Ouçam-me bem, bando de snobs. Graham Knuttel merece a vossa atenção não pelas razões superficiais que imaginam, mas porque soube captar com uma acuidade cirúrgica a alma de uma época. Este homem, falecido em 2023 com sessenta e nove anos, não era simplesmente o pintor das novas elites de Dublin, era o seu anatomista implacável. Quando o establishment artístico irlandês o olhava com suspeita, quando os críticos não compreendiam o seu sucesso fenomenal, faltava-lhes o essencial. Knuttel pintava a verdade do seu tempo com uma precisão documental que a história saberá reconhecer.
O espelho expressionista de uma sociedade em mudança
É importante perceber que a obra de Graham Knuttel está ancorada numa tradição expressionista europeia cujas raízes mergulham nas convulsões do século XX. A influência de Otto Dix [1] no seu trabalho não é anedótica, revela uma filiação intelectual profunda com a escola da Nova Objetividade alemã. Tal como Dix pintou os excessos da República de Weimar, Knuttel documentou os do Tigre Celta. Esta parentesco vai muito além da simples semelhança estilística. Otto Dix, veterano traumatizado da Primeira Guerra Mundial, desenvolveu um olhar implacável sobre as elites alemãs dos anos 1920, retratadas em retratos onde a decadência burguesa se exibía sem disfarces. As personagens de Dix, banqueiros, prostitutas e intelectuais corruptos, exibiam nos seus rostos os estigmas de uma época em decomposição.
Knuttel fez uma transposição similar na Irlanda dos anos 1990 e 2000. Os seus gangsters em fatos às riscas, as suas femmes fatales com olhares calculistas, os seus homens de negócios com sorrisos predadores constituem o equivalente contemporâneo das galerias de retratos que Dix expôs nos salões berlinenses. Esta parentesco não é fortuita. Tal como Dix antes dele, Knuttel possuía esta rara capacidade de captar o espírito de uma época através da fisionomia dos seus protagonistas principais. O pintor alemão usava a técnica da têmpera sobre madeira para obter uma precisão fotográfica que tornava as suas sátiras ainda mais incisivas. Knuttel, por seu lado, desenvolveu a sua própria gramática visual, cores saturadas e formas simplificadas mas expressivas, para produzir um efeito semelhante de acuidade social.
Esta filiação expressionista explica porque é que as obras de Knuttel funcionam tão bem como documentos históricos. Não se limitam a representar as aparências do Tigre Celta, revelam a sua estrutura psicológica profunda. Os rostos que pinta, sempre vistos de perfil ou de três quartos, nunca de frente, sugerem a duplicidade fundamental dos seus modelos. Esta técnica do olhar oblíquo, que Otto Dix também dominava, transforma cada retrato numa investigação psicológica. Quando Dix pintava a burguesia berlinense, revelava a sua vacuidade moral sob o verniz da respeitabilidade. Knuttel procedia exatamente da mesma forma com os novos ricos irlandeses.
A influência do expressionismo alemão em Knuttel manifesta-se também no seu tratamento do espaço urbano. As suas cenas de bares e restaurantes recordam os interiores noturnos de Dix, esses lugares de prazer onde se concentram todos os vícios de uma sociedade. Em ambos os pintores, a cidade moderna torna-se um teatro da corrupção, um laboratório das paixões humanas. Esta visão expressionista da modernidade urbana encontra em Knuttel uma aplicação particularmente pertinente no contexto do boom económico irlandês. Dublin, metamorfoseada pelo afluxo de capitais internacionais, oferecia ao artista um terreno de observação ideal para exercer o seu olhar crítico.
A recorrência de certos motivos, chefs de cozinha, marinheiros e personagens do Punch and Judy, na obra de Knuttel inscreve-se nesta tradição expressionista da alegoria social. Estas figuras funcionam como arquétipos, condensados de situações sociais típicas. O chef representa o hedonismo alimentar das novas classes abastadas, o marinheiro evoca a aventura e o perigo, Punch encarna a violência primitiva que subsiste sob o verniz civilizacional. Esta galeria de personagens recorrentes permite a Knuttel construir uma mitologia pessoal do Tigre Celta, exatamente como Dix criou a sua própria iconografia da decadência alemã.
O antropólogo do poder e do dinheiro
Se o expressionismo fornece a Knuttel as suas ferramentas estilísticas, é na antropologia social que se deve procurar o verdadeiro alcance do seu trabalho. O artista dublinense funcionava como um etnógrafo da sua própria sociedade, documentando com precisão científica os rituais e os códigos da nova burguesia irlandesa. Esta abordagem antropológica da pintura aproxima-o dos trabalhos de Pierre Bourdieu [2] sobre a distinção social e o habitus de classe. Bourdieu demonstrava como os gostos artísticos, as maneiras à mesa, os códigos vestimentares funcionam como marcadores de posição social. Knuttel traduzia esses mecanismos em imagens com uma eficácia impressionante.
A análise sociológica de Bourdieu encontra em Knuttel uma perfeita ilustração na sua forma de representar os sinais exteriores de riqueza. As suas personagens exibem todos os atributos do capital económico recentemente adquirido, fatos caros, joias ostensivas e charutos de luxo, mas a sua gestualidade trai frequentemente as suas origens mais modestas. Esta contradição entre o ter e o ser, central na teoria de Bourdieu da reprodução social, constitui um dos principais recursos dramáticos da pintura de Knuttel. Ele capta estes novos ricos no seu esforço permanente para dominar os códigos da sua classe de adoção, revelando assim a fragilidade da sua posição social.
O conceito de habitus desenvolvido por Bourdieu, aquelas disposições duradouras que orientam as nossas práticas sociais, encontra uma tradução visual impressionante nas obras de Knuttel. As suas personagens carregam literalmente no corpo os traços da sua trajetória social. Os seus rostos, posturas e gestos traem as suas origens e revelam os esforços que fazem para se adaptarem ao seu novo estatuto. Esta antropologia do corpo social permite a Knuttel documentar com precisão etnográfica as transformações da sociedade irlandesa contemporânea.
O interesse de Knuttel pelos locais de sociabilidade burguesa, restaurantes chiques, clubes privados e galerias de arte enquadra-se perfeitamente nesta perspectiva antropológica. Esses espaços funcionam como laboratórios de observação social, locais onde se revelam os rituais da distinção de classe. Bourdieu mostrou como a frequência a certos locais culturais legitima a posição social dos seus frequentadores. Knuttel pinta precisamente esses mecanismos de legitimação em ação, mostrando como os novos ricos irlandeses usam o consumo cultural para consolidar o seu estatuto.
A recorrência das cenas de refeições na obra de Knuttel é particularmente interessante sob esta perspetiva antropológica. A antropologia social documentou amplamente a importância das práticas alimentares como marcadores identitários e sociais. Os almoços de negócios, os jantares mondanos que Knuttel pinta nunca são meros momentos de convivialidade, constituem rituais de poder onde se negociam influências e alianças. O artista capta esses mecanismos com a perspicácia de um etnólogo, revelando como a gastronomia se torna um instrumento de dominação social.
Esta abordagem antropológica explica por que as obras de Knuttel encontraram tal ressonância junto dos seus alvos. Como observou com razão Trevor White, fundador do Little Museum of Dublin, “ninguém gostava mais de sátira do que os seus alvos”. Esta reação paradoxal explica-se pela justeza sociológica das observações do artista. Ao se reconhecerem nos seus retratos, os membros da elite dublinense validavam implicitamente a pertinência da sua análise social. Compravam, de certa forma, o seu próprio retrato antropológico, participando assim na documentação da sua própria classe social.
A influência da sociologia de Bourdieu na leitura de Knuttel permite também compreender por que o seu trabalho ultrapassa a mera crónica social para adquirir uma dimensão universal. Os mecanismos de reprodução social que o artista documenta, ostentação, distinção e legitimação cultural, funcionam em todas as sociedades capitalistas desenvolvidas. Esta universalidade explica o sucesso internacional das suas obras, colecionadas de Hollywood a Londres. Knuttel não pintava apenas a Irlanda do Tigre Celta, documentava as modalidades contemporâneas do exercício do poder económico.
A posteridade de um testemunho implacável
A obra de Graham Knuttel constitui um testemunho insubstituível sobre um período decisivo da história irlandesa. Para além dos juízos estéticos que se possam fazer sobre a sua produção, é necessário reconhecer o seu excecional valor documental. Tal como Otto Dix para a República de Weimar, como Toulouse-Lautrec para o Paris do fim do século, Knuttel fixou para a posteridade a imagem de uma época passada. As suas telas funcionam agora como arquivos visuais do Tigre Celta, documentos preciosos para compreender os mecanismos sociológicos que presidiam a esta transformação radical da sociedade irlandesa.
A incompreensão de que Knuttel sofreu durante muito tempo junto do establishment artístico irlandês revela os limites de uma crítica demasiado apegada aos critérios estéticos tradicionais. Ao privilegiar a virtuosidade técnica e a inovação formal, passou ao lado do essencial: a capacidade do artista para captar o espírito do seu tempo. Esta miopia crítica explica por que as obras de Knuttel encontraram o seu público fora dos círculos artísticos oficiais, diretamente junto daqueles que representavam.
A proliferação frequentemente criticada em Knuttel encontra a sua justificação nesta missão documental que ele se tinha proposto. Um etnógrafo não se contenta com algumas observações parcimoniosas, acumula testemunhos, multiplica os ângulos de abordagem, constitui um corpus exaustivo. Knuttel procedia exatamente da mesma forma, produzindo uma obra-rio que esgota metodicamente todos os aspetos do seu objeto de estudo. Esta sistematização explica a aparente repetitividade da sua produção, que na realidade esconde uma exploração minuciosa das diferentes facetas da burguesia irlandesa contemporânea.
O legado de Knuttel ultrapassa largamente o âmbito da arte irlandesa. Ele mostrou que um pintor contemporâneo podia assumir plenamente o seu papel de testemunha social sem, no entanto, sacrificar a sua singularidade artística. Ao desenvolver uma linguagem visual imediatamente reconhecível, provava que a arte figurativa mantinha toda a sua pertinência num mundo dominado pela abstração e pela arte conceptual. Esta lição ressoa hoje com uma força particular, na altura em que muitos artistas procuram reencontrar a função social da sua prática.
A fortuna crítica póstuma de Knuttel começa já a inverter-se. Os historiadores de arte descobrem na sua obra uma fonte inesgotável de informações sobre a sociedade irlandesa da viragem do milénio. Esta reavaliação insere-se num movimento mais amplo de reabilitação da arte figurativa, muito tempo considerada ultrapassada pelas vanguardas. Knuttel junta-se assim à linhagem dos pintores-testemunhas que souberam fixar para a posteridade a imagem do seu tempo, de Daumier a Bacon passando por Grosz.
A universalidade da mensagem de Knuttel assegura à sua obra uma perenidade que ultrapassa as fronteiras geográficas e temporais do seu tema inicial. Os mecanismos de poder e distinção que ele documentava com tanta acuidade continuam a operar nas nossas sociedades contemporâneas. As suas pinturas mantêm assim toda a sua força crítica, servindo de revelador para as hipocrisias persistentes das nossas elites económicas. Nesse sentido, Graham Knuttel terá conseguido a aposta mais difícil para um artista: a da intemporalidade pelo ancoramento na sua época.
- Otto Dix (1891-1969), pintor e gravador alemão, figura maior da Nova Objetividade, autor nomeadamente do tríptico “Métropolis” (1927-1928) e do ciclo de águas-fortes “Der Krieg” (1924).
- Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo francês, autor de “La Distinction” (1979) e desenvolvedor do conceito de habitus para analisar os mecanismos de reprodução social.
















