Ouçam-me bem, bando de snobs. No mundo asséptico da arte contemporânea, onde teorias esfarrapadas se empilham como camadas de verniz sobre uma tela já sobrecarregada, existe um artista que ousa olhar-nos diretamente nos olhos. Javier Calleja, nascido em 1971 em Málaga, essa cidade espanhola que viu nascer Picasso, pratica uma arte que parece simples à primeira vista. Mas por detrás das suas personagens de olhos desmedidos esconde-se uma reflexão profunda sobre a nossa época e a nossa relação com a infância.
As suas criaturas com olhares aquosos, que oscilam entre a tristeza e a malícia, personificam perfeitamente o que o psicanalista Donald Winnicott chamou de “espaço transicional”. Estes seres, nem totalmente crianças nem verdadeiros adolescentes, habitam essa zona intermédia onde o imaginário e o real convivem sem atrito, onde o jogo se torna uma forma de verdade. Como Winnicott teorizou, é precisamente nesse espaço que se desenvolve a nossa capacidade de simbolizar, criar, existir plenamente. As personagens de Calleja, com olhos brilhantes de lágrimas mal enxugadas, bochechas coradas pela emoção, e t-shirts com mensagens lapidares, personificam essa zona transicional onde a arte ainda pode tocar-nos sem necessidade de explicações complexas.
Na sua procura artística, Calleja desenvolveu uma técnica singular especialmente interessante. Os seus olhos, pintados com uma precisão quase cirúrgica, constituem o ponto focal de cada obra. Duas simples gotas de água num pedaço de papel deram origem a esta assinatura visual que agora cativa colecionadores de todo o mundo. O domínio técnico não se limita aos olhares: as transições subtis entre tons de pele, o ligeiro rubor das bochechas, tudo está calibrado para criar uma presença que transcende a mera ilustração.
O artista malagueno brinca com uma habilidade desconcertante nas escalas, fazendo passar as suas criações do minúsculo ao monumental com uma facilidade que lembra as aventuras de Lewis Carroll. As suas instalações transformam os espaços de exposição em terrenos de jogo onde o espetador se torna ele próprio uma Alice no País das Maravilhas contemporânea. Esta manipulação das proporções não é apenas um exercício formal: leva-nos a essa experiência fundamental da infância, onde o mundo pode parecer ora imenso, ora minúsculo, dependendo do nosso estado emocional.
O filósofo Gaston Bachelard, na sua “Poética do Espaço”, falava da capacidade da criança de habitar poeticamente o mundo, de transformar um canto do quarto num universo infinito. As obras de Calleja reativam essa capacidade de encantamento, não numa nostalgia piegas da infância, mas numa apropriação consciente desse poder de transformação. As suas personagens com olhos desmesurados não são simplesmente “fofas”, são testemunhas da nossa própria capacidade de ver o mundo de outra maneira.
A sua recente exposição “One true tree for…” na galeria Almine Rech em Nova Iorque ilustra perfeitamente esta evolução. As dez telas apresentadas, todas realizadas em 2024, mostram um domínio crescente da composição. As personagens parecem agora flutuar num espaço pictórico mais complexo, onde as gotas de tinta que transbordam dos quadros criam uma continuidade entre a obra e o seu ambiente. Esta técnica, longe de ser um simples efeito decorativo, ancora as figuras na nossa realidade ao mesmo tempo que sublinha a sua natureza pictórica.
O artista aprofundou a sua exploração da escultura, nomeadamente com “Waterboy + Flower Heads” (2024), uma instalação monumental que dialoga subtilmente com o espaço arquitectónico. A personagem em roupa laranja com a inscrição “1980” torna-se uma presença totémica, ladeada por dois arbustos antropomórficos com olhos esbugalhados. Esta peça ilustra perfeitamente a capacidade de Calleja de transformar elementos do quotidiano em objetos de contemplação poética.
Os desenhos em papel, como “Mom!” e “I see!” (2024), revelam uma abordagem mais espontânea mas não menos dominada. Os respingos de cor e os traços de pincel que envolvem os rostos criam uma atmosfera mais dinâmica, deixando pouco espaço para o vazio. As bolhas de diálogo com mensagens enigmáticas como “I SEE ?” ou “IN DREAMS” sugerem narrativas que nunca se revelam completamente, mantendo o espetador num estado de interrogação permanente.
A influência de René Magritte, que Calleja cita frequentemente, manifesta-se menos numa qualquer surrealidade e mais nessa capacidade de criar imagens que são simultaneamente imediatamente acessíveis e profundamente misteriosas. Os fundos monocromáticos, frequentemente em tons pastel ou cores vivas mas nunca agressivas, criam um espaço pictórico que não é nem totalmente abstrato nem verdadeiramente figurativo. Esta indeterminação espacial reforça a impressão de que as suas personagens existem neste espaço transitório a que Winnicott se referia.
A sua paleta cromática enriqueceu-se consideravelmente ao longo dos anos. As cores funcionam agora como marcadores emocionais subtils, criando uma atmosfera que influencia a nossa perceção das expressões faciais. Os contrastes entre os fundos uniformes e os pormenores minuciosos dos rostos criam uma tensão visual que mantém a nossa atenção desperta. Este domínio da cor não é alheio ao de Alex Katz, outra influência reivindicada pelo artista.
A evolução da sua prática artística reflete uma compreensão profunda das questões da arte contemporânea. Partindo de pequenos desenhos e instalações mínimas, desenvolveu progressivamente uma linguagem visual que lhe permite abordar questões complexas com uma aparente simplicidade. As mensagens nas t-shirts das suas personagens, “What to do now?”, “No problem”, “Same old story”, funcionam como haicais visuais, concentrados de sabedoria diária que ressoam com a nossa época saturada de complexidade.
Nas suas esculturas recentes, nomeadamente as apresentadas no Parco Museum de Tóquio em 2022, Calleja leva ainda mais longe esta exploração do espaço transitório. As suas personagens tridimensionais criam situações onde o espectador é fisicamente confrontado com esta presença ao mesmo tempo familiar e estranha. O artista joga conscientemente com aquilo a que Freud chamava “a estranheza assustadora”, aquele momento em que o familiar se torna de súbito outro, mas faz isso sem nunca cair no desconforto. Pelo contrário, as suas criaturas convidam-nos a abraçar essa estranheza com um sorriso cúmplice.
A trajetória de Calleja na cena artística internacional é ela própria reveladora de uma mudança significativa no mundo da arte contemporânea. O seu sucesso na Ásia, particularmente no Japão e em Hong Kong, antes mesmo de ser reconhecido na Europa, ilustra uma evolução na forma como a arte circula e é apreciada globalmente. O público asiático captou imediatamente aquilo que alguns críticos ocidentais, talvez demasiado enredados nas suas preconcepções teóricas, demoraram mais tempo a compreender: a arte de Calleja opera a um nível emocional direto que transcende barreiras culturais.
A sua colaboração recente com Lladró para a criação de “You Choose One” demonstra a sua capacidade de traduzir o seu universo em diferentes meios. As três peças em porcelana, Boy, Devil Cat e Angel Cat, mantêm toda a frescura dos seus desenhos, explorando ao mesmo tempo as qualidades específicas deste material nobre. Esta incursão nas artes decorativas, longe de diluir a sua mensagem artística, enriquece-a com uma nova dimensão tátil e preciosa.
Esta universalidade não é a artificial de uma arte comercial calculada para agradar ao maior número possível. É antes a de uma expressão artística que toca algo fundamental na experiência humana: a nossa capacidade de nos maravilhar, de nos reerguer depois de termos chorado, de encontrar humor mesmo nos momentos difíceis. As personagens de Calleja, com os seus olhos imensos que parecem absorver o mundo inteiro, são como espelhos que nos devolvem a nossa própria capacidade de sentir.
O próprio artista resiste à tentação de explicar o seu trabalho, preferindo deixar cada espectador completar a obra com a sua própria experiência. Esta abordagem, que poderia parecer ingénua num mundo da arte obcecado pela teorização, revela na verdade uma profunda compreensão do que faz o poder da arte: a sua capacidade de criar um espaço de encontro entre o artista e o espectador, um lugar onde o sentido não é imposto mas descoberto.
O seu processo criativo, que descreve como uma busca constante pelo “momento mágico”, ilustra perfeitamente esta filosofia. Comparando a sua arte a um truque de magia, procura criar esse instante fugaz em que o nosso cérebro aceita o impossível antes que a razão volte a assumir o controlo. Esta abordagem lembra as reflexões de Walter Benjamin sobre a aura da obra de arte: é precisamente nesses momentos de suspensão do julgamento que a arte pode transformar-nos.
As exposições de Calleja, sejam monumentais ou intimistas, transformam os espaços naquilo que Bachelard teria chamado de “espaços felizes”. Não são espaços de pura fruição estética, mas lugares onde a nossa relação com o mundo pode ser momentaneamente suspensa, questionada, reinventada. As suas obras lembram-nos que a arte não precisa de ser hermética para ser profunda, nem conceptual para ser inteligente.
Enquanto o nosso mundo está saturado de imagens e discursos, onde a atenção é uma mercadoria rara e onde a emoção autêntica é frequentemente suspeita, a arte de Calleja propõe uma forma de resistência suave mas determinada. As suas personagens de olhos imensos convidam-nos a abrandar, a olhar verdadeiramente, a deixar-nos tocar. Lembram-nos que a simplicidade pode ser uma forma de sofisticação, e que a inocência, quando conscientemente escolhida em vez de assumida ingenuamente, pode ser uma posição de força.
O artista espanhol conseguiu criar uma linguagem visual própria, inserindo-se numa linhagem artística que ultrapassa de longe as referências óbvias à cultura pop. O seu trabalho dialoga subtilmente com a história da arte, desde o expressionismo à arte conceptual, permanecendo resolutamente ancorado no presente. Esta capacidade de transcender as categorias enquanto permanece imediatamente reconhecível é uma das marcas dos grandes artistas.
A sua prática atual, que inclui pintura, desenho, escultura e instalação, demonstra uma maturidade artística que não deixa de aprofundar-se. As obras recentes revelam uma subtil complexificação da sua gramática visual, sem nunca perder essa qualidade essencial que constitui a sua assinatura. As novas personagens que introduz enriquecem o seu universo mantendo-se fiéis à sua visão artística fundamental.
A arte de Calleja lembra-nos que a verdadeira sofisticação reside às vezes na capacidade de dizer coisas complexas com simplicidade, de tocar verdades profundas com leveza. Enquanto o mundo da arte contemporânea está frequentemente preso às suas próprias teorias, o seu trabalho representa um sopro de ar fresco, um lembrete de que a arte ainda pode falar directamente ao coração, sem renunciar ao seu poder intelectual e emocional.
No início deste ano de 2025, enquanto o mercado de arte continua a fragmentar-se e a complicar-se, a obra de Calleja surge como um ponto de referência reconfortante. Não porque ofereça certezas fáceis, mas precisamente porque nos relembra o valor da incerteza, do assombro, dessa capacidade infantil de ver o mundo como se fosse a primeira vez. Num panorama artístico onde a provocação se tornou uma convenção, a sinceridade de Calleja é talvez a mais radical das posições.
















