Ouçam-me bem, bando de snobs : Cui Jie pinta a alma deslocada da modernidade chinesa com a precisão cirúrgica de uma urbanista e a melancolia de uma poeta. Nas suas telas com cores ácidas, onde gruas gigantes parecem abraçar torres de telecomunicações e onde as esculturas socialistas dialogam com a arquitetura metabolista japonesa, esta artista nascida em Xangai em 1983 mapeia as camadas psicogeográficas de um império em perpétua reconstrução.
O seu trabalho confronta-nos com uma verdade perturbadora : habitamos todos, agora, nos escombros antecipados das nossas utopias arquitetónicas. Há mais de uma década, Cui Jie documenta esta condição com uma acuidade que ultrapassa de longe a mera crónica urbana. Ela revela como o espaço construído molda as nossas subjetividades tanto quanto delas resulta. “Quando pinto edifícios, pinto na realidade as minhas emoções”, confia ela com uma simplicidade que esconde a sofisticação teórica da sua abordagem [1].
O espaço social como campo de batalha da modernidade
Para compreender a abrangência da obra de Cui Jie, é conveniente situá-la no quadro conceptual desenvolvido por Henri Lefebvre, esse filósofo francês que revolucionou a nossa compreensão do espaço urbano. Na sua trilogia sobre a crítica da vida quotidiana e na sua obra maior “A Produção do Espaço”, Lefebvre demonstra que o espaço nunca é neutro : é simultaneamente produzido pelas relações sociais e produtor dessas mesmas relações [2]. O espaço torna-se assim uma questão política, um terreno onde se jogam as relações de poder e onde se cristalizam as contradições do capitalismo avançado.
Esta abordagem sociológica ressoa de forma impressionante com a prática de Cui Jie. Quando ela sobrepõe nas suas composições fragmentos de Pequim e Xangai, quando faz dialogar uma escultura soviética com um arranha-céus de Hong Kong, ela põe em prática intuitivamente o que Lefebvre teorizava : o espaço diferencial que resiste à homogeneização capitalista. As suas pinturas revelam como as diferentes épocas da modernização chinesa, da estética socialista aos empréstimos do metabolismo japonês, passando pela adoção dos códigos arquitetónicos ocidentais, coexistem num testemunho urbano estratificado em que cada camada narra uma história particular do poder.
A artista procede por montagem, técnica que reivindica explicitamente ao citar Orson Welles como influência maior. Esta abordagem cinematográfica permite-lhe revelar o que Lefebvre chamava as “contradições do espaço” : como um mesmo lugar pode simultaneamente conter as marcas do coletivismo maoísta e as aspirações individualistas da economia de mercado. Em “Worker and Cultural Palace Dongguan” (2014), ela justapõe assim um palácio da cultura, tipologia tipicamente soviética, com esculturas monumentais que celebram o progresso científico, criando uma imagem composta que condensa várias décadas de ideologia espacial.
Esta abordagem vai muito além da simples documentação arquitetónica. Cui Jie revela como o espaço urbano chinês funciona como um dispositivo de controlo social, onde cada edifício carrega em si as marcas de um projeto político. As suas obras mostram o que Lefebvre chamava “o espaço concebido”, o dos planejadores e tecnocratas, mas também “o espaço vivido”, o da experiência quotidiana dos habitantes. Quando pinta as passagens pedonais de Pequim ou as torres de escritórios de Xangai, ela capta esta tensão entre o espaço programado pelas autoridades públicas e o espaço apropriado pelos usos sociais.
A inovação de Cui Jie reside na sua capacidade de tornar visível a ideologia inscrita na pedra e no aço. As suas cores não naturalistas, esses violetas artificiais, esses laranjas elétricos e esses turquesas sintéticos, funcionam como um revelador químico que desvenda a violência simbólica da arquitetura contemporânea. Ela mostra como os espaços urbanos chineses, longe de serem meros recipientes neutros, participam ativamente na produção de novas formas de subjetividade capitalista. O escritório moderno, com as suas paredes-vedação e os seus espaços modulares, não é apenas um local de trabalho: constitui uma máquina para fabricar novos tipos de indivíduos, adaptados às exigências da economia globalizada.
O território literário como espaço de resistência
A abordagem de Cui Jie encontra um eco notável na prática literária de Mo Yan, Prémio Nobel da Literatura de 2012, que construiu toda a sua obra em torno de um território imaginário: o concelho de Gaomi, na província de Shandong. Tal como a artista plástica, o escritor procede por sobreposição de temporalidades múltiplas, misturando a história oficial com as lendas populares, o real com o fabuloso, para criar um espaço narrativo que resiste à homogeneização cultural.
Esta proximidade de abordagem não é fortuita. Mo Yan e Cui Jie pertencem ambos a esta geração de artistas chineses nascidos após as reformas económicas de 1978, que cresceram num mundo em transformação permanente. Partilham a experiência do desaparecimento acelerado das paisagens da sua infância, substituídas por uma modernidade padronizada que apaga as particularidades locais. Face a esta violência da modernização, desenvolvem estratégias artísticas semelhantes: a criação de territórios de ficção que preservam a memória dos espaços perdidos.
Em Mo Yan, Gaomi torna-se um “reino literário” que escapa às categorias geográficas convencionais. Este território imaginário funciona como um condensado da experiência chinesa do século XX, onde se confrontam o período imperial terminal, a ocupação japonesa, a revolução comunista e as transformações contemporâneas. Da mesma forma, as paisagens urbanas de Cui Jie não correspondem a nenhuma cidade real: constituem espaços compostos onde coexistem elementos arquitetónicos retirados de diferentes metrópoles e diferentes épocas.
Esta abordagem territorial permite aos dois artistas ultrapassar o simples testemunho histórico para alcançar uma verdade mais profunda sobre a condição chinesa contemporânea. Ao criar espaços de ficção que condensam a experiência da modernidade, revelam como a transformação do território modifica profundamente as estruturas mentais e afetivas dos indivíduos. O “reino de Gaomi” de Mo Yan e as “cidades imaginárias” de Cui Jie funcionam como laboratórios onde se experimentam novas formas de relação com o tempo e o espaço.
A escritora do Shandong teorizou essa abordagem explicando que seu território literário lhe permite “interrogar as dinâmicas da história e da memória”. Esta formulação poderia aplicar-se perfeitamente à abordagem de Cui Jie, que utiliza a arquitetura como um meio para explorar as camadas temporais da experiência urbana chinesa. Quando ela pinta “Building of Cranes” (2014), sobrepondo gruas estilizadas a um edifício de telecomunicações, ela cria um espaço narrativo onde dialogam diferentes conceções da modernidade: a estética socialista que privilegiava os símbolos coletivos e o individualismo consumista da economia de mercado.
Esta dimensão literária do trabalho de Cui Jie manifesta-se também na sua capacidade de criar atmosferas narrativas. As suas pinturas contam histórias sem personagens, narrativas de espaços habitados por presenças fantasmagóricas. Os edifícios que ela representa carregam em si a memória das vidas que aí decorreram, das esperanças que aí se cristalizaram, das desilusões que aí se acumularam. Tal como em Mo Yan, que povoam as suas paisagens com vozes múltiplas e contraditórias, a arquitetura de Cui Jie torna-se polifónica: cada elemento arquitetónico tem a sua própria voz, o seu próprio relato, a sua própria visão da modernidade chinesa.
Esta abordagem literária do espaço urbano permite que Cui Jie resista à tendência documental que caracteriza uma parte da arte contemporânea chinesa. Em vez de se contentar em registar as transformações do seu ambiente, ela reinventa-as para revelar as suas dimensões ocultas. As suas cidades imaginárias funcionam como utopias críticas que permitem repensar a nossa relação com a modernidade urbana.
As geografias da alienação contemporânea
Nas suas obras mais recentes, nomeadamente a série “Thermal Landscapes” exibida em 2023, Cui Jie radicaliza a sua abordagem introduzindo a questão ecológica. Estas novas composições, onde edifícios com fachadas refletoras dialogam com cerâmicas representando animais, revelam uma consciência aguda dos desafios ambientais da urbanização contemporânea. A artista explora o que se poderia chamar uma “geografia da alienação climática”, onde a arquitetura moderna aparece como um sintoma da nossa desconexão crescente com o mundo natural.
Esta evolução temática testemunha a maturidade artística de Cui Jie, que consegue alargar a sua reflexão sobre o espaço urbano chinês para preocupações planetárias. As suas novas pinturas mostram como os arranha-céus contemporâneos, com as suas fachadas de vidro e aço, funcionam como bolhas climáticas que nos protegem do ambiente natural enquanto contribuem para a sua destruição. Esta contradição trágica, ser simultaneamente protegido e ameaçado pelas nossas construções, constitui um dos paradoxos centrais da modernidade urbana que Cui Jie consegue tornar visível.
A artista desenvolve assim uma crítica subtil mas implacável do que ela designa por “microclimas artificiais” da arquitetura contemporânea. Nas suas últimas obras, os edifícios surgem como organismos tecnológicos que se alimentam da energia do seu ambiente para manter os seus habitantes num conforto artificial. Esta análise converge com as preocupações dos pensadores ecológicos contemporâneos, que denunciam a arquitetura moderna como um fator de alienação ambiental.
Mais Cui Jie evita a armadilha do pessimismo militante. As suas composições mantêm uma ambiguidade fundamental que impede qualquer leitura unívoca. As cerâmicas animais que ela integra nas suas paisagens urbanas não funcionam como simples símbolos da natureza ameaçada: revelam antes a permanência do vivo no coração dos nossos ambientes mais artificiais. Estas presenças orgânicas, provenientes do artesanato popular chinês, testemunham a persistência de uma sabedoria tradicional que não foi totalmente apagada pela modernização.
A originalidade da posição de Cui Jie reside na sua capacidade de manter esta tensão dialética sem a resolver. As suas pinturas confrontam-nos com as contradições da nossa época sem propor soluções fáceis. Revelam a dimensão dos desafios que enfrentamos enquanto preservam um espaço para a imaginação utópica. Esta abordagem nuançada, que rejeita tanto o otimismo tecnológico como o catastrofismo ecológico, testemunha uma inteligência artística notável.
A arte de Cui Jie ensina-nos assim a habitar as nossas contradições. Perante a urgência ecológica e social do nosso tempo, ela não propõe nem um regresso nostálgico a um passado idealizado nem uma fuga para um futuro techno-solucionista. Convida-nos antes a desenvolver o que se poderia chamar uma “consciência trágica” da modernidade: a capacidade de assumir plenamente as contradições da nossa condição histórica sem renunciar ao mesmo tempo à esperança de as ultrapassar.
Num mundo onde a arte contemporânea oscila frequentemente entre complacência decorativa e indignação impotente, o trabalho de Cui Jie abre um terceiro caminho: o da lucidez poética que transforma a melancolia em força criadora. As suas arquiteturas imaginárias recordam-nos que a arte ainda pode constituir um laboratório de experimentação social, um espaço onde inventar novas relações com o mundo e com os outros. Nesse sentido, ela perpetua a mais nobre tradição da arte crítica: aquela que transforma a consciência dos nossos limites em abertura ao impensado.
- Cui Jie, “How I became an artist: Cui Jie”, Art Basel, janeiro 2025
- Henri Lefebvre, “La Production de l’espace”, Anthropos, 1974
















