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Elitsa Ristova e a frontalidade feminista

Publicado em: 18 Outubro 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 13 minutos

Elitsa Ristova pinta retratos de jovens mulheres que rejeitam a objetificação. As suas composições frontais, herdadas da iconografia bizantina, criam um espaço de resistência visual. Cada olhar direto, cada postura fechada constitui um ato político que afirma a autonomia feminina na metrópole contemporânea.

Ouçam-me bem, bando de snobs. Enquanto vocês discutiam a suposta morte da pintura figurativa nos vossos vernissages mundanos, uma artista de origem macedónia radicada em Londres conduzia calmamente a sua própria insurreição visual. Elitsa Ristova, nascida em 1991, produz retratos de mulheres que não vos olham, que vos desafiam. E esse olhar, precisamente, é toda a diferença entre uma imagem e um manifesto.

A herança bizantina como linguagem de resistência

Ristova não surge do nada. O seu trabalho está enraizado na história artística da Macedónia do Norte, território marcado por séculos de dominação bizantina e otomana. Essa filiação não é anedótica. A arte bizantina, com a sua frontalidade hierática e o seu recusar do naturalismo, constitui a base conceptual sobre a qual ela ergue a sua própria prática [1]. Onde a arte clássica greco-romana procurava reproduzir fielmente a realidade, a estética bizantina privilegiava a abordagem simbólica, a representação espiritual em vez da imitação física.

Essa distinção revela-se central para compreender o trabalho de Ristova. Nas suas telas, as figuras femininas destacam-se sobre fundos monocromáticos, os seus corpos pintados a óleo oferecem uma textura lisa que guia inexoravelmente o olhar para os seus rostos. Essa composição lembra diretamente os ícones bizantinos onde os santos e Cristo apareciam frontalmente, suspensos num espaço dourado intemporal, afastados de toda contingência terrena. As personagens bizantinas não residiam num lugar ou época específicos, mas existiam numa esfera superior, transcendendo o mundo material [1].

Ristova empresta essa estratégia formal mas inverte radicalmente a sua função. Onde o ícone bizantino convidava à contemplação mística e à comunicação com o divino, os seus retratos exigem uma confrontação direta com a subjetividade feminina contemporânea. As jovens mulheres que ela pinta fixam-te com uma intensidade que recusa categoricamente ser consumida pelo olhar. As suas expressões solenes, a linguagem corporal fechada constituem tantas barreiras erigidas contra a objetificação. Essa frontalidade, herdada de Bizâncio, torna-se nela uma ferramenta política de resistência frente ao olhar masculino.

A utilização de fundos lisos e vibrantes em Ristova evoca também a paleta cromática bizantina onde cada cor tinha um significado simbólico preciso. O ouro representava a luz divina, o vermelho a vida sagrada, o azul a existência humana [1]. Em Ristova, estes planos monocromáticos já não servem o sagrado religioso mas sacralizam a identidade feminina. O azul cerúleo profundo de algumas composições ou os tons quentes que ela privilegia conferem às suas figuras uma presença monumental, arrancando-as da banalidade do quotidiano para as instalar num registo de dignidade e autoridade.

Na exposição “Portraits” apresentada na Korea International Art Fair em 2024, esta filiação bizantina aparece com uma clareza impressionante. Ristova explora deliberadamente as formas estilizadas e os tons planos característicos da arte bizantina, rejeitando o realismo em favor de uma expressão mais simbólica e emocional [2]. Esta abordagem inscreve-se numa lógica de apropriação cultural. Originária de um território impregnado de história bizantina, ela não se limita a citar essa herança, ela a reativa, a desvia, fazendo dela uma arma estética ao serviço de uma causa feminista contemporânea.

O que deve entender-se é que Ristova não produz pastiches bizantinos. Ela realiza uma translação histórica audaciosa. Se os ícones medievais serviam para materializar a presença divina através de uma semelhança cuidadosamente codificada, os retratos de Ristova materializam a presença feminina autónoma, recusando ser reduzida a uma imagem dócil. A frontalidade, a rigidez das figuras, o hieratismo que caracterizavam a arte religiosa bizantina tornam-se nela marcadores visuais de uma subjetividade que resiste, que se recusa, que impõe os seus próprios termos.

Virginia Woolf e a inscrição espacial do feminino

Se a influência bizantina fornece a Ristova a sua linguagem formal, é na literatura modernista, e particularmente em Virginia Woolf, que se encontra o equivalente conceptual da sua abordagem. Woolf, figura central do Bloomsbury Group, dedicou a sua vida literária a desconstruir as representações convencionais das mulheres, a explorar a sua psicologia complexa para além dos estereótipos vitorianos [3]. O seu ensaio “Um Tecto Todo Seu” permanece um texto fundador do feminismo moderno, argumentando que para criar livremente, as mulheres devem dispor de um espaço próprio, material e simbólico, alheio à dominação masculina.

Esta questão do espaço revela-se central para interpretar o trabalho de Ristova. Os seus retratos criam precisamente esse “teto todo seu” visual que Woolf exigia. Os fundos monocromáticos, desprovidos de qualquer elemento narrativo ou contextual, constituem espaços protegidos onde as figuras femininas existem para si mesmas, libertas da necessidade de se justificarem ou se conformarem às expectativas do espectador. Neste espaço pictórico abstracto, elas não são definidas pela sua relação com os homens, com as crianças, com o trabalho doméstico. Elas são, simplesmente, plenas.

Woolf escrevia que “as mulheres estimulam a sua imaginação pela sua graça e pela sua arte de viver” [3]. Esta afirmação encontra um eco poderoso na forma como Ristova escolhe e representa os seus modelos. Os seus retratos não são estudos anatómicos neutros mas celebrações da agência feminina, da capacidade das mulheres de ocupar o espaço com confiança. O contacto visual direto que mantêm os seus sujeitos recorda a frontalidade bizantina, certamente, mas ressoa igualmente com a reivindicação de uma presença feminina em Woolf que se recusa a ser marginalizada ou invisibilizada.

Em “Mrs Dalloway” e “Ao Farol”, Woolf desdobrava uma técnica narrativa inovadora, o fluxo de consciência, para penetrar a interioridade feminina e revelar a sua riqueza psicológica. Ristova realiza visualmente uma operação semelhante. Ao evitar deliberadamente o efeito trompe-l’oeil, ela sublinha que as suas criações devem ser percecionadas como interpretações pintadas e não como simples imitações da realidade. Esta abordagem convida os espectadores a considerar os indivíduos representados com cuidado, respeito e por vezes veneração, ao mesmo tempo que questiona a noção do corpo feminino como objeto de consumo visual.

Woolf explorava nos seus romances a fluidez sexual, a independência feminina e a criatividade para lá das convenções [3]. “Orlando”, o seu romance mais audacioso, apresenta uma personagem que atravessa os séculos mudando de género, questionando radicalmente as construções de género. Ristova, na sua prática contemporânea, dá continuidade a este questionamento. Os seus retratos de jovens mulheres do século XXI, provenientes de meios diversos, representam uma metrópole pós-pandémica multicultural e multifacetada. Esta diversidade não é cosmética mas política. Afirma que a experiência feminina não pode ser reduzida a um modelo único, manifestando-se em infinitas variações.

A relação de Woolf com a representação visual revelava-se complexa e ambivalente. Criada numa família onde o retrato ocupava um lugar central, fotografada pela sua tia Julia Margaret Cameron, pintada pela sua irmã Vanessa Bell, conhecia intimamente o poder e os perigos da imagem [3]. Escreveu mesmo “As palavras são um meio impuro… teria sido muito melhor nascer no reino silencioso da pintura” [3]. Esta tensão entre o verbal e o visual, Ristova resolve-a a favor deste último. Os seus retratos falam sem palavras, comunicam diretamente pela cor, pela composição, pelo olhar.

O ensaísta crítico Adam Szymanski nota que o trabalho de Ristova “é mais audacioso e mais sério” do que o de algumas contemporâneas, citando a sua pintura de 2023 “Sweet Whispers of Time” onde duas figuras se entrelaçam intimamente contra um fundo azul cerúleo [4]. A fluidez das pinceladas combinada com o posicionamento gracioso das figuras evoca uma vulnerabilidade e uma confiança mútua. Esta intimidade entre mulheres recorda as relações que Woolf mantinha com Vita Sackville-West, Ottoline Morrell e outras, relações que alimentavam a sua imaginação criativa e colocavam em causa as normas heteronormativas da sua época.

O Bloomsbury Group, do qual Woolf era a figura central, valorizava a igualdade sexual, a liberdade intelectual e o debate aberto [3]. Estes valores transparecem nas escolhas estéticas de Ristova. Ao representar mulheres de cor, ao celebrar diversas morfologias e expressões identitárias, ela perpetua este espírito de inclusividade e questionamento das hierarquias estabelecidas pelo Bloomsbury Group. As suas telas constituem espaços de liberdade onde as normas sociais opressivas ficam suspensas, onde as mulheres podem existir segundo os seus próprios termos.

A pintura como ato de afirmação

Compreender Ristova exige abandonar as expectativas convencionais sobre o que deveria ser um retrato feminino. A sua prática insere-se numa longa tradição de contestação feminista que atravessa a arte do século XX mas que nela assume uma forma específica, informada pelo seu percurso pessoal. Proveniente de uma pequena cidade da Macedónia do Norte, incentivada desde a infância pela mãe a perseguir as suas ambições artísticas, estudou primeiro na Universidade Goce Delčev de Štip antes de se instalar em Londres para obter o seu mestrado no London College of Contemporary Arts.

Este percurso geográfico e cultural imprime ao seu trabalho uma tensão produtiva. Ristova não pinta a partir do centro metropolitano estabelecido mas a partir de uma posição de dupla pertença, entre a herança balcânica e a cena londrina contemporânea. Esta postura permite-lhe ver o que outros não vêem, questionar o que outros aceitam sem reflexão. Os seus retratos revelam a natureza diversa e multifacetada de uma metrópole do século XXI pós-pandémica, mas o fazem mobilizando estratégias visuais vindas de outros lugares, de outro tempo, de outra história.

A exposição “Equanimity of the Mind” que apresentou em 2021 no London College of Contemporary Arts enquanto era artista em residência marcou uma viragem na sua carreira. O próprio título revela as suas preocupações. A equanimidade, essa capacidade de manter a estabilidade emocional face às perturbações, torna-se um atributo das figuras que pinta. Os seus rostos calmos, as suas posturas asseguradas encarnam uma força tranquila que se recusa a deixar-se destabilizar pelas injunções exteriores. Esta equanimidade não é nada passiva. É, pelo contrário, uma forma ativa de resistência.

Em 2024, a sua participação na Korea International Art Fair ampliou ainda mais o seu público. Apresentado pela galeria Waterhouse & Dodd Contemporary, o seu trabalho encontra um público asiático que nele encontra ressonâncias próprias. A universalidade da sua abordagem não provém de um nivelamento das diferenças, mas antes da sua capacidade de articular preocupações específicas, uma história particular, uma estética singular de modo a criar pontes, a abrir diálogos.

A questão económica não pode ser elidida. Os resultados das leilões de Ristova ultrapassaram sistematicamente as estimativas por um fator de dez, com a obra Twirls and Twine (2020) vendida pela Phillips em 2023 por mais de 175.000 euros incluídos os encargos. Esta valorização comercial espetacular levanta questões legítimas sobre a mercantilização da arte feminista. Como pode uma prática que pretende ser crítica da objetificação dos corpos femininos circular num mercado de arte ele próprio estruturado por lógicas capitalísticas e patriarcais?

A própria Ristova articula a sua filosofia artística em termos que escapam ao mercantilismo. Numa declaração, ela afirma que a arte lhe permite empreender “uma odisseia, desvendando as dimensões interiores e exteriores da existência, descobrindo novas facetas de si mesma” e fornece-lhe “uma tela para expressar livremente os seus pensamentos e emoções” [5]. Esta conceção da arte como exploração existencial e expressão pessoal insere-se numa tradição romântica que se poderia crer ultrapassada. Mas Ristova prova que esta postura conserva a sua relevância quando combinada com uma consciência política aguda.

As suas telas servem de exploração do retrato contemporâneo através de uma perspetiva feminista, questionando normas enraizadas e amplificando vozes marginalizadas. Ela procura envolver os públicos em encontros visual e intelectualmente estimulantes que desencadeiem conversas sobre género, poder e representação, defendendo, em última análise, uma maior inclusividade e equidade no mundo da arte e além.

Esta ambição pode parecer desmedida para uma artista ainda no início da sua carreira. No entanto, o acolhimento crítico que recebe sugere que toca em algo fundamental. O crítico Adam Szymanski, escrevendo para a MutualArt, coloca Ristova ao lado de outras retratistas importantes da sua geração como Anna Weyant e Chloe Wise, notando que o seu trabalho se distingue pela sua ousadia e seriedade [4]. Este reconhecimento valida uma abordagem que recusa as facilidades, que não procura seduzir mas confrontar.

O que torna o trabalho de Ristova particularmente poderoso em 2025 é a sua capacidade de articular preocupações urgentes sem cair no didatismo. As suas pinturas não são panfletos ilustrados. Funcionam antes de mais como objetos estéticos sofisticados, dominando os códigos do meio pictórico. A paleta cromática quente que ela utiliza, a qualidade tátil das suas superfícies pintadas, a composição equilibrada das suas telas são testemunho de uma mestria consumada. É precisamente essa excelência técnica que permite que a sua mensagem política passe sem se reduzir a um slogan.

A influência da arte bizantina e a ressonância com Virginia Woolf não constituem meras referências eruditas destinadas a legitimar academicamente a sua prática. São ferramentas ativas, recursos mobilizados para construir uma linguagem visual capaz de dizer o que deve ser dito sobre a condição feminina contemporânea. Bizâncio oferece o modelo formal da presença não-naturalizada, recusando a ilusão mimética. Woolf fornece o quadro conceitual da autonomia espacial e psicológica feminina. Ristova funde esses legados para produzir algo novo.

Os seus retratos não propõem uma visão harmoniosa ou reconciliada das relações de género. Mantêm uma tensão produtiva, uma desconfiança que se recusa a resolver-se numa consolação fácil. O olhar que os seus sujeitos lançam sobre o espetador não procura aprovação, não solicita empatia. Afirma simplesmente o direito de existir plenamente, sem compromisso, sem desculpa. Esta intransigência formal constitui a força maior do seu trabalho.

A questão de saber se Ristova conseguirá manter esta exigência ao longo do tempo permanece em aberto. O mercado de arte possui uma capacidade formidável para digerir e neutralizar as práticas mais críticas. O reconhecimento institucional que ela começa a receber, os prémios elevados alcançados pelas suas obras poderiam eventualmente embotar a força da sua abordagem. Mas por enquanto, cada nova tela prova que o seu compromisso permanece intacto.

Elitsa Ristova pinta mulheres que não lhes devem nada. Mulheres que ocupam o espaço pictórico com uma autoridade tranquila, que o olham sem pestanejar, que se recusam a jogar o jogo da sedução visual. Esta simples proposta, num mundo saturado de imagens femininas produzidas para e pelo desejo masculino, constitui um acto político de rara radicalidade. O facto de que este ato empreste as suas formas à iconografia bizantina do século XII e o seu espírito a uma romancista inglesa do início do século XX não diminui em nada a sua pertinência. Pelo contrário, demonstra que a luta pela autodeterminação feminina atravessa épocas e geografias, mobilizando todas as ferramentas disponíveis para fazer ouvir a sua voz.

A pintura de Ristova recorda-nos que a imagem nunca é inocente, que ela sempre veicula relações de poder, hierarquias implícitas, atribuições identitárias. Ao escolher representar jovens mulheres diversas em poses que contestam as convenções da representação feminina, ela não se limita a produzir belos objetos. Intervém no campo das representações visuais para criar um espaço de resistência, um lugar onde outras imagens se tornam possíveis, onde outras formas de ver e de ser vistas emergem.

É esta ambição que faz do seu trabalho muito mais do que uma simples contribuição para a história do retrato contemporâneo. Ristova não procura aperfeiçoar uma tradição, mas sim revertê-la contra si mesma, mobilizando o seu poder formal ao serviço de um projeto de transformação social. Num contexto em que as imagens femininas circulam massivamente nas redes sociais, onde os corpos das mulheres permanecem submetidos a uma vigilância e objetificação constantes, as suas pinturas oferecem um contra-modelo precioso. Estas mostram que outra economia visual é possível, onde as mulheres deixam de ser objetos do olhar para se tornarem sujeitos que olham, onde definem elas próprias os termos da sua representação.

É exatamente isto que está em jogo nestas telas aparentemente simples. Por trás da superfície lisa e colorida, por detrás destes rostos calmos e destes olhares diretos, escondem-se uma proposta política complexa que se alimenta da história da arte e da teoria feminista para construir uma linguagem visual contemporânea capaz de contestar a ordem estabelecida. Ristova prova que a pintura figurativa, longe de ser um meio esgotado, mantém um poder crítico considerável quando é manejada com inteligência e consciência política. Nas suas mãos, o retrato volta a ser aquilo que sempre deveria ter sido: não um espelho complacente, mas um instrumento de questionamento e transformação.


  1. Arte bizantina, artigo Wikipédia, consultado em outubro de 2025.
  2. Korea International Art Fair 2024, site oficial KIAF. Apresentação da exposição “Portraits” de Elitsa Ristova.
  3. Virginia Woolf, artigo Wikipédia, consultado em outubro de 2025.
  4. Adam Szymanski, “Unmasked Emotions: Portraits of Fondness and Frustration in the 2020s”, MutualArt, novembro de 2023.
  5. Citação de Elitsa Ristova, Phillips Auction House, 2023.
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Referência(s)

Elitsa RISTOVA (1991)
Nome próprio: Elitsa
Apelido: RISTOVA
Género: Feminino
Nacionalidade(s):

  • Macedônia do Norte

Idade: 34 anos (2025)

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