Ouçam-me bem, bando de snobs. Vou falar-vos de John Coleman, nascido em 1949 no sul da Califórnia, um artista que emergiu como um fenómeno tardio no mundo da arte ocidental americana. Pensam que conhecem a arte contemporânea? Deixem-me contar-vos como este autodidata disléxico revolucionou os códigos da escultura ocidental tradicional.
Enquanto o meio artístico está frequentemente obcecado com a desconstrução e a provocação gratuita, Coleman escolheu um caminho diferente: o da reconstrução memorial e da narração mitológica. A sua primeira temática é a exploração da memória coletiva ameríndia, que aborda não como um observador distante, mas como um mediador cultural. Através dos seus bronzes monumentais, ele não se contenta em representar, ele encarna. Veja “Addih-Hiddisch, Hidatsa Chief”, criado em 2004. Não é simplesmente uma reprodução tridimensional de um chefe ameríndio, é uma tentativa de materialização do imaterial, uma tradução física do espírito de um povo. Coleman insere-se aqui na linha teórica de Walter Benjamin sobre a reprodução mecânica da arte, mas com uma reviravolta contemporânea: ele usa a reprodução (o bronze) para preservar não a aura da obra, mas a aura de uma cultura inteira.
Esta abordagem única da memória cultural manifesta-se também na sua série inspirada nas obras de Karl Bodmer e George Catlin. Ao apropriar-se destas referências históricas, Coleman não se limita a citá-las, ele reinventa-as através do prisma da contemporaneidade. A sua interpretação tridimensional dos documentos históricos transcende a simples reprodução para criar o que Roland Barthes teria chamado um novo “texto” cultural, onde cada dobra de bronze se torna um significante carregado de significado.
Veja também a obra intitulada “The Game of Arrows”. Esta peça não é apenas uma simples representação de um ritual Mandan, é uma meditação sobre a própria transmissão cultural. Coleman aqui ecoa as teorias de Claude Lévi-Strauss sobre a função social do mito, mas invertendo o paradigma: em vez de analisar o mito para compreender a sociedade, ele recria a sociedade para preservar o mito. É brilhante, é audacioso e, acima de tudo, é necessário.
A pesquisa meticulosa que sustenta cada uma das suas obras não é apenas académica. Veja a sua escultura “The Greeter, Black Moccasin Meeting Lewis & Clark” instalada no cemitério Green-Wood no Brooklyn. Esta obra com 80% do tamanho real não é uma simples comemoração histórica. Representa um momento de contacto cultural crucial, mas, mais importante ainda, questiona a nossa forma contemporânea de comemorar e compreender esses momentos históricos. Coleman usa aqui o espaço público não como mero suporte de memória, mas como lugar de diálogo entre passado e presente.
A segunda temática na obra de Coleman é a sua conceção da escultura como uma forma de música silenciosa. Sei, parece absurdo dito assim, mas ouçam-me até ao fim. Em “Visions of Change”, uma obra maior conservada no Tucson Museum of Art, Coleman orquestra uma verdadeira sinfonia visual onde os bisontes e os cavalos criam um ritmo, onde as figuras humanas marcam os tempos fortes, onde os espaços negativos se tornam pausas musicais. É aqui que a sua formação autodidata se torna uma força: não constrangido pelas convenções académicas, ele pode fundir livremente as disciplinas. Susan Sontag falava da necessidade de criar uma erótica da arte em vez de uma hermenêutica, Coleman vai mais longe ao criar uma sinestesia da arte.
Esta abordagem musical da escultura manifesta-se particularmente na sua maneira de tratar o espaço. Coleman não cria simplesmente objetos no espaço, ele compõe com o próprio espaço. As suas esculturas criam aquilo que o filósofo Gaston Bachelard chamaria de “espaços poéticos”, locais onde a matéria e o vazio dançam juntos para criar sentido. Esta coreografia espacial é particularmente evidente nas suas obras de grande escala, onde o espectador é convidado a participar fisicamente nesta dança silenciosa.
O que me agrada em Coleman é que ele transforma as suas limitações em inovações. A sua dislexia levou-o a desenvolver uma leitura puramente visual do mundo, criando assim uma linguagem escultórica única. Quando ele diz “Estou fascinado pela forma como a música pode transmitir um estado de espírito sem palavras”, não está a fazer poesia gratuita, está a definir uma nova gramática artística. Essa gramática articula-se em torno do que eu chamaria uma “sintaxe do silêncio”, onde cada forma, cada textura, cada espaço negativo desempenha o papel de uma palavra numa frase visual.
O seu percurso atípico, pois só começou a esculpir já passado dos quarenta anos, permitiu-lhe escapar aos dogmas académicos que por vezes sufocam a criatividade. Sem as amarras da educação artística tradicional, pôde desenvolver uma abordagem intuitiva mas ainda assim sofisticada da forma. Essa liberdade manifesta-se na sua forma de tratar as superfícies, criando texturas que convidam tanto ao toque como à vista. Há ali algo que recorda as teorias de Maurice Merleau-Ponty sobre a fenomenologia da percepção: a arte de Coleman envolve todo o corpo, não apenas o olho.
Ao contrário de alguns artistas que se limitam a reciclar os clichés sobre o Oeste americano, Coleman cria um diálogo complexo entre passado e presente. As suas obras não são janelas para o passado, mas portais temporais bidireccionais. Tome-se “The Rainmaker”, uma escultura monumental de 5 metros de altura, que não ilustra simplesmente um ritual antigo, questiona sim a nossa relação contemporânea com a espiritualidade e a natureza. Essa obra incorpora o que o historiador de arte Aby Warburg chamava de “Nachleben” ou a sobrevivência das formas antigas na arte contemporânea.
O seu tratamento da história indígena americana vai muito além do mero documento etnográfico. Coleman compreende que a história não é uma série de eventos fixos, mas um processo vivo de negociação entre passado e presente. As suas esculturas funcionam como “lugares de memória”, para usar o conceito de Pierre Nora, espaços onde a memória coletiva se cristaliza e se transforma continuamente.
Seria uma crítica fácil dizer que Coleman romantiza a história indígena americana. Mas é precisamente aí que ele nos apanha: as suas obras não são representações históricas, são meditações sobre a forma como construímos e reconstruímos constantemente a nossa história coletiva. Como teorizou Jacques Rancière, a arte não é tanto uma questão de representação mas sim de “partilha do sensível”, e Coleman redefine literalmente como percebemos e partilhamos a história do Oeste americano.
A sua abordagem da mitologia americana é particularmente sofisticada. Em vez de simplesmente ilustrar mitos, cria o que Joseph Campbell chamaria “mitos vivos”, narrativas que continuam a evoluir e a gerar significado no contexto contemporâneo. As suas esculturas tornam-se assim pontos de convergência onde as mitologias antigas e modernas se encontram e se transformam mutuamente.
Serei franco: Coleman não é um revolucionário que procura destruir convenções artísticas. É algo mais raro e talvez mais precioso: um inovador que expande as possibilidades do meio ao mesmo tempo que permanece ancorado na tradição. O seu trabalho prova que a arte figurativa contemporânea pode ser tão intelectualmente estimulante quanto qualquer instalação conceptual da moda.
Esta inovação manifesta-se particularmente na sua técnica. O seu domínio do bronze não é apenas técnico, é conceptual. Coleman compreende que o bronze não é apenas um material, mas um meio com a sua própria história e implicações culturais. Ele utiliza as propriedades físicas do bronze, a sua durabilidade, a capacidade de captar os detalhes mais finos, a sua pátina mutável, como elementos do seu vocabulário artístico.
O que torna o seu trabalho particularmente relevante hoje é a maneira como aborda a questão da apropriação cultural. Em vez de simplesmente representar a cultura ameríndia, cria um espaço de diálogo intercultural. As suas esculturas não pretendem falar pelos ameríndios, mas sim com eles, estabelecendo o que Homi Bhabha chamaria um “terceiro espaço” de negociação cultural.
A sua capacidade de navegar entre diferentes tradições culturais sem cair numa apropriação cultural superficial é notável. Coleman reconhece abertamente a sua posição de outsider em relação à cultura ameríndia, mas usa essa posição como um ponto de partida para um diálogo respeitoso em vez de uma limitação. Esta abordagem relembra as teorias de Edward Said sobre o orientalismo, mas Coleman evita as armadilhas da exotização, mantendo um equilíbrio delicado entre admiração e distância crítica.
A trajetória artística de Coleman é uma lição de humildade para o mundo da arte contemporânea. Começar uma carreira de escultor depois dos 40 anos, superar a dislexia, construir uma nova linguagem visual, tudo isso sem o apoio do sistema artístico tradicional. O seu sucesso não é apenas uma vitória pessoal, é um desafio lançado aos nossos preconceitos sobre o que constitui um “verdadeiro artista”.
O seu estúdio em Prescott, Arizona, rodeado por uma coleção impressionante de artefactos e envolto em música clássica, não é apenas um local de trabalho. É um laboratório onde a história, a mitologia e a arte contemporânea se encontram e se transformam. Esta abordagem holística à criação artística lembra os ateliês do Renascimento, onde a arte não estava separada da vida quotidiana ou da erudição.
O seu método de trabalho é tão fascinante como as suas obras acabadas. Coleman começa muitas vezes por desenhos preparatórios detalhados, mas estes desenhos não são simples estudos técnicos. São explorações conceptuais que revelam a sua profunda compreensão da forma e do espaço. Esta abordagem lembra os cadernos de Leonardo da Vinci, onde o desenho se torna uma ferramenta de pensamento tanto como de representação.
A influência de Coleman na escultura contemporânea não pode ser subestimada. Como membro e ex-presidente dos Cowboy Artists of America, contribuiu para elevar o nível artístico e intelectual do que antes era considerado um género regional. O seu compromisso em orientar artistas emergentes através do programa dos Cowboy Artists of America demonstra a sua compreensão da importância da transmissão do conhecimento artístico.
A ironia é que Coleman, com a sua abordagem aparentemente tradicional, é na realidade mais “contemporâneo” do que muitos artistas que se reivindicam da vanguarda. Num meio artístico muitas vezes obcecado pela ruptura e pela transgressão, a sua abordagem de continuidade e diálogo é paradoxalmente mais audaz e mais necessária do que nunca. Ele recorda-nos que a verdadeira inovação não consiste em rejeitar o passado, mas em integrá-lo de forma criativa no presente.
O seu trabalho levanta questões fundamentais sobre a natureza da arte contemporânea. O que torna uma obra contemporânea? É a sua data de criação, as suas técnicas, os seus temas? Coleman sugere uma resposta diferente: é a capacidade de uma obra criar um diálogo significativo entre o passado e o presente, entre diferentes culturas e tradições artísticas. Neste sentido, o seu trabalho é profundamente contemporâneo precisamente porque recusa as dicotomias fáceis entre tradição e inovação.
A contribuição mais significativa de Coleman para a arte contemporânea é talvez a sua demonstração de que a tradição pode ser um veículo de inovação. Ao dominar as técnicas tradicionais do bronze e ao usá-las para explorar questões contemporâneas de identidade, memória e cultura, ele cria um novo modelo de prática artística que transcende as categorias habituais da arte “tradicional” e “contemporânea”.
A sua influência continuará sem dúvida a sentir-se nos próximos anos, não apenas no domínio da escultura ocidental, mas na arte contemporânea em geral. John Coleman mostra-nos que é possível criar uma arte que é ao mesmo tempo profundamente enraizada numa tradição e resolutamente voltada para o futuro, uma arte que honra o passado enquanto fala diretamente à nossa época.
















