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Damien Hirst: A arte de fazer fortuna com a morte

Publicado em: 18 Novembro 2024

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 6 minutos

Damien Hirst não é simplesmente um artista, é um espelho deformado da nossa época doente. Um reflexo grotesco das nossas obsessões coletivas pela morte, pelo dinheiro e pela imortalidade. Alguns o veem como o Shakespeare da arte contemporânea, outros como um charlatão.

Ouçam-me bem, bando de snobs. Damien Hirst (nascido em 1965) não é simplesmente um artista, é um espelho distorcido da nossa época doente. Um reflexo grotesco das nossas obsessões coletivas pela morte, dinheiro e imortalidade. Uns veem-no como o Shakespeare da arte contemporânea, outros como um charlatão que conseguiu transformar cadáveres de animais em lingotes de ouro. A verdade é mais complexa e mais perturbadora.

Comecemos pela sua relação obsessiva com a morte, essa dança macabra que atravessa a sua obra como um fio negro. “The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living”, o seu tubarão tigre de 4,3 metros flutuando no formol, não é apenas uma provocação. É uma meditação visceral sobre a nossa incapacidade de conceber a nossa própria finitude, um conceito que Heidegger chamava de “ser-para-a-morte”. Mas onde o filósofo alemão teorizava, Hirst materializa. Ele obriga-nos a encarar a morte de frente, a sentir a sua respiração fria no nosso pescoço. O tubarão torna-se o nosso memento mori pessoal, um predador congelado na eternidade que nos lembra o nosso lugar na cadeia alimentar cósmica.

Não é por acaso que este trabalho surgiu nos anos 90, período em que o Ocidente começava a perder as suas últimas ilusões sobre o progresso infinito. O fim da história anunciado por Fukuyama transformou-se no início de uma apocalipse a câmaras lentas. Hirst capturou esse espírito da época com precisão cirúrgica. As suas vitrinas médicas clinicamente assépticas, cheias de medicamentos cuidadosamente alinhados, são altares modernos dedicados à nossa fé cega na ciência e na farmacologia. “Pharmacy” (1992) não é apenas uma instalação, é uma dissecção da nossa sociedade medicalizada ao extremo, onde cada estado de alma tem o seu comprimido correspondente.

Passemos agora à sua segunda grande obsessão: o próprio mercado da arte. “For the Love of God”, esse crânio incrustado com 8 601 diamantes, é a obra mais cinicamente brilhante do século XXI. Ao criar um objeto cujo valor material ultrapassa o valor artístico, Hirst conseguiu transformar o mercado da arte num meio artístico. É Marcel Duchamp sob esteroides capitalistas. Walter Benjamin falava da aura da obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica; Hirst cria obras cuja aura é precisamente o seu valor mercadológico estratosférico.

Os críticos dirão que isto é vulgar, que é provocação gratuita. Mas é precisamente esse o assunto. Num mundo onde a arte se tornou uma classe de ativos como outra qualquer, onde as obras circulam entre portos francos como ações na bolsa, Hirst apenas leva essa lógica ao seu absurdo paroxismo. Ele é o nosso Andy Warhol, mas onde Warhol celebrava a superfície brilhante do capitalismo de consumo, Hirst revela as suas entranhas podres.

A sua série Natural History, com os seus animais seccionados a flutuar no formol, pode ser vista como uma metáfora dessa dissecação do sistema da arte contemporânea. Mother and Child Divided (1993), esta vaca e o seu bezerro cortados ao meio, não é apenas uma reflexão sobre a morte e a separação. É também uma imagem perfeita da forma como o mercado corta e comercializa a arte, transformando seres vivos em mercadorias mortas.

E o que dizer das suas Spot Paintings, estas telas cobertas de pontos de cor alinhados com uma precisão maníaca? Estas obras, produzidas em série por assistentes, são o equivalente artístico dos produtos derivados financeiros: abstrações de abstrações, signos que só remetem para outros signos numa espiral infinita de especulação. É minimalismo transformado em máquina de fazer dinheiro, arte conceptual convertida em produto de investimento.

Mas atenção, não caiam na armadilha de ver Hirst apenas como um manipulador cínico do mercado. A sua fascinação pela morte é autêntica, quase ingênua na sua intensidade. Desde os dezasseis anos que se fazia fotografar com cadáveres na morgue de Leeds. Essa obsessão mórbida insere-se numa longa tradição artística que remonta às vaidades do século XVII. Como salientava Georges Bataille, existe uma ligação profunda entre a morte, o sagrado e o gasto improdutivo. As instalações monumentais de Hirst são catedrais seculares dedicadas a essa trindade pós-moderna.

Tomemos A Thousand Years (1990), essa vitrina contendo uma cabeça de vaca a apodrecer e moscas que nascem, se reproduzem e morrem eletrocutadas por um inseticida. É teatro metafísico ao estilo de Samuel Beckett, uma alegoria brutal do ciclo da vida reduzida à sua expressão mais simples. Mas é também uma crítica acerba à nossa sociedade que mantém a morte à distância enquanto se fascina com ela. Como escrevia Zygmunt Bauman, vivemos numa época de “morte domesticada”, medicalizada, asséptica. Hirst devolve-nos essa morte na sua brutalidade primitiva.

Os seus gabinetes médicos, com as suas filas infinitas de pílulas multicolores, são vaidades contemporâneas que interrogam a nossa relação com a mortalidade. Onde os pintores flamengos do século XVII usavam crânios e velas consumidas para recordar a futilidade da existência, Hirst utiliza medicamentos, os nossos talismãs modernos contra a morte. Estas instalações são meditações sobre o que Foucault chamava a “medicalização indefinida”, essa tendência da sociedade moderna de tratar cada aspeto da vida como um problema médico.

Existe uma coerência intelectual impressionante no seu trabalho, mesmo que frequentemente mascarada pelo espetáculo e escândalo. A sua prática artística pode ser vista como uma exploração sistemática do que Arthur Danto chamava “a transfiguração do banal”, a forma como o contexto artístico transforma objetos comuns em obras de arte. Mas Hirst leva essa lógica mais longe: ele não só transfigura o banal, transfigura a própria morte.

Os críticos que comparam Damien Hirst a Jeff Koons perdem o essencial. Onde Koons celebra o brilho da nossa cultura de consumo, Hirst revela o cadáver em decomposição por baixo do verniz. Ele está mais próximo de Joseph Beuys na sua compreensão do poder xamânico da arte, embora o seu xamanismo seja o do capitalismo tardio. Tal como Beuys usava a gordura e o feltro pelo seu poder simbólico de cura, Hirst usa formaldeído e diamantes pelo seu poder de conservação e transformação.

Veja Beautiful Inside My Head Forever, o seu leilão histórico na Sotheby’s em 2008, que arrecadou 111 milhões de libras esterlinas no mesmo dia em que o Lehman Brothers entrou em colapso. Foi mais do que uma venda, foi uma performance artística que antecipava a total financeirização da arte. Como Guy Debord teria dito, o espetáculo tornou-se o seu próprio produto.

A trajetória de Hirst é a da arte contemporânea em si: partindo de uma autenticidade punk nos armazéns abandonados do East London, tornou-se um império comercial global. Mas mesmo nos seus projetos mais comerciais, há sempre essa obsessão pela morte que confere ao seu trabalho uma gravidade que os seus imitadores nunca conseguiram igualar.

Alguns dirão que ele se vendeu ao mercado, que perdeu a alma artística pelo caminho. Mas foi precisamente vendendo-se que criou as suas obras mais poderosas sobre a mercantilização da arte. Ele tornou-se o Mefistófeles do seu próprio Fausto, transformando a sua corrupção em arte e a sua arte em corrupção num círculo perfeito.

Damien Hirst é o maior artista antropólogo do nosso tempo. Ele não se limita a representar a nossa relação com a morte, o dinheiro e o sagrado; incorpora-a até ao absurdo. As suas obras são diagnósticos implacáveis da nossa civilização doente de si mesma, onde até a morte se tornou uma mercadoria como outra qualquer. E se acha isso deprimente, é porque ainda não percebeu que no mundo de Hirst, a própria depressão é uma oportunidade de mercado.

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Referência(s)

Damien HIRST (1965)
Nome próprio: Damien
Apelido: HIRST
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Reino Unido

Idade: 60 anos (2025)

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