mundo inteiro não é um teatro, claro, mas não é fácil definir precisamente pelo que se distingue dele”. Esta analogia teatral irriga a obra de Kvium até aos seus aspetos formais: enquadramento, composição, iluminação, tudo contribui para criar esta impressão de cena onde se desenrola o drama humano.
Não é por acaso que Kvium co-fundou em 1981 o grupo de performance “Værkstedet Værst” (O Atelier do Pior) com Erik A. Frandsen e Christian Lemmerz. Esta experiência coletiva alimentou a sua reflexão sobre o corpo em representação, sobre a fronteira ténue entre o ator e o seu papel. Com este grupo, explorou os limites do aceitável, do observável, prenunciando os temas que viriam a assombrar posteriormente a sua pintura. O próprio Kvium explica: “O que a arte pode fazer é criar uma cena onde ousamos enfrentar problemas que não ousamos olhar no mundo real”.
O seu trabalho com Christian Lemmerz no filme “The Wake”, inspirado em “Finnegans Wake” de James Joyce, ilustra perfeitamente esta abordagem. Este filme silencioso de oito horas projeta simultaneamente três secções diferentes, criando uma montagem caótica de imagens surrealistas e barrocas. Homens e mulheres gritam, bebem, dançam, lutam, vomitam, permanecem sentados nus em estados quase catatónicos. Este caos visual, esta sobrecarga sensorial, esta ausência de narrativa linear lembram estranhamente a obra literária da qual se inspira. Joyce, como Kvium, procurava ultrapassar as formas convencionais para alcançar uma verdade mais profunda sobre a condição humana. Ambos os artistas partilham esta vontade de desconstruir a linguagem, seja ela verbal ou visual, para revelar o que normalmente oculta.
Esta ligação entre Kvium e Joyce não é anedótica, revela uma profunda afinidade com a literatura modernista do início do século XX. Assim como Joyce desconstruía a sintaxe para melhor expressar os fluxos de consciência, Kvium deforma os corpos para revelar melhor as nossas angústias existenciais. Em ambos os casos, trata-se de romper com as convenções estéticas para aceder a uma verdade mais autêntica, mesmo que esta seja difícil de olhar.
Esta busca de autenticidade manifesta-se também no tratamento que Kvium dá à paisagem. As suas exposições no ARoS Aarhus Kunstmuseum (2006) e Ordrupgaard (2007) incluíam grandes obras que evocavam relações com a paisagem e a natureza. Tal como nas suas figuras humanas, as suas paisagens são marcadas pela deformação, pela estranheza, por uma forma de melancolia. As árvores despidas assumem traços antropomórficos, como se a própria natureza partilhasse a nossa condição de seres solitários e isolados.
“A paisagem do horizonte é para mim uma fonte eterna oculta de maravilhas”, confessa o artista. “Este olhar para a eternidade com árvores parcialmente despidas como único sinal de vida terrena. São quase sempre cenas de outono ou inverno que apontam melancolicamente para o verão passado e para a hibernação estéril do inverno. O que somos nós, humanos, senão almas sombrias numa busca eterna pela luz e pela compreensão do imprevisível, que aqui se materializa no espaço infinito da eternidade?”
Estas paisagens evocam o conceito do Sublime, tal como foi definido por Edmund Burke e os filósofos românticos. O Sublime designa esta experiência estética que nos ultrapassa, nos submerge, quase nos aterroriza pela sua grandeza [2]. Na obra de Kvium, o Sublime não está presente apenas nas suas paisagens, mas também na sua representação do corpo humano. Este corpo torna-se o lugar de uma experiência limite, entre atração e repulsão, beleza e fealdade, familiar e estranho.
Se a dimensão filosófica da obra de Kvium é inegável, a sua técnica pictórica é igualmente notável. Formado na Academia Real de Belas Artes da Dinamarca sob a direção de Albert Mertz e Stig Brøgger, Kvium domina perfeitamente o seu meio. As suas pinturas a óleo evidenciam uma virtuosidade técnica que contrasta com a brutalidade dos temas representados. Esta tensão entre a beleza formal e a crueza do conteúdo cria um efeito de dissonância cognitiva no espectador, reforçando o impacto emocional da obra.
Kvium não é um artista confortável. Ele recusa-se deliberadamente a tranquilizar-nos, a confortar-nos nas nossas ilusões. “Os humanos tendem sempre a afastar-se do desconforto”, diz ele. “Há um grande perigo em evitar o desconforto e acho interessante explorar esse desconforto, ele deve estar lá por uma razão. Deve conter uma forma de honestidade que deveríamos levar a sério”.
Essa honestidade, Kvium procura-a na representação daquilo que preferimos esconder: o envelhecimento, a decadência, a fragilidade do corpo. Numa cultura obcecada pela juventude eterna, onde a cirurgia estética permite apagar os sinais do tempo, Kvium lembra-nos que o declínio faz parte integrante da nossa condição. “Se passares a tua vida inteira a combater os sinais da mortalidade, então vives apenas a meio”, afirma ele. “Não deves viver no teu passado ou no teu futuro, mas no teu presente. E isso é realmente difícil!”
Esta dificuldade em viver plenamente no presente, em aceitar a nossa finitude, a nossa imperfeição, constitui o núcleo da reflexão de Kvium. A sua obra pode ser interpretada como um convite a ultrapassar os nossos medos, a olhar de frente para aquilo que nos angustia para melhor o domar. Neste sentido, apesar do aparente pessimismo das suas representações, há na sua abordagem uma forma de esperança, uma possibilidade de libertação pela confrontação direta com os nossos demónios interiores.
Alguns críticos possam ter acusado Kvium de uma certa complacência com o macabro, uma insistência excessiva nos aspetos sombrios da existência. Esquecem que o seu trabalho também inclui uma dimensão satírica, até humorística. As deformações grotescas das suas personagens, as suas posturas absurdas, as suas interações incongruentes provocam por vezes um riso nervoso, uma forma de humor negro que alivia momentaneamente o peso da mensagem. É o que o próprio artista chama de “tragicómico” nas suas obras.
Se Kvium se interessa tanto pela cegueira voluntária dos seres humanos, é porque vê nela não só uma fonte de sofrimento individual mas também um perigo coletivo. Ele estabelece um paralelo explícito entre a nossa recusa em ver a nossa própria realidade e os mecanismos que permitiram o advento dos totalitarismos: “Se olhares para o que aconteceu na Alemanha nazi, é o pior exemplo de todos. É de facto a mentalidade e a exigência de que as pessoas de aparência diferente, de pensamento diferente, de crença diferente não têm justificativa”.
Esta dimensão política da sua obra, embora raramente explícita, é fundamental. Ao forçar-nos a olhar para o que preferimos ignorar, Kvium convida-nos a uma forma de lucidez que é também uma resistência contra as ilusões perigosas que a sociedade por vezes nos impõe. Como ele próprio diz: “Toda boa arte é política. Mesmo as obras geralmente humanas. A arte termina onde você se contenta em satisfazer uma necessidade. A arte está onde coça, onde é desconfortável para aqueles que estão no poder e para aqueles que querem dormir na sua vida. Pode-se fazer arte bonita quando é a beleza que dói. A obra deve colocar questões que arranhem a superfície. E então ela é política”.
Esta vontade de mexer por baixo da superfície, de revelar o que se esconde por trás das aparências, Kvium expressa-a com uma coerência notável há quase quarenta anos. As suas obras dos anos 1980 e 1990, dominadas por tons castanho-escuros, caóticas na sua composição, deram progressivamente lugar a quadros mais luminosos, mais estruturados, sem perder nada do seu poder subversivo. Esta evolução formal testemunha uma maturidade artística que não se acompanha de um amolecimento da mensagem.
Pelo contrário, Kvium parece ter-se refinado com o tempo, talhando as suas metáforas visuais para as tornar mais impactantes. Obras recentes como a série “Contemporary Fools”, onde utiliza metal e silicone para criar objetos que trazem a marca da mão humana, ou “A Dancing Show”, que representa bailarinas segurando pequenas marionetas, atestam uma procura constante de novas formas para expressar as suas obsessões.
O que faz a grandeza de Michael Kvium é a sua capacidade de transformar as nossas angústias existenciais em imagens de um poder visual inquestionável. Ele não se limita a mostrar-nos o que não queremos ver, faz-no com uma inteligência formal, um domínio técnico, uma inventividade que eleva o seu trabalho além da mera provocação. Como os grandes escritores, grandes músicos, grandes cineastas, consegue dar forma ao informe, expressar o indizível, tornar visível o invisível.
Num mundo saturado de imagens suaves, idealizadas, conformes aos nossos desejos em vez da nossa realidade, a obra de Kvium ecoa como um grito de verdade. Lembra-nos que a verdadeira arte não está para nos confortar, mas para nos confrontar, não para nos embalar em ilusões, mas para nos despertar. E se este confronto é por vezes doloroso, é também profundamente libertador. Porque, no fim, o que Michael Kvium nos oferece é uma forma de libertação pela lucidez. Ao forçar-nos a olhar cara a cara a nossa condição mortal, a nossa fragilidade, a nossa hipocrisia, permite-nos paradoxalmente viver mais plenamente, mais autenticamente. Como ele próprio diz: “A minha mensagem mais importante é tornar os que me rodeiam conscientes da nossa cegueira. De quantas trapaças nos pregamos para evitar olhar para nós mesmos”.
Nesta empresa de revelação, Kvium revela-se não como um misantropo cínico, mas como um humanista exigente, que recusa consolos fáceis para nos oferecer uma verdade mais difícil mas mais autêntica. A sua pintura é um espelho deformante que, paradoxalmente, nos permite ver-nos mais claramente. E talvez seja aí que reside a sua maior proeza: fazer-nos amar aquilo que tememos ver.
- Goffman, Erving. “A representação da vida quotidiana”, Les Éditions de Minuit, Paris, 1973.
- Burke, Edmund. “Investigação filosófica sobre a origem das nossas ideias do sublime e do belo”, Vrin, Paris, 2014.
















