Ouçam-me bem, bando de snobs. É tempo de falar de Jenny Holzer, esta artista cuja obra representa a antítese da nossa cultura visual obcecada pela imagem. Há mais de quatro décadas, ela bombardeia-nos com palavras, palavras que chocam, que provocam, que se insinuam nos interstícios das nossas consciências como estilhaços de vidro sob a pele. Palavras que não pedem apenas para ser lidas, mas para serem sentidas até às entranhas.
Num mundo artístico que venera a imagem como uma divindade omnipotente, Holzer escolheu o texto como arma de perturbação massiva. Os seus truísmos, os seus ensaios inflamados e as suas projeções monumentais transformam a linguagem numa presença física que nos confronta, nos abala e nos desafia. Ela compreendeu, muito antes dos teóricos do digital, que as palavras podiam ser tão tangíveis como a pedra, tão luminosas como o néon, tão impactantes como um murro.
O que distingue Holzer de tantos artistas conceptuais é que ela transforma a frieza clínica do texto numa experiência visceral. Quando projeta “PROTECT ME FROM WHAT I WANT” (Protege-me do que desejo) num edifício, não é simplesmente uma mensagem para decifrar intelectualmente, é uma súplica existencial que ressoa na noite como um grito primal. Quando grava “ABUSE OF POWER COMES AS NO SURPRISE” (O abuso de poder não é surpresa) no mármore de um banco público, ela não se limita a fazer uma declaração política, inscreve uma verdade terrível na permanência da pedra.
Se examinarmos atentamente a obra de Jenny Holzer através do prisma filosófico, podemos discernir uma ressonância profunda com o pensamento de Ludwig Wittgenstein, o filósofo austríaco que revolucionou a nossa compreensão da linguagem no século XX. Na sua fase tardia, Wittgenstein desenvolveu o conceito dos “jogos de linguagem”, sustentando que o significado das palavras não reside na sua referência a uma realidade objetiva, mas no seu uso dentro de contextos sociais específicos [1]. Esta perspetiva encontra um eco impressionante na prática artística de Holzer, que desloca constantemente as palavras dos seus contextos habituais para revelar os seus significados latentes e as suas implicações políticas.
Tomemos como exemplo a série “Truisms” (1977-1979), na qual Holzer apresenta declarações aparentemente simples como “PRIVATE PROPERTY CREATED CRIME” (A propriedade privada criou o crime) ou “TORTURE IS BARBARIC” (A tortura é bárbara). Ao extrair estas frases dos discursos ideológicos onde normalmente funcionam e ao colocá-las no espaço público, em cartazes, t-shirts, bancos ou letreiros LED, Holzer destabiliza a nossa relação habitual com a linguagem. Tal como Wittgenstein teria sugerido, ela expõe assim as “formas de vida” subjacentes que dão sentido a estas declarações, revelando como a linguagem molda a nossa compreensão do mundo social e político.
Wittgenstein escreve nas suas Investigações Filosóficas que “as palavras são também ações” [2], um princípio que Holzer põe literalmente em prática ao transformar o texto numa intervenção física no espaço. Instalando os seus letreiros de LED a rolar no museu Guggenheim ou projetando textos monumentais em edifícios públicos, ela materializa esta dimensão performativa da linguagem que Wittgenstein teorizou. As suas palavras não se limitam a descrever o mundo, atuam sobre ele, transformando edifícios, praças públicas e galerias em locais de confronto ideológico.
Particularmente notável é a forma como Holzer, tal como Wittgenstein, se interessa pelos limites da linguagem e pelo que ela não pode expressar. Na sua série “Laments” (1989), criada em resposta à crise do SIDA, Holzer utiliza uma linguagem poética e fragmentada que parece constantemente embater no inexprimível. Esta exploração das fronteiras da expressão evoca a famosa proposição de Wittgenstein: “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar” [3]. Contudo, num gesto que talvez desafie esta restrição, Holzer tenta dar forma ao indizível, materializando a ausência e a perda através de sarcófagos de pedra gravados e de textos que falam desde o domínio dos mortos.
A segunda perspetiva através da qual podemos aprofundar a nossa compreensão da obra de Holzer é a da psicologia ambiental, disciplina que estuda as interações entre os indivíduos e o seu ambiente físico. Esta abordagem permite-nos entender como Holzer manipula magistralmente a psicologia dos espaços para amplificar o impacto das suas intervenções textuais.
O psicólogo James J. Gibson desenvolveu o conceito de “affordances” para descrever as possibilidades de ação que um ambiente oferece a um indivíduo [4]. Holzer parece compreender intuitivamente este princípio quando subverte as affordances convencionais dos espaços públicos. Um banco de parque, normalmente visto como um convite ao descanso, torna-se sob o seu tratamento um local de confronto intelectual quando exibe inscrições como “IT IS IN YOUR SELF-INTEREST TO FIND A WAY TO BE VERY TENDER” (Está no seu próprio interesse encontrar uma maneira de ser muito ternurenta). Uma fachada de edifício, geralmente um elemento arquitetónico neutro, transforma-se numa superfície de projeção de verdades perturbadoras.
Esta manipulação das affordances espaciais atinge seu apogeu nas instalações LED de Holzer, particularmente aquela criada para o museu Guggenheim em 1989 e recriada em 2024. Ao instalar um ecrã eletrónico contínuo que serpenteia ao longo da espiral arquitetónica de Frank Lloyd Wright, Holzer subverte a experiência habitual do museu. O psicólogo ambiental Roger Barker teria qualificado isso como uma perturbação de um “behavior setting” estabelecido [5]. O cenário comportamental do museu de arte, que normalmente dita uma contemplação silenciosa e imóvel, transforma-se numa experiência dinâmica em que o visitante deve seguir fisicamente o movimento do texto, envolvendo todo o seu corpo no ato de leitura.
Mais subtil, mas igualmente significativo, é o trabalho de Holzer com a luminosidade e a escuridão. As suas projeções noturnas exploram o que os psicólogos chamam de “efeito da pupila”, a nossa tendência a ser atraídos por fontes de luz na escuridão [6]. Numa rua escura, os seus textos luminosos capturam irresistivelmente a nossa atenção, criando uma intimidade forçada com mensagens frequentemente perturbadoras. Esta manipulação das nossas respostas perceptivas instintivas amplifica consideravelmente o impacto emocional do seu trabalho.
Particularmente reveladora é a evolução das instalações de Holzer para ambientes totalmente imersivos, como nas suas recentes exposições no Guggenheim e noutros locais. Estes espaços envolventes exploram o que o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi chama de estado de “flow”, uma imersão total numa atividade que capta completamente a nossa atenção [7]. Ao criar ambientes onde o texto nos rodeia por todos os lados, piscando, movendo-se e pulsando a ritmos diferentes, Holzer induz um estado de consciência alterado que desvia as nossas defesas intelectuais habituais, tornando as suas mensagens ainda mais penetrantes.
Na sua série “Redaction Paintings” (2005-presente), Holzer joga com a psicologia da curiosidade e da censura. Os documentos governamentais que ela reproduz, com as suas secções fortemente censuradas, ativam o que os psicólogos chamam de “efeito Streisand”, a nossa fascinação aumentada pela informação que nos é explicitamente ocultada [8]. As áreas negras tornam-se assim mais eloquentes do que os textos revelados, forçando-nos a contemplar o que o poder escolhe esconder.
O que verdadeiramente distingue Holzer é a sua capacidade de tornar o texto fisicamente presente, de lhe dar corpo, massa, luminosidade, textura. Ela transforma as palavras em matéria, e esta materialidade é absolutamente central à sua prática. Os bancos de mármore gravados com os seus “Truismos” não são apenas suportes para texto, são objetos que existem no espaço, que ocupam um volume, que possuem peso. Pode-se sentar-se neles, tocá-los, sentir as letras gravadas sob os dedos. O texto torna-se tangível, adquire uma presença física que é tão importante quanto o seu conteúdo semântico.
O que é particularmente interessante é ver como Holzer conseguiu adaptar a sua prática à era digital mantendo essa obsessão pela materialidade da linguagem. As suas projeções luminosas em edifícios ou paisagens naturais transformam a arquitetura ou a natureza em superfícies de inscrição temporárias. As suas exibições em LED criam rios de palavras que fluem no espaço, refletem nas superfícies, coloram o ar à sua volta. Mesmo quando ela trabalha com meios imateriais como a luz, Holzer consegue dar ao texto uma presença física que nos confronta, nos envolve, nos imerge.
Esta tensão constante entre a materialidade e a imaterialidade, entre a permanência e o efémero, entre o público e o privado, é o que dá à obra de Holzer o seu poder singular. Ela lembra-nos que as palavras não são simples veículos transparentes para ideias abstratas, são objetos no mundo, coisas que agem sobre nós, que nos afetam física, emocional e psicologicamente.
E é precisamente essa dimensão física que torna o seu trabalho tão perturbador. Quando Holzer projeta “THE BEGINNING OF THE WAR WILL BE SECRET” (O início da guerra será secreto) num monumento público, não é simplesmente uma proposição intelectual a considerar, é uma presença espectral que assombra o nosso espaço comum, que se infiltra na nossa consciência coletiva.
A exposição “Light Line” no Guggenheim (2024) ilustra magistralmente essa fusão do conceptual e do material. O próprio edifício torna-se um corpo atravessado por fluxos de texto que se desdobram como veias luminosas. As palavras já não estão confinadas à página ou ao ecrã, habitam o espaço arquitetónico, respiram, vivem. E nós, espectadores, somos convidados a entrar fisicamente nesse corpo textual, a imergir nesse fluxo de linguagem que nos envolve, nos atravessa, nos perfura.
E o que dizer de “Cursed” (2022), essa obra onde Holzer gravou os tweets de Donald Trump em placas de metal deformadas e corroídas? Aqui, ela dá uma forma tangível à toxicidade do discurso político contemporâneo, transformando as erupções digitais de um demagogo em objetos físicos cuja materialidade expressa a sua violência intrínseca. Esses fragmentos metálicos torcidos, essas superfícies irregulares e corroídas materializam a deformação da linguagem política, o seu aviltamento, a sua degradação.
Em “SLAUGHTERBOTS” (2024), Holzer questiona a interseção entre inteligência artificial e violência ao criar formas geométricas geradas por IA que apresentam assimetrias inquietantes. Estas obras não são apenas comentários sobre a tecnologia, são manifestações tangíveis do inquietante estranhamento desses sistemas, da sua capacidade para produzir imprecisão e, potencialmente, violência. A forma estética depurada destas obras contrasta brutalmente com o seu título evocativo, criando uma tensão entre a beleza formal e a ameaça latente.
Numa mundo onde a linguagem está cada vez mais desmaterializada, dispersa no fluxo contínuo das redes sociais e das comunicações digitais, Holzer lembra-nos obstinadamente a sua materialidade fundamental. Ela obriga-nos a reconhecer que as palavras têm peso, presença e impacto. Que podem magoar, assombrar, transformar. Que são, afinal, coisas tão reais quanto os corpos que afetam.
A crítica frequentemente associou Holzer à arte feminista devido ao seu interesse pelas questões de poder e género. Mas o que realmente distingue a sua prática é a sua capacidade de transformar estas preocupações em experiências sensoriais totais, em vez de simples declarações didáticas. Quando ela fala sobre a violência sexual ou a subjetividade feminina, não o faz em forma de manifesto abstrato, mas através de intervenções que nos envolvem física, emocional e visceralmente.
“Lustmord” (1993-1995), a sua resposta aos estupros sistemáticos cometidos durante a guerra na Bósnia, é talvez o exemplo mais impressionante desta abordagem. Ao inscrever textos na pele de pessoas vivas, usando uma tinta que evoca sangue, Holzer transforma o próprio corpo humano num local de inscrição, borrando radicalmente as fronteiras entre texto e carne, entre a representação da violência e a sua encarnação. Esta obra não nos permite manter uma distância confortável, envolve-nos diretamente no horror que evoca.
O que faz a grandeza de Holzer, afinal, é a sua capacidade de navegar entre diferentes registos de experiência, o intelectual e o visceral, o político e o poético, o público e o íntimo, sem jamais se deixar limitar a uma única dimensão. As suas obras podem ser lidas como intervenções políticas, experiências formais, explorações filosóficas, confissões pessoais, e são tudo isso ao mesmo tempo, sem se reduzirem a nenhuma dessas categorias.
Numa paisagem artística muitas vezes dominada pelo espetáculo vazio de sentido ou pelo intelectualismo árido, Holzer recorda-nos que a arte mais poderosa é aquela que consegue tocar-nos tanto no corpo como na mente, na consciência política e na intimidade emocional. Ela mostra-nos que é possível criar uma arte que seja simultaneamente conceptualmente sofisticada e visceramente impactante, politicamente empenhada e formalmente rigorosa.
Então sim, afirmo sem hesitação: Jenny Holzer é uma das artistas mais importantes do nosso tempo, precisamente porque ela compreendeu que as palavras não são simples signos abstratos flutuando no éter conceptual, são objetos no mundo, forças atuantes, presenças materiais que nos moldam tanto quanto nós as moldamos. Num mundo saturado de linguagens vazias e comunicações insignificantes, ela lembra-nos que as palavras têm peso, densidade, gravidade. E nessa reconhecimento reside um poder artístico verdadeiramente revolucionário.
- Wittgenstein, Ludwig. Investigações filosóficas. Gallimard, 1961.
- Ibid.
- Wittgenstein, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Gallimard, 1993.
- Gibson, James J. The Ecological Approach to Visual Perception. Houghton Mifflin, 1979.
- Barker, Roger G. Ecological Psychology: Concepts and Methods for Studying the Environment of Human Behavior. Stanford University Press, 1968.
- Hess, Eckhard H. “Avaliação Pupilar”. Pesquisa em Psicoterapia, Vol. 3, 1968.
- Csikszentmihalyi, Mihaly. Fluxo: A Psicologia da Experiência Ótima. Harper & Row, 1990.
- Jansen, Bernard J. et al. “O Efeito de Proibir Informação”. Journal of Information Science, Vol. 35, No. 2, 2009.
















