Ouçam-me bem, bando de snobs, Jonathan Gardner pinta como se tomasse banho de sol em novembro: com uma nãochalance estudada que roça a insolência. Vocês que pensam já ter visto tudo em arte contemporânea, aqui está um artista que joga com a história da arte como uma criança com blocos de construção, exceptuando que as suas torres nunca desabam. Gardner transforma cada tela numa partitura de jazz visual onde as mulheres se tornam notas, os interiores acordes, e o conjunto uma sinfonia de superfícies planas que o chocam com elegância.
No seu atelier em Nova Iorque, Gardner orquestra encenações onde o tempo parou algures entre um salão de cabeleireiro dos anos 1920 e um motel de David Lynch. As figuras femininas que ele expressa estão simultaneamente presentes e ausentes, como manequins de montra que aprenderam a sonhar. Elas fumam, lêem, relaxam em interiores que parecem saídos de um catálogo IKEA revisto por Giorgio de Chirico. É teatro do absurdo pintado com a precisão de um relojoeiro suíço sob ácido.
A psicanálise lacaniana convida-se para estas telas como um convidado inesperado numa garden-party. Os espelhos em Gardner não refletem a realidade, mas fragmentam-na, distorcem-na, reconstruem-na segundo uma lógica que faria inveja ao próprio Jacques Lacan. Em “In the Mirror” (2016), duas mulheres quase idênticas olham-se sem realmente se verem, uma segurando um telefone como uma arma, a outra nua sobre um tapete persa. O espelho torna-se esse “estádio” lacaniano onde o sujeito se constitui na sua própria alienação. Estes duplos femininos encarnam essa divisão fundamental do sujeito entre a sua imagem ideal e o seu ser corporal. O telefone não é um simples acessório, mas um objeto transicional que marca a distância entre o eu e o Outro, entre a palavra e o silêncio. Gardner compreende intuitivamente que a identidade não é mais do que uma construção frágil, um jogo de reflexos onde o desejo circula sem nunca encontrar o seu objeto.
Esta obsessão pelos duplos e reflexos atravessa toda a obra de Gardner como um sintoma que só espera ser interpretado. As mulheres que ele pinta estão sempre à procura de si próprias em espelhos que lhes devolvem apenas fragmentos de si mesmas. É o desconhecimento lacaniano no estado puro: estas figuras acreditam reconhecer-se no seu reflexo, mas captam apenas uma imagem alienante. O olhar do espectador torna-se cúmplice desta encenação do inconsciente, onde cada detalhe é um significante que remete para outro significante, numa cadeia sem fim. Gardner não pinta mulheres, pinta o desejo de pintar mulheres, e essa nuance faz toda a diferença.
Virginia Woolf teria adorado estes interiores onde as mulheres parecem flutuar na sua própria consciência como peixes num aquário. Tal como em “To the Lighthouse”, as personagens de Gardner habitam mais espaços mentais do que físicos, onde o tempo decorre de forma diferente. Estas mulheres que lêem, que fumam, que contemplam o vazio recordam Mrs. Dalloway a organizar a sua receção enquanto navega nos meandros da sua memória. Gardner capta o que Woolf chamava “os momentos de ser”, esses instantes suspensos onde a consciência aflorar à superfície do quotidiano.
Os interiores de Gardner são fluxos visuais de consciência onde os objetos se tornam pensamentos e as cores emoções. Tal como em Woolf, a narração é fragmentada, não linear, cada quadro oferecendo uma perspetiva diferente sobre o mesmo momento psicológico. Os motivos repetitivos, as formas geométricas funcionam como as frases recorrentes nos romances de Woolf, criando um ritmo hipnótico que conduz o espectador a uma meditação sobre o tempo e a perceção. As mulheres de Gardner parecem todas ter “um quarto próprio”, mas esses quartos são prisões douradas onde elas são simultaneamente sujeito e objeto da sua própria contemplação.
O que me interessa em Gardner é a forma como ele transforma cada cena doméstica num teatro metafísico. Em “The Model” (2016), uma mulher posa para um pintor invisível, criando uma mise en abyme vertiginosa onde o quadro que vemos contém o quadro em processo de ser feito. É Velázquez revisto por um millennial que teria visto demasiado o Instagram.
A técnica de Gardner é impecável, quase irritante na sua perfeição. As áreas de cor são tão lisas que parecem ecrãs de smartphone, os seus contornos tão nítidos que poderiam cortar vidro. Mas esta aparente frieza esconde uma sensualidade perturbadora, como aquelas mulheres que fumam os seus cigarros com uma indiferença estudada. O paradoxo de Gardner é que pinta a intimidade com a distância de um cirurgião e a paixão com a precisão de um contabilista.
“Banhista com Toalha Amarela” (2016) mostra-nos uma banhista que se assemelha a uma figura egípcia passada pelo micro-ondas. Os pés estão plantados segundo os cânones da arte antiga, mas o corpo está torcido numa pose que desafia as leis da anatomia. É Ingres sob LSD, Gauguin que teria feito um estágio na Apple. Gardner não procura representar o real, mas reconfigurá-lo segundo a sua própria gramática visual.
O artista transforma cada tela num puzzle sofisticado onde os elementos encaixam com uma precisão maníaca. Em “Zig Zag” (2014), três mulheres descansam sobre um tapete azul-céu, uma topless, outra sem cuecas, a terceira a fumar o seu cigarro como se nada fosse. É uma cena de praia transposta para uma sala de estar, ou talvez o inverso. Gardner desfoca as pistas com uma júbilo evidente.
O que é notável em Gardner é a sua capacidade de fazer conviver o erotismo e a distância, a sensualidade e a abstração. Os seus nus nunca estão realmente nus, estão sempre vestidos com uma camada de tinta que os torna intocáveis. É uma arte que o observa mais do que se deixa ver, que o interroga sobre a sua própria posição de voyeur.
As influências de Gardner são um quem é quem da arte moderna: Picasso, Matisse, Léger, Magritte [1]. Mas ao contrário de tantos artistas contemporâneos que citam os seus mestres como se citassem a Wikipédia, Gardner digere as suas influências até as tornar irreconhecíveis. Ele não faz pastiche, faz alquimia. A sua arte é uma conversa com a história, não uma aula de história.
Em “Desert Wind” (2019), uma guitarrista solitária toca para um público invisível, posicionada de forma descentralizada com um horizonte torcido em plano de fundo. É um Edward Hopper revisto por alguém que teria crescido com os Sims. Gardner domina esta arte da solidão povoada, onde as personagens parecem estar sempre noutro lugar mesmo quando estão presentes.
O próprio artista permanece misterioso, quase invisível por trás da sua obra. Nascido em 1982 no Kentucky, formado em Chicago sob a tutela de Jim Nutt, membro do movimento dos Chicago Imagists [2], Gardner pertence a esta geração de artistas que cresceram com a Internet mas pintam como se o mundo digital não existisse. A sua proeza está aqui: usar as ferramentas mais tradicionais para criar imagens resolutamente contemporâneas.
Em “The Ballroom” (2019), seis figuras partilham o mesmo espaço sem se encontrarem verdadeiramente. Cada uma está perdida nos seus pensamentos enquanto a música toca. É uma metáfora perfeita do nosso tempo: juntos, mas sozinhos, conectados mas isolados. Gardner pinta a alienação moderna com as cores da felicidade.
A exposição “Desert Wind” na galeria Casey Kaplan foi uma lição de pintura disfarçada de sonho acordado. Cada tela funcionava como um enigma visual onde as pistas não conduziam a lado nenhum, onde as perguntas permaneciam sem resposta. Talvez esta seja a definição de arte contemporânea: colocar perguntas que não se pretende resolver.
Gardner pertence a esta nova vaga de pintores figurativos que decidiram que a abstração já teve o seu tempo. Mas a sua figuração não é um retrocesso, é um salto em frente disfarçado de passo para o lado. Ele pinta figuras que parecem abstrações e abstrações que parecem figuras. É um trompe-l’oeil conceptual.
O que é interessante em Gardner é a sua capacidade de criar imagens que parecem familiares mas que são profundamente estranhas. Os seus interiores parecem cenários de cinema, as suas personagens são como atores que teriam esquecido o seu texto. Está tudo no lugar para uma história que nunca começa verdadeiramente.
O artista trabalha lentamente, para grande desalento das suas galerias [4]. Mas essa lentidão é necessária: cada quadro é uma construção meticulosa onde nada é deixado ao acaso. Gardner não pinta, ele constrói. As suas composições são planos de arquitecto para edifícios mentais que nunca existirão.
Num mundo onde tudo vai rápido demais, onde as imagens passam à velocidade da luz nos nossos ecrãs, Gardner oferece-nos paragens de imagem que duram uma eternidade. Os seus quadros são refúgios para o olhar cansado, oásis de calma no deserto da sobrecarga visual. Gardner é talvez o artista de que precisamos sem o saber. Ele relembra-nos que a pintura ainda pode surpreender-nos, desestabilizar-nos, encantar-nos. Num mundo obcecado pelo novo, prova que o antigo pode ser radical. Numa época que valoriza a velocidade, ela celebra a lentidão. Numa cultura que privilegia o grito, escolhe o sussurro.
Então sim, Gardner pinta como se apanhasse banho de sol em novembro. Mas talvez seja exatamente isso que precisamos: um pouco de calor num mundo que arrefece, um pouco de cor numa paisagem que se torna cinzenta, um pouco de sonho numa realidade que se assemelha cada vez mais a um pesadelo climatizado.
- Julia Wolkoff, “Jonathan Gardner,” ARTnews, 2016.
- “Jonathan Gardner CV,” Jason Haam Gallery, 2024.
- “Jonathan Gardner Artist Biography,” Artsy.
- Michael Herh, “Interview with artist Jonathan Gardner,” Business Korea, 2021.
















