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Jacqueline Humphries : A abstração na era digital

Publicado em: 23 Fevereiro 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

Jacqueline Humphries transforma a pintura abstrata através de uma exploração fascinante das fronteiras entre o analógico e o digital. No seu atelier em Red Hook, ela cria obras monumentais onde os emojis, os caracteres ASCII e os reflexos prateados se fundem numa experiência visual única.

Ouçam-me bem, bando de snobs, chegou o momento de falar sobre Jacqueline Humphries, esta artista que redefine as fronteiras da pintura abstrata na era digital. No seu vasto atelier em Red Hook, Nova Iorque, com tetos vertiginosos e banhado por luz oriental, ela conduz uma experimentação fascinante que transforma a tela num território de exploração dos limites entre o tangível e o virtual, entre a materialidade da pintura e a imaterialidade dos códigos digitais.

Num mundo onde os nossos ecrãs nos hipnotizam dia e noite, onde as nossas emoções se reduzem a emojis padronizados, e onde a nossa atenção se fragmenta numa miríade de pixels cintilantes, Humphries realiza algo extraordinário: transfigura essa cacofonia digital numa sinfonia visual que nos obriga a abrandar, a olhar realmente, a sentir. As suas obras monumentais não são meras pinturas, são portais para um espaço liminal onde o analógico e o digital entrelaçam-se numa dança complexa e subtil.

Esta artista nascida em Nova Orleães em 1960 atravessou as décadas mantendo uma posição única no mundo da arte contemporânea. Formada na Parsons School of Design e depois no prestigiado Whitney Independent Study Program na década de 1980, ela escolheu perseverar na pintura numa época em que esse meio era considerado moribundo. Essa perseverança transformou-se numa busca incessante para reinventar as possibilidades da pintura face às mutações tecnológicas do nosso tempo.

Tomemos como exemplo as suas célebres telas prateadas. À primeira vista, poderia confundi-las com ecrãs gigantes. Mas aproxime-se. A superfície refletora joga com a luz de uma forma que nenhum ecrã poderia reproduzir. Os reflexos mudam conforme a sua posição, criando uma experiência cinestésica que desafia a reprodução fotográfica. A obra recusa obstinadamente ser reduzida a uma simples imagem jpeg, resistindo assim à padronização digital que achata a nossa perceção do mundo.

Esta dimensão física e experiencial do trabalho de Humphries ecoa de forma surpreendente o pensamento do filósofo Gilbert Simondon sobre a relação entre o homem e a técnica. Na sua obra fundamental “Do modo de existência dos objetos técnicos”, Simondon desenvolve a ideia revolucionária de que a técnica não é oposta à cultura, mas constitui uma dimensão essencial desta. Ele rejeita categoricamente a dicotomia simplista entre o natural e o artificial, propondo antes uma visão onde o humano e a técnica co-evoluem numa relação de interdependência complexa.

As pinturas de Humphries incorporam perfeitamente esta visão simondoniana. Quando ela utiliza stencil criados a partir de caracteres ASCII para reproduzir as suas antigas obras, ela não está simplesmente a reciclar, está a inventar uma nova linguagem pictórica que transcende a distinção entre o gesto manual e a reprodução mecânica. As suas telas tornam-se zonas de mediação onde o código informático e a expressão artística se encontram e se metamorfoseiam mutuamente.

Esta abordagem recorda-nos particularmente as reflexões de Simondon sobre a individuação técnica. Para o filósofo, um objeto técnico não é simplesmente uma ferramenta inerte, mas um sistema em evolução constante que participa no nosso vir-a-ser coletivo. De igual modo, as pinturas de Humphries não são objetos estáticos, elas evoluem literalmente segundo a nossa posição e a luz ambiente, criando uma experiência que não pode ser reduzida nem à pura materialidade da pintura, nem à virtualidade do digital.

A sua série de pinturas fluorescentes exposas sob luz negra ilustra perfeitamente esta dimensão. Estas obras criam um espaço ambíguo entre a materialidade da pintura e a imaterialidade da luz. O pigmento fluorescente, habitualmente associado às atmosferas de discotecas e à cultura pop, é aqui elevado à categoria de meio artístico sofisticado. Estes quadros recordam-nos que toda a perceção é mediada, seja pelos nossos olhos, por um ecrã, ou pela cultura visual que nos rodeia. Esta mediação não é um obstáculo a ultrapassar, mas o próprio local onde se joga a nossa relação com o mundo.

A artista leva esta exploração ainda mais longe com as suas obras que incorporam testes CAPTCHA. Estes dispositivos digitais, concebidos para distinguir humanos de robôs nas nossas interações online, tornam-se sob o seu pincel elementos de uma nova gramática visual. Ela transforma estes marcadores da nossa ansiedade tecnológica em composições que questionam a própria natureza da autenticidade e da expressão artística na era da inteligência artificial.

A utilização que ela faz dos emojis é igualmente provocadora e sofisticada. Esses pictogramas padronizados, frequentemente criticados como símbolos do empobrecimento da nossa comunicação emocional, são reinvestidos com uma complexidade inesperada no seu trabalho. Sobrepostos, deformados, integrados em camadas sucessivas de tinta, perdem a sua função comunicativa imediata para se tornarem elementos de uma sintaxe pictórica mais rica e mais ambígua.

A reflexão de Simondon sobre a alienação técnica encontra aqui uma ressonância particular. Para o filósofo, a alienação não provém da técnica em si, mas da nossa incapacidade de compreender e integrar a técnica na nossa cultura. As pinturas de Humphries mostram-nos um caminho possível de reconciliação, onde o digital não é nem demonizado nem idolatrado, mas integrado numa prática artística que revela a sua complexidade e potencial poético.

Esta integração manifesta-se de forma particularmente marcante no seu tratamento da superfície pictórica. As camadas de tinta, os padrões criados com stencil, os reflexos metálicos criam uma profundidade que não é apenas espacial mas temporal. Cada tela carrega as marcas de múltiplas intervenções, como um testemunho visual onde o digital e o analógico se inscrevem e reescrevem-se mutuamente, criando um diálogo complexo entre diferentes modos de produção de imagens.

Nas suas obras mais recentes, Humphries leva ainda mais longe esta exploração das fronteiras entre o manual e o mecânico. Ela utiliza programas informáticos para digitalizar as suas pinturas antigas e convertê-las em código ASCII, depois usa esses códigos como base para novas composições. Este processo de tradução e retradução cria obras que são ao mesmo tempo familiares e estranhamente novas, como ecos digitais de gestos pictóricos.

A artista joga constantemente com as nossas expectativas e hábitos perceptivos. As suas pinturas prateadas, por exemplo, refletem não só a luz mas também o espectador, criando uma interação que lembra a dos ecrãs tácteis. No entanto, ao contrário dos nossos dispositivos digitais que nos dão a ilusão do controlo, esses reflexos lembram-nos da nossa posição instável, da nossa incapacidade de fixar a imagem numa forma definitiva.

Essa instabilidade está no coração do projeto artístico de Humphries. Ela mostra-nos que a pintura, longe de estar obsoleta na era digital, pode tornar-se um lugar privilegiado para explorar os paradoxos da nossa condição contemporânea. As suas obras convidam-nos a abrandar, a observar as múltiplas camadas de mediação que estruturam a nossa experiência, a reconhecer a complexidade da nossa relação com a tecnologia.

Neste sentido, o seu trabalho ecoa outro aspeto crucial do pensamento de Simondon: a ideia de que a técnica não é simplesmente um meio para alcançar um fim, mas um modo de existência que participa no nosso vir-a-ser coletivo. As pinturas de Humphries não são comentários sobre a tecnologia, mas dispositivos que nos permitem experimentar novas formas de perceção e de relação.

Esta dimensão experimental é particularmente evidente na sua forma de trabalhar em série, cada obra servindo como ponto de partida para novas explorações. Os motivos, os gestos, os efeitos circulam de uma tela para outra, criando uma rede de relações que lembra a estrutura rizomática da Internet. Mas, ao contrário do fluxo constante de imagens digitais que caracteriza a nossa época, as suas pinturas obrigam-nos a parar, a tomar tempo para perceber as subtis variações, os jogos de luz, as sobreposições de camadas.

O seu trabalho com luz negra é particularmente interessante. Estas obras, que só podem ser vistas em condições de iluminação específicas, criam uma experiência imersiva que transforma radicalmente a nossa perceção do espaço. Os pigmentos fluorescentes, ativados pela luz ultravioleta, produzem uma luminosidade que parece emanar do interior da tela, confundindo as fronteiras entre a superfície pintada e o espaço circundante.

Esta exploração da luz como meio artístico relembra as experiências de Dan Flavin, mas Humphries leva a experiência numa direção radicalmente diferente. Enquanto Flavin trabalhava com a luz fluorescente como um material escultórico, Humphries utiliza-a como um meio de questionar a própria natureza da visibilidade num mundo dominado pelos ecrãs luminosos.

A sua utilização dos caracteres ASCII representa outra grande inovação. Ao transformar as suas pinturas em código e depois retransformar esse código em pintura, ela cria um ciclo de tradução que destaca os diferentes níveis de mediação que caracterizam a nossa experiência contemporânea das imagens. Este processo relembra as reflexões de Walter Benjamin sobre a reprodução mecânica da obra de arte, atualizadas para a era digital.

Os emojis no seu trabalho funcionam de forma semelhante. Estes símbolos, omnipresentes na nossa comunicação quotidiana, são desviados da sua função habitual para se tornarem elementos de uma nova sintaxe visual. Humphries usa-os como unidades básicas de uma linguagem pictórica que joga com as convenções da expressão emocional na era digital.

A arte de Humphries recorda-nos assim que a técnica não se opõe à sensibilidade, que o digital não exclui o táctil, que a reprodução mecânica pode gerar novas formas de autenticidade. As suas pinturas criam um espaço onde estas aparentes contradições podem coexistir e transformar-se mutuamente, abrindo novas possibilidades para a arte contemporânea.

Numa época obcecada pela velocidade e imediatismo, o trabalho de Jacqueline Humphries oferece-nos um momento de pausa, um convite a reconsiderar a nossa relação com as imagens e a tecnologia. As suas pinturas não nos dão respostas simples, mas propõem um espaço de reflexão e experiência onde o digital e o analógico, o mecânico e o gestual, o código e a expressão podem entrar em diálogo.

Através da sua exploração das fronteiras entre o real e o virtual, Humphries mostra-nos que a pintura continua a ser um meio vital para compreender e questionar a nossa condição contemporânea. O seu trabalho recorda-nos que a arte não é simplesmente um espelho do nosso tempo, mas um laboratório onde podem emergir novas formas de perceção e experiência. As suas obras oferecem-nos um espaço de resistência e reflexão, um local onde a complexidade da nossa relação com o digital pode ser explorada e repensada.

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Referência(s)

Jacqueline HUMPHRIES (1960)
Nome próprio: Jacqueline
Apelido: HUMPHRIES
Género: Feminino
Nacionalidade(s):

  • Estados Unidos

Idade: 65 anos (2025)

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