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Jia Aili: Profeta do apocalipse digital

Publicado em: 24 Dezembro 2024

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 5 minutos

Jia Aili cria mundos apocalípticos de uma beleza visceral onde o espaço e o vazio se tornam personagens por si mesmos. As suas telas monumentais criam paisagens mentais onde a solidão não é uma pose de Instagram, mas uma experiência existencial que arrefece o sangue.

Ouçam-me bem, bando de snobs, vou falar-vos de um artista que abala as vossas certezas burguesas sobre o que é a pintura contemporânea. Jia Aili, nascido em 1979 em Dandong, esta fria cidade do nordeste da China que fica de frente para a Coreia do Norte, não está aqui para vos embalar em ilusões nem para pintar nenúfares que ficariam tão bem acima do vosso sofá de couro italiano.

Enquanto alguns se extasiam diante de reproduções de Monet em papel de parede, Jia Aili cria mundos apocalípticos de uma beleza visceral que vos agarra pelas entranhas. Formado na Academia de Belas Artes Lu Xun de Shenyang, poderia ter-se limitado a perpetuar a tradição do realismo socialista que marcou gerações de artistas chineses. Mas não, isso seria demasiado simples, demasiado previsível para este espírito atormentado que dialoga tanto com Caspar David Friedrich como com Francis Bacon.

A primeira característica do seu trabalho é a forma como trata o espaço e o vazio como personagens por direito próprio. As suas telas monumentais, e quando digo monumentais, refiro-me a formatos que fariam Rothko parecer um postal, criam paisagens mentais onde a solidão não é uma pose de Instagram, mas uma experiência existencial que lhe gela o sangue. Como Nietzsche teria dito, quando contempla o abismo nas obras de Jia Aili, o abismo contempla-o de volta. E esse abismo não tem nada a ver com o vazio de pensamento daqueles que confundem arte contemporânea com decoração de interiores.

As suas figuras mascaradas, recorrentes na sua obra, não estão lá para surfar na onda pós-covid. Não, elas personificam a fragmentação da identidade no nosso mundo hiperconectado, onde todos nós nos tornámos avatares digitais a vaguear num deserto de sentido. É Baudrillard a encontrar o realismo mágico chinês, uma colisão frontal entre a tradição e a hipermodernidade que o faz perceber o quanto a sua visão da arte contemporânea chinesa ficou presa nos clichés dos anos 90.

A segunda característica da sua obra é a sua maneira de tratar a tecnologia como uma força mística e destrutiva. Em “Sonatine” (2019), uma obra magistral com quase 10 metros de comprimento, Jia Aili cria um universo onde as formas geométricas flutuam como detritos de um futuro em decomposição. É Blade Runner a encontrar a pintura tradicional de paisagem chinesa, mas mil vezes mais profundo. Os poliedros que atravessam o espaço pictórico não são simples exercícios de estilo, são testemunhas silenciosas de uma civilização que desmorona sob o peso da sua própria hybris tecnológica.

Cada pincelada é uma negociação entre o caos e a ordem, entre a mestria técnica herdada da sua formação académica e uma liberdade gestual que faria Willem de Kooning morrer de inveja. As camadas de tinta acumulam-se como camadas geológicas, criando superfícies que são testemunhas da nossa época conturbada.

As suas paisagens pós-apocalípticas não são simples exercícios distópicos de estilo. Não, são o reflexo de uma consciência aguçada da nossa condição contemporânea. Quando pinta essas vastas extensões desoladas onde figuras solitárias vagueiam como espectros, não está a cair no misero caricato. Coloca questões fundamentais sobre a nossa relação com o ambiente, com a tecnologia, connosco mesmos. É Heidegger a encontrar Mad Max, mas com uma sofisticação pictórica que lhe corta a respiração.

Os críticos superficiais poderão ver nisso apenas uma estética do desastre, mas perderiam o essencial. Em “The Action of Three Primary Colors” (2018), Jia Aili demonstra uma compreensão profunda da história da arte ocidental ao mesmo tempo que a transcende. As cores não estão lá apenas para adornar a sua sala, são forças tectónicas que colidem na tela, criando explosões cromáticas que fazem os fogos de artifício parecerem fósforos.

A sua mestria técnica é inegável, mas não é isso que faz dele um artista maior. É a sua capacidade de criar obras que estão simultaneamente profundamente enraizadas na tradição pictórica chinesa e resolutamente contemporâneas. Quando incorpora elementos de caligrafia ou referências às paisagens clássicas chinesas, não o faz para agradar aos conservadores dos museus, mas para criar um diálogo tenso entre passado e presente.

A influência de Francis Bacon é evidente na sua forma de deformar as figuras, mas Jia Aili vai mais longe. As suas personagens não estão simplesmente torturadas, são testemunhas de uma transformação profunda da condição humana na era digital. É como se Foucault tivesse feito aulas de pintura e decidido representar visualmente as suas teorias sobre o poder e a vigilância.

Nas suas obras mais recentes, Jia Aili explora as fronteiras entre a abstração e a figuração com uma audácia que faria tremer Gerhard Richter. As formas geométricas que atravessam as suas telas não são meros exercícios de estilo, são manifestações visuais de uma realidade fragmentada, onde o virtual e o real se confundem numa dança macabra.

O seu estúdio em Pequim tornou-se uma espécie de laboratório onde ele experimenta com diferentes materiais, cinzas, vidro, pigmentos, criando superfícies que desafiam qualquer categorização fácil. É o que Theodor Adorno chamava de negatividade da arte moderna, mas levada ao seu paroxismo no contexto da China contemporânea.

As obras de Jia Aili não estão aí para o confortar ou para decorar as suas paredes. São espelhos deformantes da nossa época, testemunhos visuais de uma civilização que se encontra numa encruzilhada crítica. Como teria dito Roland Barthes, estes quadros são “mitologias” contemporâneas que desconstruem as nossas certezas sobre o progresso, a tecnologia e a humanidade.

A sua série recente de pinturas de montanhas, inspirada nas suas viagens às fronteiras da China, não é um mero exercício de estilo romântico. É uma meditação profunda sobre a noção de limite, de fronteira, num mundo que afirma tê-las abolido. Quando pinta estas massas montanhosas atravessadas por linhas geométricas abstratas, cria uma tensão visual que ecoa as tensões geopolíticas da nossa época.

Há algo profundamente perturbador na forma como Jia Aili mistura referências à história da arte ocidental com elementos da cosmologia chinesa tradicional. É como se Giorgio de Chirico tivesse decidido reinterpretar as paisagens da dinastia Song, mas com uma consciência aguda dos traumas do século XXI.

A arte de Jia Aili resiste a toda forma de encerramento definitivo. Estamos diante de um artista que redefine o que significa ser pintor hoje em dia. Não se trata simplesmente de dominar técnicas ou criar imagens sedutoras. Trata-se de criar obras que nos obrigam a confrontar as contradições e angústias da nossa época. E se isso o incomoda, provavelmente é porque faz parte daqueles que preferem que a arte permaneça calma e decorativa, confinada nos limites reconfortantes da sua zona de conforto burguesa.

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Referência(s)

AILI Jia (1979)
Nome próprio: Jia
Apelido: AILI
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • China

Idade: 46 anos (2025)

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