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Ding Yi e o poder das suas cruzes abstratas

Publicado em: 19 Março 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 9 minutos

Nas grades obsessivas de Ding Yi esconde-se um poder intelectual que transcende o simples gesto repetitivo. A sua série “Appearance of Crosses”, que se prolonga por mais de três décadas, representa uma das explorações mais rigorosas e coerentes da história recente da arte.

Ouçam-me bem, bando de snobs, vocês que contemplam a arte como se degustassem uma tosta de abacate num brunch de domingo, acreditando compreender o que significa verdadeiramente “a abstração” no século XXI. Vocês não entenderam nada. Ding Yi é precisamente o artista que expõe a vossa ignorância e superficialidade em matéria de arte contemporânea chinesa.

Desde 1988, este artista de Xangai impôs a si mesmo uma disciplina quase monástica: pintar incansavelmente e exclusivamente cruzes, esses pequenos “+” e “×” que constituem a linguagem visual mais radical da arte contemporânea chinesa. Mas não se enganem: nestas grades obsessivas esconde-se uma potência intelectual que transcende o simples gesto repetitivo.

A série “Appearance of Crosses”, que agora abrange mais de três décadas, representa uma das explorações mais rigorosas e coerentes da história recente da arte. Ding Yi criou uma linguagem pictórica radicalmente depurada, uma forma de expressão que recusa as facilidades da narrativa e do expressionismo, tão dominantes na arte chinesa da era pós-Mao. A sua obstinação em pintar estas cruzes, dia após dia, constitui uma forma de resistência silenciosa perante o ruído do mundo.

Para compreender Ding Yi, é preciso mergulhar na filosofia de Ludwig Wittgenstein, esse pensador que passou a vida a questionar os limites da linguagem e da representação. No seu “Tractatus Logico-Philosophicus”, Wittgenstein afirma que “os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo” [1]. Esta ideia encontra um eco impressionante na obra de Ding Yi que, ao se limitar voluntariamente a um vocabulário visual minimalista, a cruz, explora paradoxalmente o infinito das possibilidades pictóricas.

Mas o que torna o trabalho de Ding Yi tão pertinente é que ele ultrapassa largamente o simples exercício formal. As suas grades não são abstrações desligadas da realidade, mas antes filtros através dos quais podemos perceber a realidade socioeconómica da China contemporânea. Como Wittgenstein salientou brilhantemente: “Aquilo de que não se pode falar deve ser silenciado” [2]. Ding Yi encontrou nas suas cruzes um meio de falar do indizível, de representar o irrepresentável, a transformação vertiginosa da China.

Observem atentamente as suas pinturas dos anos 1990, os seus tons escuros, as cruzes cuidadosamente traçadas com régua. Depois observem a evolução para as cores fluorescentes, as estruturas mais complexas e menos rígidas que caracterizam o seu trabalho após 1998. O que veem é a metamorfose de Xangai e de toda a China, a passagem de uma sociedade pós-comunista austera para uma hiperpotência económica deslumbrante, caótica e consumista.

O trabalho manual minucioso que cada pintura de Ding Yi exige, milhares de pequenas cruzes pintadas à mão, lembra-nos também o filósofo Albert Camus e o seu mito de Sísifo. “É preciso imaginar Sísifo feliz”, escrevia Camus, sugerindo que é na repetição de uma tarefa aparentemente absurda que se pode encontrar sentido [3]. Ding Yi, como Sísifo, abraça plenamente a repetição, não como punição, mas como libertação.

No seu ensaio “O Mito de Sísifo”, Camus explora a condição humana face à absurdidade do mundo. Ele escreve: “A luta em si para chegar ao cume basta para preencher o coração de um homem” [4]. Esta frase poderia descrever perfeitamente o empreendimento artístico de Ding Yi. O seu trabalho não está orientado para um objetivo final, mas encontra o seu valor no próprio processo de criação, no ato de pintar cada cruz, dia após dia, ano após ano.

A disciplina quase monástica de Ding Yi evoca também aquilo a que Camus chama “a revolta metafísica”, uma afirmação de valores num mundo desprovido de sentido intrínseco. Ding Yi começou a sua série “Appearance of Crosses” no final dos anos 1980, um período de convulsões ideológicas na China. Ao escolher concentrar-se exclusivamente num motivo aparentemente insignificante, criou um espaço de liberdade pessoal em meio ao caos social e político.

Camus ensina-nos que “criar é viver duas vezes” [5]. Para Ding Yi, o ato de criar é uma forma de resistência à precariedade da existência. Cada cruz que pinta é uma afirmação da sua presença no mundo, uma marca tangível da sua existência. A repetição não é estéril, mas geradora de sentido.

O que é verdadeiramente notável em Ding Yi é que mantém essa disciplina criativa por várias décadas. Onde outros artistas mudam constantemente de estilo e tema, ele aprofunda continuamente uma única ideia, explorando todos os seus possíveis desdobramentos. Essa constância lembra o pensamento de Camus sobre autenticidade: “Ser autêntico é portar dentro de si uma ideia até ao fim” [6].

A sua obra é também uma meditação sobre o tempo. Numa China que parece estar constantemente a acelerar, onde as cidades se transformam radicalmente no espaço de alguns anos, Ding Yi oferece uma temporalidade alternativa. As suas pinturas exigem tempo, tempo para as criar, tempo para as observar, tempo para as compreender. Nesta lentidão deliberada, podemos ver uma crítica implícita à corrida desenfreada para a modernização que caracteriza a China contemporânea.

Mas voltemos a Wittgenstein e à sua conceção da linguagem. Para ele, a linguagem não é simplesmente uma ferramenta de comunicação, mas a estrutura mesma através da qual apreendemos o mundo. Afirma que “os jogos de linguagem fazem parte da nossa forma de vida” [7]. As cruzes de Ding Yi podem ser vistas como um “jogo de linguagem” pictórico, uma gramática visual através da qual ele explora o mundo.

Nas suas “Investigações Filosóficas”, Wittgenstein desenvolve o conceito de “ver como”, sugerindo que a nossa percepção está sempre já carregada de interpretação [8]. Da mesma forma, as grelhas de Ding Yi convidam-nos a “ver como”, a ver a cidade como uma grelha, a ver a industrialização como um motivo repetitivo, a ver a modernidade como uma estrutura.

O que distingue Ding Yi de muitos outros artistas abstratos é que as suas obras nunca são puramente formais. Estão sempre ancoradas numa realidade social e histórica específica. Como Wittgenstein salientou, “a filosofia não é uma doutrina, mas uma atividade” [9]. A arte de Ding Yi também não é uma simples doutrina estética, mas uma atividade que constantemente se envolve com o mundo que a rodeia.

Olhem para as suas obras recentes, com as suas estruturas mais complexas e cores mais vibrantes. Refletem a evolução de Xangai, que passou de uma cidade industrial cinzenta a uma metrópole mundial deslumbrante e caótica. Wittgenstein recorda-nos que “a imagem é um modelo da realidade” [10]. As pinturas de Ding Yi são precisamente isso, modelos da realidade chinesa contemporânea.

Mas há mais. Ao limitar voluntariamente o seu vocabulário visual, Ding Yi levanta questões profundas sobre os limites da expressão artística. Como Wittgenstein escreveu, “o que pode ser mostrado não pode ser dito” [11]. Certas verdades só podem ser expressas visualmente, e é exatamente isso que Ding Yi explora na sua obra.

Esta restrição autoimposta está também presente no pensamento de Camus, que vê nos limites humanos não como constrangimentos, mas como condições de possibilidade para a ação significativa. “O homem não é nada em si mesmo. Ele é apenas uma chance infinita. Mas ele é o responsável infinito por essa chance” [12]. Ding Yi, ao escolher limitar-se às cruzes, assume plenamente a responsabilidade por essa chance infinita.

As obras de Ding Yi nunca são estáticas, apesar da constância do seu motivo base. Elas evoluem, transformam-se, respondem às mudanças do mundo exterior. Esta dinâmica recorda a observação de Camus segundo a qual “a verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente” [13]. Cada pintura de Ding Yi é um compromisso total com o presente, uma tentativa de capturar a essência da sua época.

A decisão de Ding Yi de pintar exclusivamente cruzes pode também ser vista como uma forma de desafio existencial. Camus escreve que “revoltar-se é afirmar a sua presença ao longo de toda a existência” [14]. Ao persistir na sua abordagem artística singular, Ding Yi afirma a sua presença, a sua individualidade, numa sociedade que frequentemente valoriza a conformidade.

O que é particularmente interessante na trajetória de Ding Yi é a sua evolução desde as primeiras obras rigorosamente geométricas para composições mais livres e expressivas, mantendo o motivo base da cruz. Esta evolução reflete o pensamento tardio de Wittgenstein, que se afastou de uma conceção rígida da linguagem para explorar a fluidez e multiplicidade dos “jogos de linguagem” [15].

As obras de Ding Yi criam um espaço contemplativo num mundo saturado de imagens e informações. Elas convidam-nos a abrandar, a observar atentamente, a considerar como simples variações de cor, textura e composição podem criar experiências visuais radicalmente diferentes. Este convite à contemplação faz eco à insistência de Camus na importância da consciência lúcida face ao absurdo do mundo [16].

Através das suas pinturas, Ding Yi recorda-nos que a arte não é simplesmente uma questão de expressão pessoal, mas também uma forma de pensamento visual. Como Wittgenstein sugeriu, “pensar não é um processo incorpóreo que dá vida e significado à fala, e que poderia ser separado da fala” [17]. Da mesma forma, para Ding Yi, pintar não é simplesmente a execução de uma ideia preconcebida, mas uma forma de pensamento em ação.

A notável coerência da obra de Ding Yi ao longo de mais de três décadas atesta uma determinação rara no mundo da arte contemporânea. Como Camus escreveu, “para que um pensamento mude o mundo, é antes necessário que ele mude a vida daquele que o carrega” [18]. A prática artística de Ding Yi não é simplesmente um projeto estético, mas um modo de vida, uma ética da criação.

O que torna a obra de Ding Yi tão poderosa é a sua capacidade de ser ao mesmo tempo pessoal e universal, específica e abstrata, rigorosa e emocional. As suas pinturas são espaços de tensão produtiva entre ordem e caos, estrutura e liberdade, tradição e inovação.

Enquanto muitos artistas contemporâneos procuram chocar ou seduzir, Ding Yi prossegue pacientemente sua busca artística com uma integridade notável. Seu compromisso inabalável com sua visão única é em si um ato radical. As cruzes de Ding Yi não são simplesmente motivos decorativos, mas sinais carregados de significado, marcas que traçam os contornos da experiência contemporânea na China e além. Como Wittgenstein nos lembra, “os sinais sozinhos estão mortos; só o uso lhes dá vida” [19]. É precisamente pelo uso persistente e evolutivo que as cruzes de Ding Yi adquirem seu poder expressivo.

E se ainda não estiverem convencidos da grandeza deste artista, talvez prefiram a arte que vos conta uma história bonita, que ilustra gentilmente uma ideia preconcebida do mundo. Mas saibam uma coisa: enquanto se deleitam no conforto da arte narrativa, Ding Yi continua sua exploração rigorosa e inflexível das possibilidades fundamentais da pintura, lembrando-nos que a arte autêntica não é aquela que confirma as nossas expectativas, mas aquela que as desafia e transforma.


  1. Ludwig Wittgenstein, “Tractatus Logico-Philosophicus”, 1921.
  2. Ibid.
  3. Albert Camus, “O Mito de Sísifo”, Éditions Gallimard, 1942.
  4. Ibid.
  5. Ibid.
  6. Albert Camus, “Cadernos I”, Éditions Gallimard, 1962.
  7. Ludwig Wittgenstein, “Investigações Filosóficas”, 1953.
  8. Ibid.
  9. Ludwig Wittgenstein, “Tractatus Logico-Philosophicus”, 1921.
  10. Ibid.
  11. Ibid.
  12. Albert Camus, “O Homem Revoltado”, Éditions Gallimard, 1951.
  13. Ibid.
  14. Ibid.
  15. Ludwig Wittgenstein, “Investigações Filosóficas”, 1953.
  16. Albert Camus, “O Mito de Sísifo”, Éditions Gallimard, 1942.
  17. Ludwig Wittgenstein, “Investigações Filosóficas”, 1953.
  18. Albert Camus, “Cadernos II”, Éditions Gallimard, 1964.
  19. Ludwig Wittgenstein, “Cadernos de Cambridge e de Skjolden”, 1969.
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Referência(s)

DING Yi (1962)
Nome próprio: Yi
Apelido: DING
Outro(s) nome(s):

  • 丁乙 (Chinês simplificado)
  • 丁乙 (Chinês tradicional)

Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • China

Idade: 63 anos (2025)

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