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Genesis Tramaine e os seus santos neoexpressionistas

Publicado em: 13 Agosto 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

Genesis Tramaine cria retratos devocionais de um poder espiritual impressionante. Esta artista de Brooklyn mistura técnicas expressionistas e uma visão mística para reinventar a iconografia cristã. Os seus santos de rostos múltiplos, pintados com “Holy Spirit” como material, quebram as convenções religiosas tradicionais e oferecem uma estética da graça autenticamente contemporânea.

Ouçam-me bem, bando de snobs: Genesis Tramaine pinta santos que nada têm a ver com as vossas cromolitografias de sacristia. Esta mulher de Brooklyn, nascida em 1983, transforma cada tela num altar portátil, cada pincelada num ato de fé. Os seus retratos devocionais não se parecem com nada do que tenha visto nos vossos museus, e é exatamente por isso que são importantes.

A arte de Tramaine inscreve-se numa abordagem que se poderia qualificar de neoexpressionismo espiritual. Os seus rostos negros, deformados pela êxtase e sofrimento, surgem de fundos monocromáticos vibrando com uma energia terrestre. Em Joy Comes In The Morning (2020), um rosto oval justapõe-se sobre si mesmo numa dança de múltiplas expressões, enquanto a palavra “amém” inscreve-se discretamente num canto da tela. Esta multiplicação dos traços faciais, olhos, bocas e narizes que se desdobram, evoca tanto as visões místicas como as técnicas cubistas de fragmentação do real.

O legado da arte bruta americana

Seria tentador aproximar a obra de Tramaine da de Jean-Michel Basquiat, e esta aproximação não é fortuita. Tal como o seu predecessor, ela extrai da estética do graffiti nova-iorquino dos anos 1980, essa época em que os muros de Brooklyn se tornavam suportes de uma expressão artística urgente e autêntica [1]. Mas onde Basquiat questionava os códigos da sociedade de consumo e do racismo sistémico, Tramaine ultrapassa-os para alcançar uma dimensão propriamente mística.

A arte bruta, tal como definida por Jean Dubuffet, está totalmente livre das convenções académicas para se situar numa expressão pura, não corrompida pelos códigos culturais estabelecidos. Tramaine insere-se perfeitamente nesta linhagem, mas com uma especificidade: o seu “bruto” não é o do inconsciente freudiano, mas o da revelação divina. As suas pinturas nascem do que ela chama visões recebidas em oração, os “blueprints of my prayers” que guiam a sua mão na direção de formas inesperadas.

Esta abordagem lembra as práticas dos pintores visionários americanos como Sister Gertrude Morgan, que Tramaine cita como uma influência maior. Morgan, também ela, pintava sob inspiração divina, criando obras de uma força expressiva impressionante. Mas Tramaine leva esta tradição mais longe enriquecendo-a com um vocabulário plástico contemporâneo. As suas telas de grande formato (frequentemente 180 x 180 cm) impõem uma presença física que transforma a experiência de contemplação numa verdadeira encontro espiritual.

A técnica de Tramaine mistura acrílico, gouache, bastões de óleo e pastel a óleo, mas adiciona a esta lista de materiais elementos no mínimo inesperados: sal de Lawry, água da chuva e, sobretudo, “Holy Spirit” e “Yahweh” que ela inscreve explicitamente na lista dos componentes das suas obras. Esta abordagem, longe de ser anedótica, revela uma conceção da arte como colaboração divina. A artista não cria ex nihilo; ela torna-se médium, canal de uma energia que a ultrapassa.

Teatro e performance: a pintura como liturgia

A obra de Tramaine só é plenamente compreendida em relação às artes performativas, e mais particularmente à tradição teatral afro-americana. As suas personagens, fixas nas suas molduras, parecem contudo animadas por um movimento interior que evoca tanto os transe religiosos como as performances de gospel [2].

Em Bearer of Good News (2020), a figura central ocupa quase todo o espaço da tela, como um ator que se ergue diante do seu público. Os traços definidos de amarelo, preto e azul que compõem esta personagem recordam as máscaras expressionistas, mas também as pinturas corporais rituais. Tramaine explica que esta obra presta homenagem à energia das jovens negras, frequentemente reprimida pela sociedade. Ao pintar, ela volta a dar-lhes voz, transformando a sua tela num palco onde podem expressar-se as vozes abafadas.

Esta dimensão performativa reencontra-se no processo criativo em si. Tramaine pinta frequentemente no chão, de joelhos, numa postura que evoca tanto a oração como a dança. Ela ouve música gospel contemporânea enquanto trabalha, inscrevendo literalmente o ritmo musical nos seus gestos pictóricos. Esta abordagem recorda as práticas de alguns expressionistas abstratos como Jackson Pollock, mas com uma dimensão espiritual explícita que estava ausente nestes últimos.

O teatro afro-americano, desde os minstrel shows desviados pelos artistas negros até às criações contemporâneas, sempre teve essa capacidade de transformar o palco num espaço de resistência e afirmação identitária. As personagens de Tramaine herdam esta tradição: não são simples retratos, mas encarnações da santidade negra que reivindicam o seu lugar num panteão artístico há muito dominado pelas representações eurocêntricas.

A própria artista reivindica esta dimensão subversiva quando declara querer “desmontar o olhar patriarcal sobre a arte religiosa”. Os seus santos com rostos deformados, múltiplos olhos, bocas escancaradas, desafiam as convenções iconográficas tradicionais. Em Saint Bathsheba (2020), a figura feminina ostenta uma expressão simultaneamente dolorosa e extática que evoca tanto Bacon como as máscaras rituais africanas.

Uma espiritualidade queer e inclusiva

A posição de Tramaine enquanto mulher negra e queer na Igreja Batista do Sul acrescenta uma dimensão política inegável ao seu trabalho. A sua exposição de 2018 intitulada “God Is Trans” não deixava dúvidas sobre as suas intenções: reinventar a iconografia cristã para incluir corpos e identidades marginalizadas.

Esta abordagem insere-se num movimento mais amplo de reapropiação dos símbolos religiosos pelas comunidades LGBTQ+. Mas Tramaine vai além da simples reivindicação identitária. Os seus santos transcendem as categorias de género e raça para alcançar uma humanidade universal. Em Fighting Demons (2020), a mão levantada em sinal de bênção pode ser interpretada tanto como um gesto de proteção como de resistência.

A artista assume plenamente a sua fé cristã, o que constitui uma posição singular no mundo da arte contemporânea, geralmente desconfiado em relação às expressões religiosas explícitas. Mas essa fé não é ingênua nem doutrinal. Alimenta-se de uma leitura crítica e pessoal das Escrituras, enriquecida pela experiência vivida de uma mulher que teve de lutar para fazer reconhecer o seu lugar na Igreja.

Uma nova iconografia para o século XXI

A contribuição mais significativa de Tramaine reside provavelmente na sua capacidade de criar uma iconografia cristã autenticamente contemporânea. Os seus santos não copiam os modelos do passado; inventam novas formas de santidade adaptadas à nossa época.

Em David and Goliath (2020), a cena bíblica tradicional transforma-se numa meditação sobre a violência e a redenção. O gesto de David a brandir a cabeça de Golias pode também ser interpretado como uma mão estendida ao inimigo vencido, sugerindo que a verdadeira vitória reside na compaixão em vez da destruição.

Esta reinterpretação dos relatos bíblicos revela uma compreensão sofisticada das questões teológicas contemporâneas. Tramaine não se limita a ilustrar as Escrituras; ela atualiza-as, tornando-as relevantes para uma geração que procura significado num mundo fragmentado.

As suas cores, ocres terrosos, azuis profundos e amarelos vibrantes, evocam tanto as paisagens do Próximo Oriente antigo como os pores do sol do Brooklyn. Esta síntese geográfica e temporal faz das suas telas espaços de encontro entre o passado e o presente, entre a tradição e a inovação.

A arte como ministério

Tramaine define-se como “devotional painter”, pintora devocional, termo que merece a nossa atenção. Na tradição cristã, devoção designa uma prática espiritual regular, um exercício de fé que envolve todo o ser. Ao apropriar-se deste termo, a artista inscreve a sua prática pictórica numa lógica de serviço divino.

Esta conceção da arte como ministério transforma radicalmente o estatuto da obra. As suas pinturas deixam de ser objetos de contemplação estética, tornando-se instrumentos de transformação espiritual. Elas convidam o espectador a uma experiência que ultrapassa o mero prazer visual para tocar nas questões existenciais fundamentais.

Em Singer of Psalm (2020), as múltiplas bocas abertas da personagem evocam um coro por si só, transformando o retrato individual numa celebração coletiva. Esta multiplicação dos elementos faciais, recorrente na obra de Tramaine, pode ser lida como uma metáfora da comunidade eclesial: somos todos um em Cristo, mas cada um mantém a sua especificidade.

A inscrição de textos nas arestas das suas telas, salmos, afirmações espirituais e mensagens pessoais, reforça esta dimensão litúrgica. Estas palavras, invisíveis de frente, só se revelam ao espectador que se dá ao trabalho de circundar a obra, criando uma espécie de peregrinação pictórica.

Uma linguagem pictórica inédita

O que impressiona na evolução recente da obra de Tramaine é a sua capacidade de inventar uma linguagem pictórica própria, ao mesmo tempo que se inspira em várias tradições. As suas últimas telas, apresentadas na exposição “Sweet Jesus!” (2024), marcam uma evolução significativa: as bocas das suas personagens abrem-se, revelando fileiras de múltiplos dentes que evocam tanto o riso como o grito.

Esta transformação formal traduz uma maturação espiritual. Onde os seus primeiros santos pareciam carregar o peso do mundo sobre os ombros, os novos parecem prontos para falar, para testemunhar a sua fé com uma alegria contagiante. Em Saint Sarai (2024), as feições expressivas sugerem uma mulher que tem coisas importantes para dizer, que carrega em si a sabedoria dos tempos.

Esta evolução estilística acompanha-se de uma reflexão aprofundada sobre o papel da arte na sociedade contemporânea. Tramaine não pinta apenas para si própria ou para a sua comunidade de fé; ela procura criar uma “linguagem futura” que possa tocar as gerações vindouras. As suas telas tornam-se assim testemunhos para o futuro, mensagens de esperança lançadas num mundo à procura de sentido.

Rumo a uma estética da graça

A obra de Genesis Tramaine confronta-nos com uma evidência perturbadora: a arte contemporânea tem amplamente eliminado a dimensão espiritual em favor de um intelectualismo frequentemente estéril. Ao reivindicar a sua fé sem complexos, fazendo da sua prática artística um ato de devoção, ela abre caminhos inexplorados e devolve à arte a sua função primordial: tocar a alma humana no seu mais profundo.

Os seus santos deformados, as suas cores vibrantes, as suas composições transbordantes de energia recordam-nos que a arte ainda pode transformar, elevar, consolar. Num mundo saturado de imagens, as suas pinturas criam um espaço de silêncio e recolhimento que é dolorosamente necessário na nossa época.

Tramaine não revoluciona a arte contemporânea; ela regenera-a ao insuflar nela uma dimensão espiritual autêntica. As suas telas são convites a sair das nossas certezas estéticas para nos deixarmos surpreender pela graça. E talvez esse seja o mais belo presente que uma artista pode oferecer: lembrar-nos que a arte, para além de todos os discursos críticos, continua a ser antes de mais uma questão de fé.


  1. Cooper, Martha. Subway Art. Thames & Hudson, 1984.
  2. Johnson, James Weldon. God’s Trombones: Seven Negro Sermons in Verse. Viking Press, 1927.
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Referência(s)

Genesis TRAMAINE (1983)
Nome próprio: Genesis
Apelido: TRAMAINE
Género: Feminino
Nacionalidade(s):

  • Estados Unidos

Idade: 42 anos (2025)

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