Ouçam-me bem, bando de snobs: Geng Jianyi (1962-2017) não era daqueles artistas que procuram deslumbrar as multidões com golpes de brilho espetaculares. Este pioneiro da arte conceptual chinesa, figura importante da Nova Onda de 1985, passou mais de três décadas a desmontar os mecanismos mais banais da nossa existência quotidiana com a minúcia de um relojoeiro e a ironia mordaz de um observador extraterrestre. A sua obra, de uma simplicidade enganadora, revela os absurdos das nossas convenções sociais ao submetê-las a um olhar clínico que as esvazia da sua evidência natural.
O artista desenvolveu muito cedo esta capacidade inquietante de transformar o ordinário em extraordinário, não por uma qualquer operação de embelezamento, mas por um processo inverso de desconstrução sistemática. Nas suas Formulários e Certificados (1988), onde distribui questionários fictícios aos participantes de uma conferência de arte de vanguarda, Geng Jianyi revela já esta abordagem particular que consiste em empregar as próprias ferramentas da administração para denunciar o seu arbítrio. Esta obra emblemática funciona como um espelho dirigido às instituições artísticas, revelando a sua propensão à burocracia mesmo no âmago das suas pretensões revolucionárias.
O eco literário de Cortázar
A abordagem de Geng Jianyi encontra um eco impressionante na obra do escritor argentino Julio Cortázar, particularmente na sua coletânea Historias de cronopios y de famas (em francês Cronopes et Fameux) (1962) [1]. Tal como o artista chinês decompoe a ação de aplaudir em três etapas precisas em Trois Temps d’Applaudissements (1994) ou detalha as sete fases de se vestir em Sept Temps pour S’Habiller (1991), Cortázar propõe as suas famosas “Instruções para chorar” ou “Instruções para subir uma escada”. Esta relação não é acidental: revela uma sensibilidade comum ao absurdo dos nossos automatismos quotidianos.
Em Cortázar, estas instruções insignificantes visam despertar a nossa consciência adormecida perante os gestos mecânicos da existência. O escritor argentino detalha com um falso rigor a “maneira correta de chorar”, precisando que “as lágrimas médias ou ordinárias consistem numa contração geral do rosto, num som espasmódico acompanhado de lágrimas e ranho” e que “a duração média do choro é de três minutos” [1]. Esta dissecação clínica da emoção revela o absurdo de querer codificar o incodificável, transformando o ato espontâneo numa performance ridícula.
Geng Jianyi realiza um processo semelhante quando decompoe o aplauso, gesto social por excelência, em sequências fotográficas acompanhadas de instruções musicais. Esta abordagem analítica do quotidiano revela a dimensão teatral dos nossos comportamentos mais naturais. O artista chinês, tal como Cortázar, confronta-nos com a estranheza fundamental dos nossos rituais sociais ao os privar do automatismo tranquilizante.
A ironia de Cortázar reside na contradição entre a precisão pseudo-científica das suas instruções e a impossibilidade manifesta de reduzir a experiência humana a protocolos. Geng Jianyi explora essa mesma contradição quando propõe “instruções” para atos tão simples como vestir-se ou bater palmas, revelando que a cultura pode ser apenas uma colecção de convenções arbitrárias. O artista chinês leva ainda mais longe essa lógica ao declarar: “Ensinar às pessoas como realizar atos quotidianos é resultado de uma intenção particular; uma vez que os actos ‘são cultivados’, isso significa que o instinto se perde”.
Essa comunidade de visão entre o escritor argentino e o artista chinês está enraizada numa compreensão partilhada da modernidade como alienação. Ambos percebem que as nossas sociedades contemporâneas tendem a codificar, normalizar e institucionalizar até os gestos mais íntimos, privando o indivíduo da sua espontaneidade originária. As suas obras respectivas funcionam como reveladores dessa mecânica social, restituindo uma parte da liberdade pelo simples facto de tornar visível o invisível.
A dimensão lúdica presente em ambos os artistas não deve ocultar a profundidade da sua interrogação filosófica. Quando Cortázar inventa os seus Cronopos, seres fantasiosos que “deitam fora os selos que acham feios” ou “molham a torrada nas suas lágrimas naturais”, coloca em subtexto a questão da normalidade social. Da mesma forma, quando Geng Jianyi organiza as suas colaborações participativas como Quem é ele? (1994), onde investiga a identidade de um visitante misterioso interrogando os seus vizinhos, questiona os nossos mecanismos de identificação social e construção da alteridade.
Esta abordagem antropológica do quotidiano revela nos dois criadores uma fascinação comum pelos mecanismos de construção do sentido social. Partilham a intuição de que a arte pode servir como instrumento de revelação das convenções tácitas que regem as nossas existências. As suas obras funcionam como experiências de pensamento que nos obrigam a reconsiderar a evidência enganadora dos nossos hábitos.
Simmel e a sociologia das formas
A obra de Geng Jianyi encontra outra ressonância conceptual na sociologia de Georg Simmel (1858-1918), particularmente na sua teorização das relações entre o indivíduo e as formas sociais modernas [2]. O sociólogo alemão desenvolve uma análise da modernidade que ilumina singularmente a abordagem artística de Geng Jianyi, nomeadamente na sua compreensão dos mecanismos de objetivação cultural e dos seus efeitos sobre a subjectividade individual.
Simmel teoriza o que denomina de “tragédia da cultura”, processo pelo qual as produções humanas adquirem uma autonomia que acaba por se impor aos próprios indivíduos. Esta dinâmica encontra uma ilustração impressionante na instalação Usina de Água da Torneira (1987/2022) de Geng Jianyi, obra labiríntica onde os visitantes se tornam simultaneamente observadores e observados através de aberturas recortadas nas divisórias. Esta instalação materializa literalmente o conceito de acção recíproca (Wechselwirkung) de Simmel, princípio fundamental segundo o qual a sociedade nasce da interacção constante entre indivíduos.
Para Simmel, a modernidade caracteriza-se por uma crescente intelectualização das relações sociais, fenómeno que ele analisa particularmente no seu estudo da vida urbana. O sociólogo observa que o habitante das metrópoles desenvolve uma “atitude de reserva” como mecanismo de proteção psicológica face à sobrecarga sensorial do ambiente urbano [2]. Esta análise encontra um eco notável na série Visage (2001) de Geng Jianyi, onde o artista utiliza papel fotosensível para criar retratos fantasmagóricos, reduzidos aos traços mínimos necessários à identificação facial.
Esta redução da individualidade aos seus componentes essenciais revela a mesma preocupação que Simmel tem relativamente aos efeitos da diferenciação social moderna. O sociólogo alemão mostra como a economia monetária liberta o indivíduo das dependências pessoais tradicionais ao mesmo tempo que o sujeita a novas formas de objetivação. Geng Jianyi explora esta tensão nas suas obras participativas, onde solicita a colaboração do público, como em Besoins de la Réalité Négative (1995), projeto no qual recolhe e expõe os detritos descartados pelos seus colegas artistas residentes.
A noção de forma social em Simmel encontra uma aplicação concreta na abordagem metodológica de Geng Jianyi. O artista chinês desenvolve aquilo que denomina método dos “50 por cento”, segundo o qual o artista realiza apenas metade da obra, deixando ao público o cuidado de completar o sentido pela sua participação. Esta conceção revela uma compreensão intuitiva do caráter fundamentalmente relacional da vida social, princípio central da sociologia em Simmel.
Simmel analisa como as formas sociais adquirem uma lógica própria que pode entrar em conflito com as aspirações individuais. Esta tensão aparece claramente na prática artística de Geng Jianyi, particularmente nas suas obras que utilizam os códigos administrativos e burocráticos. Quando distribui falsos certificados de participação artística ou organiza exposições baseadas em critérios aparentemente arbitrários como “26 de novembro de 1994 como motivo” (1994), o artista revela o absurdo das lógicas institucionais ao mesmo tempo que demonstra o seu poder de estruturação social.
A sociologia de Simmel esclarece também a dimensão temporal da obra de Geng Jianyi. O sociólogo alemão insiste no caráter processual da socialização, concebida como “ação de uma sociedade em curso” em vez de como estrutura fixa. Esta visão dinâmica corresponde exatamente à abordagem de Geng Jianyi, que privilegia os processos em detrimento dos resultados, as interações sobre os objetos acabados. O artista chinês estipula aliás no seu testamento que nenhuma exposição individual deve ser organizada nos cinco anos seguintes à sua morte, revelando a sua consciência aguçada da dimensão temporal necessária à maturação do sentido artístico.
A análise do individualismo moderno em Simmel permite compreender a posição singular de Geng Jianyi no panorama artístico chinês contemporâneo. Como observa o sociólogo alemão, a modernidade produz um novo tipo de individualidade, não mais definida pela pertença a grupos tradicionais, mas pela interseção única de círculos sociais diversos. Esta conceção da individualidade como ponto de convergência de múltiplas relações corresponde à prática colaborativa de Geng Jianyi, que faz de cada obra o resultado de interações específicas com participantes diversos.
A arte como reveladora social
A originalidade de Geng Jianyi reside na sua capacidade de transformar a investigação sociológica em experiência estética. As suas obras funcionam como dispositivos experimentais que revelam os mecanismos habitualmente invisíveis da construção social. Esta abordagem encontra a sua forma mais completa em Qui est-il ? (1994), uma investigação meticulosa sobre a identidade de um visitante desconhecido realizada junto dos vizinhos do artista. Esta obra exemplifica o método de Geng Jianyi: transformar uma situação banal num revelador dos processos de identificação social.
A instalação Usine d’Eau du Robinet, realizada em 2022 segundo os planos de 1987, materializa esta ambição de criar situações onde os papéis sociais convencionais são postos em questão. Os visitantes experimentam concretamente a reversibilidade das posições de observador e observado, descobrindo pela experiência direta a relatividade dessas categorias aparentemente fixas. Esta obra funciona como uma metáfora do circuito de distribuição urbana: a água filtrada retorna como águas residuais para ser novamente filtrada, tal como os indivíduos alternam constantemente entre os papéis de espectador e espetáculo no espaço social moderno.
A dimensão crítica desta abordagem não reside numa denúncia explícita, mas na revelação do arbitrário das convenções sociais. Quando Geng Jianyi fotografa sombras sobre a água (Ombre d’Eau, 2000-2001) ou documenta a existência de pessoas comuns através das suas fotografias de identidade (Assurément Elle, 1998/2012), ele revela a fragilidade dos sinais pelos quais construímos as nossas identidades sociais. Estas obras colocam a questão fundamental do que constitui a existência social de um indivíduo: é o reconhecimento institucional, o olhar do outro, ou algo intangível que escapa a qualquer codificação?
A ironia de Geng Jianyi, nunca agressiva mas sempre presente, revela as contradições do nosso tempo. Os seus Livres Artisanaux (1990-2006), volumes manuais que exploram os processos de reprodução e fabrico artesanal, questionam a nossa relação com o autêntico numa sociedade de produção em massa. Estes objetos híbridos, nem completamente livros nem completamente esculturas, materializam as tensões entre produção industrial e criação individual, entre normalização e singularidade.
A abordagem colaborativa desenvolvida por Geng Jianyi revela uma compreensão profunda dos desafios democráticos da arte contemporânea. Ao recusar a posição de autor único para se colocar como organizador de experiências coletivas, o artista questiona as hierarquias tradicionais do mundo artístico. Esta postura encontra a sua expressão mais radical nas suas atividades de ensino na Academia Chinesa de Belas Artes, onde desenvolveu uma pedagogia baseada no princípio que “a arte pode ser aprendida mas não pode ser ensinada”.
Esta filosofia educativa revela a profunda coerência da obra de Geng Jianyi. O artista não procura transmitir competências técnicas, mas despertar nos seus estudantes uma sensibilidade crítica às convenções artísticas e sociais. Esta abordagem corresponde exatamente à função que as suas obras cumprem para o público: não transmitir mensagens pré-estabelecidas, mas criar as condições para uma tomada de consciência individual.
O legado de Geng Jianyi na arte contemporânea chinesa vai muito além das suas realizações individuais. Ele abriu um caminho artístico que permite questionar as transformações sociais sem cair na denúncia política direta nem no esteticismo decorativo. Esta posição intermédia, particularmente delicada de manter no contexto chinês, testemunha a inteligência estratégica do artista tanto quanto a sua profundidade conceptual.
Suas últimas obras, realizadas no Japão em 2016 a partir de polpa de papel, revelam uma evolução para uma materialidade mais direta, como se o artista quisesse tocar com os dedos a própria substância das suas preocupações conceptuais. Estas peças, de uma simplicidade formal radical, condensam trinta anos de pesquisa sobre as relações entre forma e conteúdo, processo e resultado, indivíduo e coletivo.
A arte de Geng Jianyi ensina-nos que a crítica social mais eficaz não passa necessariamente pela confrontação directa, mas pelo subtil deslocamento do olhar. Ao transformar o ordinário em extraordinário pela simples operação da atenção artística, ele revela os mecanismos habitualmente invisíveis da nossa existência social. A sua obra funciona como um revelador fotográfico que faz surgir as estruturas latentes do nosso quotidiano, obrigando-nos a reconsiderar a evidência enganosa dos nossos hábitos.
Esta capacidade de tornar estranho o familiar constitui talvez a contribuição mais preciosa de Geng Jianyi para a arte contemporânea. Numa época marcada pela aceleração das transformações sociais e pela crescente padronização dos comportamentos, a sua obra relembra-nos da importância de manter viva a nossa capacidade de espanto perante o mundo que nos rodeia. Convida-nos a cultivar essa “inquietante estranheza” do quotidiano que só ela pode preservar-nos do adormecimento da consciência crítica.
Geng Jianyi deixa-nos assim um método tanto quanto uma obra: aquele que consiste em levar a sério a aparente futilidade dos nossos gestos diários para aí descobrir os desígnios profundos da nossa condição moderna. Nesse sentido, Geng Jianyi impõe-se como um dos observadores mais penetrantes da sua época, um antropólogo do presente cujas descobertas continuam a iluminar a nossa compreensão das sociedades contemporâneas.
- Julio Cortázar, Cronopes et Fameux, traduzido por Laure Guille-Bataillon, Paris, Gallimard, 1968.
- Georg Simmel, Sociologie. Études sur les formes de la socialisation, traduzido por Lilyane Deroche-Gurcel e Sibylle Muller, Paris, PUF, 1999.
















