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George Morton-Clark : O iconoclasta dos cartoons

Publicado em: 29 Novembro 2024

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

George Morton-Clark cria composições onde personagens de cartoons familiares se transformam em espectros expressionistas sobre telas cruas, conjugando a violência do gesto pictórico com um domínio técnico sofisticado.

Ouçam-me bem, bando de snobs. George Morton-Clark, nascido em 1982 em Tooting, no sul de Londres, é a representação exata do que a arte contemporânea britânica pode produzir de mais desestabilizador quando se liberta das convenções académicas. As suas imensas telas não preparadas, povoada por personagens de desenhos animados familiares, constituem uma proposta artística que merece atenção, nem que seja para compreender como este antigo estudante de animação do Surrey Institute of Art and Design se impôs como um dos artistas mais singulares da sua geração. Se pensam que as suas obras são apenas rabiscos infantis sobredimensionados, enganam-se. Morton-Clark manipula as nossas memórias coletivas com uma virtuosidade que faria inveja a qualquer psicanalista junguiano.

No centro do seu trabalho encontra-se uma dicotomia fascinante entre a familiaridade reconfortante das personagens de desenhos animados e a sua deformação expressionista. Mickey Mouse, Donald Duck ou Bart Simpson surgem nas suas telas como espectros da nossa infância coletiva, mas são sistematicamente submetidos a um processo de desconstrução que os transforma em criaturas inquietantes. Isto não deixa de lembrar o que Walter Benjamin mencionava no seu ensaio “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica”: a tensão entre o original e a reprodução, entre o autêntico e o simulacro. Morton-Clark leva esta reflexão mais longe, criando obras que são simultaneamente familiares e estranhas, como se estas ícones pop tivessem sido filtrados por um pesadelo expressionista.

O artista usa óleo, acrílico e carvão sobre telas brutas, não preparadas, criando composições onde a espontaneidade do gesto convive com uma mestria técnica inegável. Esta abordagem recorda as teorias de Theodor Adorno sobre a dialética entre a técnica e a expressão na arte moderna. Os traços vigorosos e as cores saturadas de Morton-Clark criam uma dança visual extraordinária que transmite uma sensação de imediatismo e vitalidade quase nietzschiana, para retomar a análise pertinente de Pedro Medina Reinón.

A sua técnica do “doodling aesthetic” (estética do rabiscar), como foi qualificada pela Forbes, revela uma imediaticidade impressionante entre a imagem mental e a sua materialização. Esta abordagem ecoa as reflexões de Roland Barthes sobre o desenho como “primeira forma da ideia gerada na mente do artista”. Morton-Clark leva esta noção aos seus limites, criando obras que parecem perpetuamente em processo de finalização, num estado de fluxo constante entre o esboço e a finalização. Esta tensão criativa é particularmente visível nas suas grandes dimensões, onde as personagens parecem lutar para manter a sua integridade face aos ataques da abstração.

Quando Morton-Clark ataca ícones como o Mickey Mouse ou o Pato Donald, ele não procura simplesmente reproduzi-los ou desviá-los como os artistas pop dos anos 1960 o teriam feito. Não, ele os disseca, desmembra-os, reconstrói-os com uma violência contida que lembra as experimentações de Francis Bacon com os seus retratos. Os olhos das suas personagens, muitas vezes exageradamente ampliados, fixam o espectador com uma intensidade perturbadora, como se tentassem estabelecer um contacto direto com o nosso inconsciente coletivo.

Esta abordagem singular da apropriação cultural insere-se numa reflexão mais ampla sobre a própria natureza da imagem na nossa sociedade contemporânea. Como Jean Baudrillard teria sublinhado, vivemos num mundo onde a cópia suplantou o original, onde o simulacro se tornou mais real do que a própria realidade. Morton-Clark joga com esta noção ao criar versões alternativas destas personagens universalmente reconhecidas, versões que conservam apenas o suficiente da sua essência original para serem identificáveis, ao mesmo tempo que estão suficientemente deformadas para nos fazer duvidar das nossas certezas.

O artista manipula os códigos da cultura popular com uma destreza que recorda as teorias de Stuart Hall sobre a codificação e decodificação das mensagens culturais. As suas personagens de cartoon, reconhecíveis mas deformadas, funcionam como significantes flutuantes, cujos significados tradicionais foram deliberadamente confundidos para criar novas possibilidades interpretativas. Esta estratégia de desestabilização semiótica é particularmente eficaz nas suas obras mais recentes, onde as personagens parecem desintegrar-se diante dos nossos olhos, como se o próprio processo da sua desconstrução fosse encenado.

A segunda característica do seu trabalho reside na sua capacidade de criar uma tensão dramática entre a abstração e a figuração. As suas personagens de cartoon, reconhecíveis mas deformadas, flutuam em espaços abstratos que evocam as teorias de Wassily Kandinsky sobre a necessidade de uma “viagem interior” na arte. Morton-Clark cria composições onde os elementos figurativos e abstratos se confrontam e completam, gerando uma dinâmica visual que transcende a mera apropriação da pop art.

Esta abordagem audaciosa da composição revela uma compreensão sofisticada da história da arte moderna. Como Gillo Dorfles salientou, é necessário falar a favor da versão, pois precisamos de considerar “mais possibilidades expressivas e interpretativas relativamente à reinterpretação que a versão faz do original”. Morton-Clark atualiza esta reflexão ao criar obras que funcionam como testemunhos visuais em múltiplos níveis, onde as camadas de significado se acumulam sem nunca se anularem.

A violência do gesto pictórico em Morton-Clark não se orienta para uma evolução crítica ou política da obra, ao contrário do que se poderia pensar à primeira vista. Serve antes para transformar a nossa relação com o passado, com essas imagens que povoaram a nossa infância e que continuam a habitar o nosso imaginário coletivo. Ele deforma o mundo da memória enquanto insufla às suas telas uma grande intensidade, justamente graças a um jogo de oposições que exemplifica a tensão existente entre as perspetivas da criança e do adulto.

Esta manipulação das memórias de infância através de personagens de cartoon familiares relembra as teorias de Walter Benjamin sobre a memória coletiva e a experiência da modernidade. As personagens de Morton-Clark funcionam como pontos de âncora na nossa memória cultural comum, mas a sua deformação sistemática obriga-nos a reconsiderar a nossa relação com estes ícones populares.

O seu trabalho ressoa particularmente no contexto atual em que as imagens nos inundam constantemente. Como teriam sugerido Marshall McLuhan ou John Berger, “somos o que vemos”. Morton-Clark obriga-nos a questionar as imagens que moldam o nosso imaginário e a nossa relação com ele, criando obras que funcionam como espelhos distorcidos da nossa cultura visual contemporânea.

A utilização do grande formato no seu trabalho não é fortuita. Permite ao artista criar obras que se impõem fisicamente ao espectador, obrigando-o a confrontar estas figuras familiares em dimensões que as tornam estranhamente monumentais. Esta estratégia relembra as reflexões de Maurice Merleau-Ponty sobre a fenomenologia da percepção, onde o tamanho da própria obra se torna um elemento ativo na nossa experiência da mesma.

Os espaços abstratos que rodeiam as suas personagens merecem uma atenção particular. Estas zonas de cor pura, estes traços gestuais que parecem ter sido aplicados num momento de frenesim criativo, criam um contraste impressionante com a relativa simplicidade das figuras de cartoon. Esta tensão entre a abstração e a figuração evoca as teorias de Clement Greenberg sobre a especificidade do meio pictórico, ao mesmo tempo que as atualiza para uma época em que as fronteiras entre cultura alta e baixa se tornaram cada vez mais porosas.

A sua recente incursão na escultura, nomeadamente com as suas peças em betão que representam o Pato Donald e o Mickey Mouse, demonstra a sua capacidade de transpor as suas preocupações artísticas para novos meios. Estas esculturas, que brincam com os códigos do brutalismo arquitetónico, oferecem uma nova perspetiva sobre o seu trabalho de desconstrução dos ícones populares. A utilização do betão e das varas de ferro aparentes cria um diálogo fascinante entre a permanência do material e a natureza efémera das personagens de cartoon.

A influência do seu percurso em animação é evidente na sua forma de tratar o movimento na tela. As suas figuras parecem congeladas num estado de transformação perpétua, como se tivessem sido capturadas entre duas imagens de uma sequência animada. Esta abordagem faz eco das teorias de Henri Bergson sobre a duração e o movimento, sugerindo uma temporalidade complexa que ultrapassa a simples representação estática.

O tratamento da cor por Morton-Clark é também interessante. As suas escolhas cromáticas audazes, que podem parecer discordantes à primeira vista, criam harmonias inesperadas que lembram as experiências dos Fauves. Contudo, ao contrário destes últimos, Morton-Clark usa a cor não para expressar uma emoção pura, mas para criar tensões visuais que reforçam o carácter perturbador das suas composições.

A sua abordagem à superfície pictórica, deixando a tela crua aparente em alguns pontos, revela uma consciência aguda dos debates contemporâneos sobre a materialidade na pintura. Esta estratégia relembra as reflexões de Rosalind Krauss sobre a grelha como paradigma da arte moderna, ao mesmo tempo que as atualiza para uma época em que a virtualidade das imagens digitais paradoxalmente nos faz redescobrir a importância da materialidade.

A forma como Morton-Clark manipula o espaço pictórico, criando composições que parecem simultaneamente planas e profundas, evoca as teorias de Maurice Denis sobre a planaridade da superfície pictórica. Contudo, o artista britânico leva esta reflexão mais longe, criando espaços paradoxais onde as personagens de cartoon parecem flutuar num vazio que é ao mesmo tempo saturado de gestos pictóricos.

O seu trabalho levanta questões importantes sobre a natureza da autenticidade na arte contemporânea. Num mundo onde as imagens são infinitamente reproduzíveis e manipuláveis, Morton-Clark consegue criar obras que mantêm uma autenticidade inegável, precisamente porque reconhecem e jogam com a sua própria natureza de simulacro. Esta abordagem ecoa as teorias de Jacques Derrida sobre a desconstrução, sugerindo que o significado emerge precisamente nos desfasamentos e diferenças.

A presença recorrente de certas personagens na sua obra, nomeadamente o Mickey Mouse e o Donald Duck, não é fruto do acaso. Estas ícones funcionam como pontos de referência na nossa cultura visual coletiva, constantes em torno das quais o artista pode construir as suas variações. Esta abordagem lembra as reflexões de Roland Barthes sobre as mitologias contemporâneas, onde algumas imagens adquirem um estatuto quase mitológico no nosso imaginário coletivo.

Morton-Clark continua a explorar novas direções artísticas, ultrapassando os limites da sua prática enquanto mantém uma coerência notável na sua abordagem. O seu trabalho mais recente revela uma tendência crescente para a abstração, as personagens de desenho animado parecem dissolver-se cada vez mais na matéria pictórica. Esta evolução sugere uma confiança crescente na sua capacidade de manipular os códigos visuais que apropriou.

Observando a totalidade da sua obra, só podemos ficar impressionados pela sua capacidade de manter um equilíbrio precário entre familiaridade e estranheza, entre humor e inquietação, entre abstração e figuração. Morton-Clark criou um universo visual único onde as ícones da nossa infância regressam para nos assombrar em formas novas e perturbadoras, forçando-nos a reconsiderar a nossa relação com estas imagens que moldaram a nossa perceção do mundo.

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Referência(s)

George Morton CLARK (1982)
Nome próprio: George Morton
Apelido: CLARK
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Reino Unido

Idade: 43 anos (2025)

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