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Izumi Kato : Entre primordial e contemporâneo

Publicado em: 7 Fevereiro 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

As criaturas enigmáticas de Izumi Kato, com os seus olhos vazios e formas embrionárias, confrontam-nos com a nossa própria dualidade num mundo moderno. As suas obras, oscilando entre materialidade bruta e espiritualidade contemporânea, criam um diálogo único entre tradição e inovação.

Ouçam-me bem, bando de snobs, há algo profundamente perturbador no universo de Izumi Kato (1969). As suas criaturas de olhos vazios, que nos observam desde as suas telas e socos com uma intensidade inquietante, habitam um espaço liminar entre dois mundos. Não são simplesmente figuras artísticas, mas presenças que nos confrontam com a nossa própria estranheza, com a nossa natureza profundamente ambígua de seres ao mesmo tempo naturais e artificiais.

Enquanto a arte contemporânea se perde muitas vezes em jogos conceptuais estéreis, a obra de Kato impressiona pela sua força telúrica, a sua autenticidade visceral. As suas criaturas embrionárias, nem totalmente humanas nem completamente outras, trazem em si uma carga existencial que transcende a sua aparente simplicidade. Elas remetem-nos para algo fundamental, arcaico, enquanto permanecem resolutamente ancoradas no nosso presente.

Não consigo deixar de pensar no que Martin Heidegger chamou “a revelação do ser” quando estou perante estas figuras antropomórficas. Estes seres, com as suas cabeças bulbosas e membros delgados, confrontam-nos com a essência do que significa existir num mundo onde a tecnologia tomou o controlo da nossa conexão primitiva com a natureza. A decisão de Kato de pintar diretamente com as suas mãos enluvadas em látex, rejeitando a mediação do pincel, ressoa profundamente com a crítica heideggeriana da técnica moderna como obstáculo entre o homem e a sua relação autêntica com o mundo.

Esta abordagem tátil da criação não é apenas uma técnica entre outras. Constitui o próprio fundamento da sua prática artística, um método que lhe permite estabelecer um contacto direto, quase xamânico, com a matéria. Quando Kato aplica a tinta com os dedos, não se trata simplesmente de criar efeitos de textura ou matéria. É um ato que se aproxima do ritual, uma forma de conjurar presenças através do contacto físico com a tela.

A prática de Kato inclui também uma reflexão que ecoa as teorias de Maurice Merleau-Ponty sobre a fenomenologia da perceção. As suas esculturas em madeira de cânfora, onde as marcas do formão permanecem visíveis como tantas cicatrizes na sua superfície, recordam-nos que a nossa relação com o mundo é antes de mais corporal, tátil, incorporada. As marcas dos seus dedos na tela, as juntas aparentes das suas esculturas, tudo contribui para esta estética do contacto direto que caracteriza a sua obra.

O que me interessa particularmente no trabalho de Kato é que ele cria um diálogo subtil e complexo entre a tradição e a contemporaneidade. Natural da prefeitura de Shimane, uma região do Japão onde o animismo xintoísta permanece profundamente enraizado na cultura local, o artista extrai desse legado enquanto o reinventa radicalmente. As suas criaturas não são yokai tradicionais, mas sim manifestações de uma espiritualidade contemporânea que procura reinventar-se num mundo desencantado.

O uso que Kato faz dos materiais é particularmente revelador dessa tensão entre o antigo e o moderno. Tome-se como exemplo as suas esculturas em vinil flexível, criadas a partir de 2012. Este material, tipicamente usado na fabricação de brinquedos, torna-se, nas suas mãos, o meio de uma expressão que evoca as ídolos primitivas. Há algo profundamente perturbador nessas figuras que parecem saídas de um passado imemorial, embora sejam manifestamente produzidas pela nossa sociedade industrial.

Essa dualidade também se reflete na sua maneira de tratar o espaço. As instalações recentes de Kato criam ambientes que funcionam como santuários contemporâneos. Quando ele suspende as suas criaturas do teto, como na sua exposição marcante na Galeria Perrotin Nova Iorque em 2021, transforma o espaço da galeria num lugar ritual onde as suas figuras flutuantes se tornam os oficiais de uma cerimónia cujos códigos desconhecemos. É precisamente nessa tensão entre o sagrado e o profano que o seu trabalho encontra a sua maior força.

O artista leva ainda mais longe essa exploração das contradições da nossa época através do uso de materiais encontrados. As pedras que recolhe perto do seu estúdio em Hong Kong tornam-se elementos de esculturas compostas onde a matéria bruta dialoga com têxteis contemporâneos. Esses assemblages criam pontes inesperadas entre o mundo natural e o universo industrial, como totens para a nossa era antropocena.

Numa obra particularmente impressionante apresentada durante a sua exposição “LIKE A ROLLING SNOWBALL” no Museu Hara de Arte Contemporânea, Kato combina uma pedra bruta com um têxtil sintético para criar uma figura que parece emergir de um entre-dois mundos. A pedra, elemento primitivo por excelência, encontra-se transformada pela sua associação com o tecido industrial, criando uma tensão visual que resume perfeitamente os paradoxos da nossa época.

A escolha deliberada do artista de deixar as suas obras sem título não é casual. Obriga-nos a abandonar os nossos reflexos de categorização, a confrontar-nos diretamente com o enigma da sua presença. Essas criaturas sem nome olham-nos com os seus olhos vazios, convidando-nos a um encontro que acontece para lá da linguagem, num espaço onde as palavras perdem o seu poder de definição e controlo.

Esta estratégia do não nomeado faz parte de uma abordagem mais ampla que visa manter a obra num estado de máxima abertura. As figuras de Kato resistem a toda interpretação definitiva, elas flutuam num espaço de indeterminação que as torna ainda mais poderosas. Como destacou Robert Storr, o curador que descobriu o seu trabalho para a Bienal de Veneza de 2007, essas obras possuem uma qualidade “abrasiva” que as distingue da produção artística japonesa habitual.

Não posso deixar de ver nesta abordagem um paralelo fascinante com o pensamento de Walter Benjamin sobre a aura da obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. As criaturas de Kato, mesmo quando produzidas em série, como as suas esculturas em vinil, conservam uma aura misteriosa que desafia a reprodução mecânica. Cada uma parece portar em si uma presença única, irreduzível à sua materialidade.

Esta presença é particularmente palpável nas suas grandes telas onde as figuras parecem emergir de um fundo abstrato como aparições. A divisão frequente da tela em secções cromáticas distintas cria espaços mentais complexos onde as criaturas parecem flutuar entre diferentes estados de consciência. Esta estratégia pictórica evoca as reflexões de Gilles Deleuze sobre a pintura de Francis Bacon, um artista que Kato, aliás, cita entre as suas influências.

As obras recentes do artista mostram uma evolução fascinante da sua prática. As figuras ganham em complexidade estrutural sem perder a sua força primitiva. As colagens de materiais diversos criam seres híbridos que parecem encarnar fisicamente as contradições da nossa época. Esta complexificação da sua linguagem plástica acompanha-se de uma reflexão cada vez mais sofisticada sobre a natureza da imagem e da representação.

Nas suas últimas instalações, Kato explora novas formas de ativar o espaço. As suas criaturas deixam de ser simplesmente objetos para contemplar e tornam-se atores de uma encenação que transforma o espaço de exposição num teatro metafísico. Os jogos de sombra e luz, a disposição das obras no espaço, tudo concorre para criar uma experiência imersiva que nos mergulha num universo paralelo.

O artista desenvolve também uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre a noção de série e variação. As suas figuras, embora sempre reconhecíveis, sofrem metamorfoses subtis que as fazem oscilar entre diferentes estados de ser. Esta exploração sistemática das possibilidades formais lembra as investigações de Morandi sobre a natureza-morta, mas transpostas para um registo fantástico e inquietante.

O que torna o trabalho de Kato particularmente relevante hoje é que ele nos faz sentir simultaneamente a nossa alienação e a nossa conexão profunda com o mundo que nos rodeia. As suas criaturas são como espelhos deformantes que nos devolvem uma imagem da nossa humanidade ao mesmo tempo familiar e estranha. Num mundo onde a tecnologia nos promete uma transcendência desencarnada, Kato recorda-nos obstinadamente da nossa condição de seres encarnados, ligados à terra por laços misteriosos.

O uso recorrente de materiais orgânicos como a madeira e a pedra, combinado com elementos industriais, cria uma tensão fértil que ressoa com as preocupações ecológicas contemporâneas. As criaturas de Kato parecem transportar em si a memória de um mundo pré-industrial ao mesmo tempo que estão resolutamente inscritas no nosso presente tecnológico. Elas recordam-nos que nós próprios somos seres híbridos, produto de uma longa história natural e cultural.

Há no trabalho de Kato algo que resiste ferozmente à tentação da nostalgia. As suas criaturas não são vestígios de um passado idealizado, mas presenças vivas que nos interpela aqui e agora. Elas recordam-nos que o primitivo não está atrás de nós mas dentro de nós, que o sagrado não desapareceu mas se transformou, e que a nossa tarefa não é recuperar uma pureza perdida mas inventar novas formas de relação com o mundo.

Esta dimensão prospectiva do seu trabalho é particularmente evidente nas suas experimentações com materiais sintéticos. O vinil flexível, por exemplo, não é usado de forma irónica ou crítica, mas como um material autêntico que transporta as suas próprias possibilidades expressivas. Kato consegue dar-lhe uma dignidade inesperada, transformando-o no meio de uma nova forma de sagrado adaptada à nossa época.

As instalações mais recentes da artista levam ainda mais longe esta reflexão sobre a nossa relação com o sagrado num mundo des-sagrado. Ao criar ambientes imersivos onde as suas criaturas parecem habitar o espaço como presenças espectrais, Kato convida-nos a repensar a nossa relação com o invisível e o mistério. Estes espaços funcionam como zonas de contacto entre diferentes dimensões da realidade, locais onde o quotidiano e o misterioso se encontram e contaminam mutuamente.

A força do trabalho de Kato reside na sua capacidade de manter em tensão estas diferentes dimensões sem nunca as resolver numa síntese fácil. As suas criaturas permanecem enigmáticas, resistindo a qualquer tentativa de as reduzir a um único sentido. Elas recordam-nos que a arte mais poderosa é aquela que consegue manter viva a tensão entre o visível e o invisível, entre o material e o espiritual, entre o que sabemos e o que nunca poderemos compreender completamente.

A obra de Kato confronta-nos com uma questão fundamental: como habitar poeticamente um mundo desencantado? As suas criaturas, ao mesmo tempo primitivas e futuristas, naturais e artificiais, sugerem-nos um caminho possível: não o regresso impossível a uma origem mítica, nem a fuga para um futuro tecnológico, mas a invenção paciente de novas formas de presença no mundo, novas maneiras de estar juntos, humanos e não-humanos, na estranheza partilhada da nossa condição contemporânea.

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Referência(s)

Izumi KATO (1969)
Nome próprio: Izumi
Apelido: KATO
Outro(s) nome(s):

  • 加藤 泉 (Japonês)

Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Japão

Idade: 56 anos (2025)

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