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Eric Fischl : A arte de revelar o não dito

Publicado em: 28 Junho 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 9 minutos

Eric Fischl revela as falhas do Sonho Americano através das suas telas impressionantes. Este mestre do neoexpressionismo americano disseca a burguesia dos subúrbios com uma perspicácia psicológica notável, transformando cada cena doméstica num teatro do inconsciente. A sua arte perturba tanto quanto fascina, revelando os nossos demónios interiores.

Ouçam-me bem, bando de snobs : Eric Fischl pinta a América como ninguém mais ousa olhar. Com as suas telas de grandes dimensões e a sua paleta cromática impressionante, este natural de Nova Iorque, nascido em 1948, não se limita a representar a burguesia dos subúrbios americanos. Ele disseca, interroga, desnuda-a com uma perspicácia que ultrapassa o simples voyeurismo para alcançar uma verdadeira arqueologia da alma coletiva.

Desde os seus primeiros sucessos nos anos 1980, este herdeiro do neoexpressionismo americano desenvolve uma obra singular que revela as falhas do Sonho Americano. As suas composições, de uma precisão narrativa notável, capturam esses momentos de suspensão em que as máscaras sociais vacilam, em que a intimidade se revela apesar de si mesma. Nas suas piscinas ensolaradas de Long Island, nos seus salões aconchegantes e nos seus quartos de hotel anónimos, Fischl orquestra um teatro do inconsciente onde cada personagem carrega consigo o peso de uma verdade inconfessável.

A obra de Fischl insere-se numa tradição pictórica que deve tanto a Edward Hopper quanto a Edgar Degas, mas encontra a sua força numa compreensão íntima dos mecanismos psíquicos que regem as relações humanas. Pois onde outros artistas se contentam em descrever, Fischl interroga. Onde alguns contemplam, ele perturba. A sua pintura funciona como um espelho implacável dirigido a uma sociedade que prefere não se olhar.

O território do entre-dois

O universo pictórico de Fischl ocupa esse território incerto que a literatura americana contemporânea soube mapear tão bem. Como John Cheever nas suas contos suburbanos ou Richard Ford nas suas crónicas da classe média, Fischl explora esses espaços domésticos onde se escondem os não ditos familiares [1]. Essa afinidade não é fortuita: os três escrutinam as zonas de sombra da existência burguesa com uma lucidez que beira a crueldade.

Em Cheever, as piscinas do Condado de Westchester ocultam dramas conjugais e fracassos pessoais sob um verniz de respeito social. Em “The Swimmer” particularmente, o protagonista atravessa os jardins do seu subúrbio passando de piscina em piscina, percurso iniciático que revela progressivamente a extensão da sua decadência. Essa metáfora aquática encontra o seu eco visual nas telas de Fischl, onde a água se torna o revelador das tensões familiares e dos desejos reprimidos.

O artista americano partilha com o escritor essa fascinação pelos rituais sociais da burguesia americana, esses códigos implícitos que regem as interações e mascaram as verdadeiras emoções. Em “Bad Boy” (1981), uma das suas obras mais famosas, Fischl representa um adolescente que observa uma mulher nua deitada numa cama, enquanto desliza furtivamente a mão na sua mala. Esta cena, de uma ambiguidade perturbadora, condensa numa só imagem a complexidade das relações de poder, desejo e transgressão que estruturam as relações humanas.

A literatura de Cheever, assim como a pintura de Fischl, revelam esta verdade fundamental: por trás da fachada polida dos subúrbios residenciais escondem-se indivíduos dominados pelos seus demónios interiores. O alcoolismo, a frustração sexual, o tédio existencial, todas estas moléstias da prosperidade burguesa encontram nas suas respetivas obras uma expressão de uma precisão arrebatadora. Esta convergência de olhares explica aliás porque Fischl pôde colaborar com escritores como E.L. Doctorow ou Jamaica Kincaid, partilhando com eles a vontade de sondar as profundezas da alma americana.

A influência desta tradição literária na obra de Fischl manifesta-se também na sua conceção da temporalidade pictórica. Tal como os contos de Cheever que capturam um momento de crise revelador de uma existência inteira, as telas de Fischl funcionam por epifanias visuais. Cada composição captura um instante decisivo em que as personagens se confrontam com uma verdade que preferiam ignorar.

Esta abordagem narrativa distingue Fischl dos seus contemporâneos neo-expressionistas como Julian Schnabel ou David Salle, mais preocupados com a experimentação formal do que com a dimensão psicológica dos seus temas. Em Fischl, a técnica pictórica serve uma visão do mundo, uma interrogação sobre a condição humana que ecoa as preocupações da grande literatura americana do século XX.

O inconsciente à luz do dia

Se Fischl extrai da tradição literária americana a sua compreensão dos mecanismos sociais, volta-se para a psicanálise para explorar as profundezas da psique humana. A sua abordagem da criação artística apresenta, aliás, semelhanças impressionantes com os métodos de investigação do inconsciente desenvolvidos por Sigmund Freud e seus sucessores.

O próprio artista reconhece a importância do que chama “a descoberta narrativa” no seu processo criativo. Em vez de partir de uma ideia preconcebida, Fischl junta elementos díspares, fotografias, esboços, memórias, até emergir uma composição que faça sentido emocionalmente. Este método evoca diretamente a técnica da associação livre, apreciada na psicanálise, onde o paciente deixa vir à consciência pensamentos aparentemente desconexos que revelam progressivamente as estruturas profundas do seu psiquismo.

A dimensão psicanalítica da obra de Fischl manifesta-se com particular evidência nas suas representações da sexualidade adolescente. Quadros como “Sleepwalker” (1979) ou “Birthday Boy” (1983) exploram esses territórios obscuros onde se misturam o despertar do desejo e a culpa, o voyeurismo e a inocência. Estas obras funcionam como reveladores dos mecanismos de recalcamento que estruturam a sociedade puritana americana.

Freud, nos seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” [2], destacara a importância da sexualidade infantil na construção da personalidade adulta. As telas de Fischl parecem ilustrar esta intuição fundamental mostrando como as experiências da adolescência continuam a assombrar a idade adulta. As suas personagens transportam em si as marcas desses traumas fundadores, esses momentos em que a inocência se transforma em conhecimento.

O artista desenvolve também uma reflexão sobre o olhar e o voyeurismo que ecoa as análises lacanianas sobre a estrutura escópica do inconsciente. Jacques Lacan mostrou como o desejo humano se estrutura em torno do olhar do Outro, como a nossa identidade se constrói no e pelo olhar que nos observa. As composições de Fischl encenam constantemente esta dialética do olhar e do observado, criando situações em que as personagens estão presas numa rede de olhares cruzados que revelam os seus desejos secretos.

Esta dimensão psicanalítica permite compreender por que as obras de Fischl frequentemente provocam um sentimento de estranheza inquietante no espectador. As suas cenas domésticas, aparentemente banais, contêm uma carga emocional que ultrapassa o seu conteúdo manifesto. Tal como nos sonhos analisados por Freud, o significado profundo destas imagens reside menos no que mostram do que no que sugerem, nas associações que desencadeiam em quem as contempla.

A utilização recorrente da figura da criança na obra de Fischl também merece ser analisada à luz da teoria psicanalítica. Essas crianças, muitas vezes nuas ou em situações de vulnerabilidade, encarnam essa parte de nós mesmos que a socialização nos obriga a reprimir. Representam a inocência perdida, mas também a verdade crua dos impulsos humanos antes da sua domesticação pela civilização.

A psicanálise ensina-nos que a arte permite uma sublimação dos impulsos, uma transformação da energia libidinal em criação estética. A obra de Fischl ilustra perfeitamente esse processo ao dar forma plástica aos fantasmas e às angústias que atravessam o inconsciente coletivo americano. As suas telas funcionam como espaços de projeção onde cada espectador pode reconhecer os seus próprios demónios interiores.

A técnica ao serviço da emoção

A mestria técnica de Fischl coloca-se inteiramente ao serviço da sua visão artística. O seu estilo pictórico, caracterizado por uma gestualidade livre e uma utilização expressiva da cor, cria essa atmosfera de inquietação difusa que caracteriza as suas melhores obras. A técnica do artista revela uma influência assumida da grande tradição pictórica americana, desde Edward Hopper até Philip Pearlstein, desenvolvendo ao mesmo tempo uma linguagem plástica pessoal de notável coerência.

O uso da luz em Fischl merece uma atenção particular. Tal como em Hopper, ela não se limita a iluminar a cena, mas participa na construção do sentido. Esta luz crua, frequentemente artificial, revela tanto quanto oculta, criando zonas de sombra onde se abrigam os não-ditos. Em “American Hula” (2020), esta luz dourada do pôr do sol transforma um exercício de ginástica numa meditação melancólica sobre o declínio do império americano.

A composição de Fischl procede também de uma lógica cinematográfica que reforça o impacto narrativo das suas obras. As suas personagens parecem captadas num entre-tempo, como suspensas entre um antes e um depois que o espectador deve imaginar. Esta temporalidade elástica, característica do meio pictórico, permite a Fischl condensar numa só imagem toda a complexidade de uma situação psicológica.

A evolução estilística do artista testemunha uma busca constante por novos meios de expressão. As suas obras recentes, como a série “Hotel Stories” (2024), revelam uma economia de meios aumentada, uma capacidade para sugerir em vez de demonstrar que demonstra uma maturidade artística alcançada. Estas telas, de uma ambiguidade narrativa assumida, colocam o espectador na posição de intérprete, obrigando-o a construir ele próprio a narrativa a partir dos índices visuais propostos.

Um espelho da América contemporânea

A obra de Fischl ultrapassa o âmbito da simples observação sociológica para propor uma verdadeira radiografia da América contemporânea. As suas telas recentes, marcadas pelo surgimento de novas angústias coletivas, testemunham a capacidade do artista para adaptar o seu olhar às mutações da sociedade americana.

A série “Late America” (2020), realizada no contexto da pandemia e das tensões políticas que abalaram os Estados Unidos, revela um Fischl mais sombrio, mais preocupado. Estas obras, imersas numa melancolia apocalíptica, interrogam o futuro de uma nação dominada pela dúvida e pela divisão. O artista abandona aqui os cenários familiares das suas primeiras telas para mergulhar as suas personagens em paisagens indefinidas, metáforas de um país que perdeu os seus pontos de referência.

Esta evolução temática acompanha-se de uma reflexão sobre o papel do artista na sociedade contemporânea. Fischl, consciente das críticas que lhe apontam complacência para com a burguesia que representa, reivindica a sua posição de observador crítico em vez de juiz moral. Esta postura, que pode parecer ambígua, constitui na verdade a força da sua obra: ao recusar a facilidade da denúncia, obriga o espetador a questionar os seus próprios compromissos com um sistema que por vezes pretende criticar.

A arte de Fischl funciona como um revelador das contradições da época contemporânea. Num mundo dominado pela imagem e pela comunicação, as suas telas recuperam a força primitiva da pintura, a sua capacidade de emocionar e de questionar para além dos discursos convencionais. Esta permanência do poder pictórico explica provavelmente o sucesso comercial do artista, cujas obras atingem hoje somas consideráveis no mercado internacional de arte.

No entanto, reduzir a obra de Fischl à sua dimensão comercial seria perder o seu contributo essencial para a arte contemporânea. Ao reabilitar a figuração narrativa numa época dominada pela arte conceptual, o artista abriu novos caminhos para a expressão pictórica. A sua influência é hoje sentida em inúmeros jovens pintores que, tal como ele, procuram conciliar o compromisso artístico com a legibilidade popular.

A obra de Fischl lembra-nos que a arte verdadeira não se limita a refletir a sua época, mas contribui para a moldar. Ao dar forma plástica às angústias e desejos dos seus contemporâneos, o artista americano participa nesta tomada de consciência coletiva sem a qual nenhuma mudança social é possível. As suas telas, longe de serem meros testemunhos, constituem ferramentas de compreensão do real cuja pertinência ultrapassa largamente os limites geográficos e temporais da sua criação.

No final deste percurso pelo universo de Fischl, impõe-se uma evidência: estamos perante um artista maior que soube renovar os códigos da pintura figurativa sem nunca renegar as suas ambições estéticas. A sua obra, alimentada pela literatura e pela psicanálise, ilumina a nossa compreensão da época contemporânea com uma acuidade rara. Num mundo saturado de imagens, Eric Fischl lembra-nos que a arte pictórica conserva uma força de revelação insubstituível, uma capacidade única de captar a essência do humano para lá das aparências sociais.


  1. Richard Ford, “Rock Springs: Stories”, Atlantic Monthly Press, 1987
  2. Sigmund Freud, “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Gallimard, 1987
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Referência(s)

Eric FISCHL (1948)
Nome próprio: Eric
Apelido: FISCHL
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Estados Unidos

Idade: 77 anos (2025)

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