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Corpo, espaço, tempo: A trindade de Celina Portella

Publicado em: 3 Maio 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

Celina Portella explora as fronteiras entre a realidade e a representação através de obras híbridas que misturam fotografia, vídeo e escultura. Ao fazer interagir seu corpo com os limites da moldura, ela cria ilusões perturbadoras que questionam nossa percepção e nossa relação com as imagens.

Ouçam-me bem, bando de snobs. Se vocês pensam que arte contemporânea se resume a NFTs absurdos e instalações pretensiosas, é porque nunca tiveram frente a frente uma obra de Celina Portella. Esta brasileira, nascida em 1977 no Rio de Janeiro, navega pelos meandros da arte com uma facilidade que faria corar os maiores equilibristas.

Portella não é uma artista como as outras. Suas obras foram premiadas com o prestigioso Luxembourg Art Prize em 2021, um prêmio internacional de arte contemporânea que testemunha o reconhecimento mundial do seu talento. Seu percurso acadêmico e profissional revela desde logo a riqueza de sua abordagem artística: formada em design pela PUC do Rio, depois graduada em artes plásticas na Universidade Paris VIII, ela também dançou para a companhia de Lia Rodrigues antes de lançar-se numa carreira artística multidisciplinar.

Esta dupla formação em dança e artes visuais confere-lhe um olhar único sobre o corpo, seu movimento no espaço e sua representação. Portella move-se entre as disciplinas com uma fluidez desconcertante, transformando cada meio que toca num terreno de exploração dos limites entre realidade e representação, materialidade e virtualidade, presença e ausência.

O que impressiona imediatamente na obra de Portella é sua maneira de metamorfosear o banal em extraordinário. Na série “Corte” (2019), ela se fotografa cortando sua própria imagem, criando uma mise en abyme vertiginosa onde o sujeito se torna ao mesmo tempo criador e destruidor. O papel fotográfico é fisicamente recortado, criando uma continuidade perfeita entre a ação representada e o suporte material. Esta intervenção material na superfície da imagem lembra as experimentações de Lucio Fontana, mas Portella acrescenta uma dimensão performativa que transforma o ato destrutivo em gesto criador.

A cinética do corpo está no centro do seu trabalho. Em “Movimento²” (2011), as telas que projetam suas performances coreografadas se movem em sincronização com os movimentos do seu corpo dentro do quadro. A ilusão é tão perfeita que nos surpreendemos procurando os fios invisíveis que ligam a imagem à sua manifestação física. Esta obra ilustra perfeitamente a capacidade de Portella para criar dispositivos que confundem nossa percepção da realidade e nos convidam a questionar nossa relação com as imagens.

Portella joga constantemente com os limites entre o real e o virtual, confundindo as fronteiras entre performance, arquitetura, cinema e escultura. Em “Vídeo-Boleba” (2012), crianças jogam bolinhas na tela, e quando suas bolinhas saem do quadro, bolinhas reais aparecem no chão do espaço de exposição. Este trompe-l’oeil sofisticado nos lembra com força que toda representação é uma construção, um artifício que pode ser manipulado, desviado, subvertido.

A relação de Portella com o iconoclasmo cinético constitui uma das dimensões mais interessantes da sua obra. Em “Derrube” (2009), ela literalmente golpeia a sua própria imagem projetada com um maço, criando um colapso visual que questiona a nossa relação com as imagens num mundo saturado de representações. Este trabalho evoca as reflexões de Vilém Flusser sobre a nossa sociedade dominada pelas imagens técnicas. Como ele escreveu em “Para uma filosofia da fotografia”: “As imagens técnicas não são espelhos, mas projetores. Elas não refletem o mundo, mas projetam significados sobre ele” [1]. Portella parece ter integrado essa ideia ao ponto de a tornar a matéria-prima do seu trabalho artístico, interrogando não somente o que as imagens nos mostram, mas também como moldam a nossa perceção do mundo.

Essa relação com a imagem como matéria maleável também se encontra na sua série “Dobras” (2017), onde fotografias de partes do corpo são dobradas e emolduradas, como para dar volume e movimento ao que anteriormente estava confinado à bidimensionalidade do papel. Essas imagens-objetos evocam as pesquisas de Paul Virilio sobre a dromologia, essa ciência que estuda os efeitos da velocidade na nossa perceção do mundo. Virilio observava que “a velocidade reduz o mundo a nada” [2], e é precisamente isso que Portella parece contrariar, dando uma materialidade, uma presença física às suas imagens, ancorando-as no espaço tridimensional do local da exposição.

Na sua série “Puxa” (2015), ela leva o exercício ainda mais longe criando foto-objetos onde o corpo em tensão com cordas se prolonga materialmente para fora da moldura. As cordas que vemos na imagem são as mesmas que sustentam o peso da moldura no espaço da exposição. Essa continuidade visual entre o representado e o real cria uma estranha sensação de desdobramento, como se estivéssemos entre duas dimensões paralelas, entre duas temporalidades distintas que se juntam miraculosamente no instante presente da contemplação.

Este trabalho sobre o desdobramento e a duplicidade não deixa de evocar as pesquisas do cineasta russo Sergei Eisenstein sobre a montagem intelectual. Eisenstein procurava criar uma “terceira imagem” mental pela justaposição de duas imagens distintas. Ele afirmava que a montagem não é uma ideia composta por planos sucessivos colados juntos, mas uma ideia que nasce do choque entre esses planos [3]. Portella parece aplicar este princípio não mais à sequência temporal do cinema, mas à coexistência espacial da imagem e do seu suporte, da representação e da sua materialização. O choque entre essas duas realidades produz uma terceira realidade, mental, que transcende os limites de ambas.

Mais recentemente, na sua série “Fogo” (2020), Portella começou a explorar as possibilidades destrutivas do fogo como agente transformador da imagem. Em “Queimada”, uma série de fotografias idênticas onde ela aparece segurando um fósforo são queimadas de diferentes maneiras, criando aberturas na superfície do papel. O corpo torna-se assim agente de destruição da sua própria imagem, e a ação representada parece transbordar para o real. Essas obras podem ser interpretadas como uma metáfora da nossa época hiperconectada, onde as imagens se consomem tão rapidamente quanto são criadas no fluxo incessante das redes sociais, deixando atrás de si rastos efémeros da sua passagem.

O uso do fogo como meio artístico não deixa de recordar as reflexões de Gaston Bachelard sobre o poder simbólico deste elemento. Em “A psicanálise do fogo”, Bachelard explora as dimensões simbólicas e psicológicas do fogo, o seu poder de transformação e regeneração. Em Portella, o fogo não destrói simplesmente a imagem, transforma-a, molda-a, dando-lhe uma nova dimensão que transcende a sua natureza bidimensional. É um ato paradoxal, simultaneamente destrutivo e criador, que lembra algumas performances ritualísticas de Ana Mendieta ou as ações incendiárias de Catherine Mayer.

O que distingue Portella de muitos artistas contemporâneos é a sua capacidade de navegar entre diferentes disciplinas sem jamais cair na armadilha da dispersão ou superficialidade. Cada obra é pensada como um ecossistema autónomo, onde cada elemento (corpo, imagem, suporte, espaço) interage com os outros numa coreografia cuidadosamente orquestrada. Esta coerência conceptual e formal dá ao seu trabalho uma força e legibilidade notáveis, apesar da complexidade das questões que levanta.

O seu trabalho é também notavelmente acessível, sem ser simplista. Há algo imediatamente cativante nas suas trompe-l’oeil e nos seus jogos sobre a percepção, que convida até o espetador mais reticente da arte contemporânea a envolver-se com a obra. Mas essa acessibilidade esconde uma profundidade conceptual que recompensa um olhar mais atento e uma reflexão mais intensa. Portella consegue esse feito raro de criar obras que funcionam em múltiplos níveis, oferecendo a cada espetador uma experiência enriquecedora, qualquer que seja a sua familiaridade com a arte contemporânea.

É esta combinação rara entre inteligência conceptual e sedução formal que faz de Portella uma artista tão importante no panorama atual. Numa época em que a arte contemporânea parece oscilar frequentemente entre um conceptualismo árido e um espetáculo superficial, ela recorda-nos que é possível criar obras tanto intelectualmente estimulantes como sensualmente envolventes, obras que falam tanto ao nosso espírito como ao nosso corpo.

Portella ainda não terminou de nos surpreender. Com cada nova série, ela ultrapassa os limites do que pode ser uma imagem, do que um corpo pode fazer, do que pode conter um enquadramento. Ela lembra-nos que a arte não é um objeto inerte para contemplar passivamente, mas uma experiência viva que nos transforma tanto quanto nós a transformamos, um diálogo constante entre a obra e o espetador, entre o virtual e o real, entre o passado fixado na imagem e o presente da sua contemplação.

Num mundo onde somos constantemente bombardeados por imagens, onde a realidade e a ficção se confundem no ecrã dos nossos smartphones, o trabalho de Portella oferece-nos um espaço para refletir sobre a nossa relação com as imagens e com o nosso próprio corpo. Ela convida-nos a reencontrar uma forma de maravilhamento perante o mundo, a redescobrir o poder da ilusão e da transformação, a reconhecer a materialidade persistente da nossa experiência num mundo cada vez mais virtual.

A obra de Celina Portella constitui uma contribuição fundamental para o pensamento estético contemporâneo. Ao borrar metodicamente as fronteiras entre o virtual e o material, ela desenvolve uma verdadeira fenomenologia da imagem que ultrapassa as dicotomias simplistas do nosso tempo. A sua abordagem junta-se às questões filosóficas mais sofisticadas sobre a natureza da perceção e da representação, tornando-as acessíveis através de uma experiência sensorial direta. Ao convidar-nos a reconsiderar a nossa relação com as imagens, não como superfícies planas para contemplar, mas como entidades híbridas que habitam e transformam o espaço, Portella participa na elaboração de uma nova ontologia visual para o século XXI. Ela oferece-nos assim não só obras para ver, mas uma maneira profundamente renovada de ver o mundo.


  1. Flusser, V. (1996). Para uma filosofia da fotografia. Circé.
  2. Virilio, P. (1977). Velocidade e Política. Galilée.
  3. Eisenstein, S. (1976). O Filme: sua forma, seu sentido. Christian Bourgois.
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Referência(s)

Celina PORTELLA (1977)
Nome próprio: Celina
Apelido: PORTELLA
Outro(s) nome(s):

  • Celina Coelho de Sanson Portella

Género: Feminino
Nacionalidade(s):

  • Brasil

Idade: 48 anos (2025)

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