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Ju Ting : A profundidade sob o epiderme

Publicado em: 10 Novembro 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 12 minutos

Ju Ting constrói arquiteturas pictóricas monumentais ao sobrepor dezenas de camadas de acrílico em painéis de madeira, depois os incide, rasga ou golpeia para revelar a complexidade cromática oculta. Esta artista de Pequim questiona as relações entre superfície e estrutura, acumulação e destruição, ocultação e revelação.

Ouçam-me bem, bando de snobs : o que Ju Ting realiza no seu atelier em Pequim merece mais do que as vossas acenações polidas perante essas superfícies estilhaçadas que qualificam demasiado rapidamente como “abstração contemporânea”. Esta mulher nascida em 1983 na província de Shandong não se limita a maltratar o acrílico em tábuas de madeira. Ela opera uma cirurgia da aparência que revela, sob o bisturi ou o martelo, a verdade estratificada da nossa condição moderna.

Formada no departamento de gravura da Academia Central de Belas Artes de Pequim, licenciada em 2007 e depois titular de um mestrado em 2013, Ju Ting nunca abandonou completamente o universo da estampa. Os seus gestos artísticos carregam a memória da prensa, do buril, dessa paciência mineral que a gravura exige. Só que, em vez de gravar o cobre, ela recorta a acumulação da própria tinta. Em vez de imprimir tinta no papel, ela transforma o quadro num volume que quase se pode agarrar com as mãos abertas. As suas séries Pearl, +-, Untitled, Amber, ou ainda Deep Waters Run Quiet são testemunho de uma pesquisa metódica sobre o que a pintura pode tornar-se quando recusa ser apenas uma superfície.

O arquiteto alemão Gottfried Semper escrevia em Der Stil, em 1860, que a origem da arquitetura residia no têxtil, nessa Bekleidung, este “revestimento” ou “vestimenta”, que envolve e define o espaço mesmo antes da estrutura portante [1]. Para Semper, a parede (Wand) e a vestimenta (Gewand) partilham uma etimologia comum, e essa parentalidade linguística não é fortuita: ambos ocultam, protegem, revelam e mascaram simultaneamente. A essência da arquitetura não estaria, portanto, na estrutura óssea, mas nesta pele que a cobre e a significa. Ora, o trabalho de Ju Ting interroga precisamente essa dialética de Semper do velamento e do desvelamento. Cada camada de acrílico que ela aplica nos seus painéis de madeira constitui um novo revestimento, uma estrato adicional que se acrescenta à memória cromática da obra. Estas camadas sucessivas não são simples adições: criam uma arquitetura da cor onde cada nível se torna simultaneamente estrutura e ornamento, suporte e superfície.

Quando Ju Ting incide a sua série Pearl, ela não destrói: ela despe a pele. Ela retira as camadas superficiais para expor as profundezas ocultas, exatamente como Semper teorizava que o ornamento arquitetónico devia revelar a verdade construtiva ao mesmo tempo que a transfigurava. Na série Pearl, as incisões delicadas traçam sulcos que desnudam as camadas inferiores. A artista não se limita a aplicar tinta; ela constrói uma muralha pigmentada que decide depois perfurar, fender ou abrir. Este gesto recorda a forma como o arquiteto deve gerir a tensão entre o núcleo estrutural e a forma artística do revestimento. Ju Ting trabalha essa mesma tensão: as suas obras possuem uma profundidade física que as aproxima da escultura, mas mantêm a frontalidade pictórica. São muros-pinturas, Wände-Gewände onde a cor se faz arquitetura e a arquitetura se faz ornamento.

A série +- leva essa lógica ainda mais longe ao jogar com a oposição espacial. As faixas verticais que ela recorta na matéria pictórica criam ritmos que evocam os canelados de uma coluna antiga ou as dobras de uma tapeçaria. Semper insistia no fato de que o têxtil, com suas propriedades de dobra e drapeado, informava profundamente a concepção espacial. As fendas verticais de Ju Ting funcionam como dobras invertidas: em vez de criar ondulações pela adição de matéria, ela gera relevo pela subtração. É um Bekleidung ao contrário, uma despida calculada que expõe a complexidade cromática enterrada. Cada fissura torna-se uma janela aberta para o interior estratificado da obra, transformando a superfície numa fachada perfurada onde se pode observar a espessura temporal do processo criativo.

Na série Untitled, Ju Ting intensifica o seu método destrutivo. Ela arranca, rasga, dobra amplos painéis de pintura solidificada, criando composições onde a violência do gesto contrasta com a sensualidade dos tons revelados. Estas obras parecem edifícios de cuja fachada foi arrancada para mostrar as camadas coloridas que os constituem. Semper afirmava que a arquitetura atinge sua forma estética quando o elemento de cobertura se destaca de sua base material para se tornar um fenómeno estético autónomo. Ju Ting inverte esse processo: ela destaca fisicamente o revestimento pictórico, mas ao fazê-lo, não o afasta da sua base material, pelo contrário, ela revela que a própria base não é senão camadas adicionais, que toda profundidade é apenas acumulação de superfícies. Não há nenhum núcleo estrutural escondido sob o ornamento; há apenas ornamento em toda a extensão, desde o epiderme estratificada até ao suporte lenhoso.

Esta concepção arquitectónica da pintura atinge o seu auge na instalação Winter is Coming (凛冬将至), apresentada em 2021 na galeria Urs Meile em Pequim. A obra maciça, composta por dezasseis painéis montados, foi criada in situ segundo um protocolo rigoroso: Ju Ting sobrepôs centenas de camadas de acrílico num espaço aquecido, depois expôs o conjunto ao frio para endurecer a matéria antes de a golpear com martelos. O resultado é uma superfície dourada quebrada, cheia de crateras e fissuras que deixam entrever as camadas cromáticas subjacentes. Esta obra encarna perfeitamente a teoria de Semper: a douradura superficial atua como um Gewand luxuoso, uma veste de riqueza e poder, que os golpes do martelo rasgam para revelar a complexidade estrutural oculta. Ju Ting não constrói um muro para depois o cobrir de ornamentos; ela faz da sucessão dos ornamentos a estrutura mesma do muro. A sua arquitectura cromática não conhece a dicotomia entre estrutura e revestimento: nela, o revestimento é a estrutura, e a estrutura existe apenas como sedimentação de revestimentos.

Mas o trabalho de Ju Ting não se limita a esta dimensão arquitectónica. Ela explora também uma topografia psíquica que lembra as teorias freudianas sobre a estratificação do espírito humano. Sigmund Freud, no seu modelo topográfico do aparelho psíquico elaborado no final do século XIX, propôs uma conceção em camadas da consciência: o consciente, acessível e visível; o pré-consciente, recuperável mas temporariamente oculto; e o inconsciente, profundamente enterrado, reprimido, resistente à emergência. Esta arquitectura mental encontra uma ressonância perturbadora na metodologia de Ju Ting. Cada camada de pintura que ela aplica pode ser lida como uma estrato temporal da experiência, cada nova aplicação cobrindo e reprimindo a anterior na escuridão do interior pictórico.

A série Pearl ilustra perfeitamente este mecanismo psicanalítico do enterramento e da ressurgência. Ju Ting sobrepõe meticulosamente as suas camadas de acrílico monocromático, encerrando cada tonalidade sob a seguinte, exatamente como o psiquismo reprime progressivamente as memórias, os traumas, os desejos nas profundezas do inconsciente. Depois, armada com o seu cutelo, pratica o que Freud chamaria de “levanta do recalcamento”: ela incide a superfície, abre brechas no consciente para permitir que o reprimido suba. Os filamentos coloridos que ela levanta e expõe são como formações sintomáticas, retornos do reprimido que surgem à superfície apesar dos mecanismos de defesa. A própria artista torna-se analista da sua própria criação, vasculhando as camadas para exumar o que tinha sido intencionalmente enterrado sob o peso das aplicações sucessivas.

Esta leitura psicanalítica intensifica-se quando se consideram as palavras da própria artista. Numa entrevista em 2021, Ju Ting explicava que, ao golpear os painéis de Winter is Coming, havia reencontrado “a rapariga rebelde” enterrada nela desde a infância [2]. Esta declaração revela uma dimensão autoanalítica do processo criativo: o ato de destruir a superfície dourada e lisa, aquela da “menina bem comportada” que ela deveria encarnar, liberta uma parte reprimida da sua personalidade, uma violência e uma liberdade há muito contidas. O martelo torna-se o instrumento de uma psicanálise gestual, e cada golpe que quebra a fachada dourada faz emergir não só as cores escondidas, mas também as partes obscuras do eu.

A série Untitled leva esta lógica ainda mais longe ao abolir a ordem cronológica das camadas. Ju Ting explica numa entrevista de 2019: “A série Untitled dispersa esta sequência. Retiro amostras do meio e reorganizo-as” [3]. Esta desestruturação temporal evoca o funcionamento mesmo do inconsciente freudiano, onde o tempo linear não existe, onde passado e presente coexistem sem hierarquia. Ao arrancar e dobrar os pedaços de pintura endurecida, ao dispô-los sem respeitar a ordem da sua aplicação, Ju Ting cria superfícies que se assemelham a mapas do inconsciente: territórios onde diferentes estratos temporais afloram simultaneamente, onde o reprimido antigo convive com as defesas recentes numa configuração nova e perturbadora.

As grandes rasgaduras da série Untitled evocam também os traumas que fissuram a coerência do eu. Freud descrevia o trauma como uma violenta violação das barreiras protetoras do psiquismo, deixando marcas duradouras na estrutura mental. Os arrancamentos violentos que Ju Ting inflige às suas superfícies pictóricas podem ser lidos como representações de tais violações: a coerência superficial é brutalmente rompida, expondo as profundezas vulneráveis. Mas, ao contrário do trauma patológico, estas feridas pictóricas são criadoras: geram novas configurações estéticas, transformam a destruição em oportunidade de revelação. A artista domina e teatraliza o trauma, convertendo-o em fonte de beleza em vez de fonte de sofrimento.

A paleta cromática de Ju Ting reforça esta leitura psicanalítica. As suas cores, esses verdes ácidos, esses violetas profundos, esses amarelos cádmio ou esses azuis cobalto, não são escolhidos pela sua harmonia convencional. Evocam antes a intensidade emocional dos afetos inconscientes: a carga libidinal, a angústia, o desejo e a raiva. Quando estas tonalidades surgem sob as incisões da artista, parecem portadoras de uma energia psíquica contida, como se cada camada enterrada tivesse mantido intacta a sua carga afetiva. A justaposição brutal de tonalidades contrastantes nas séries +- e Untitled cria uma tensão visual que imita a conflictualidade inerente ao psiquismo humano, onde pulsões contraditórias se confrontam sem resolução possível.

A mais recente série Amber (2022-2025) introduz uma dimensão adicional a esta exploração psicanalítica: a da fossilização e da conservação. O âmbar, esta resina vegetal que aprisiona e preserva fragmentos do passado, torna-se metáfora da memória inconsciente. Freud insistia no facto de que nada se perde realmente no inconsciente, que tudo permanece preservado, disponível para uma eventual ressurgência. As obras da série Amber, com as suas superfícies translúcidas e os seus motivos geométricos que criam efeitos óticos de refração, evocam precisamente este processo de conservação transparente. As camadas cromáticas, visíveis por transparência sob a superfície, são como memórias acessíveis mas deformadas pelos prismas da memória e da defesa psíquica.

A prática de Ju Ting inscreve-se assim numa dupla filiação: arquitetónica e psicanalítica, sempériana e freudiana. Ela constrói edifícios cromáticos segundo os princípios da Bekleidung, para depois submetê-los a uma análise destrutiva que revela a sua estrutura estratificada. As suas obras são simultaneamente edifícios e psicologias, fachadas e profundidades, superfícies e abismos. Esta dualidade conceptual confere ao seu trabalho uma riqueza teórica que ultrapassa largamente o âmbito da abstração pictórica convencional.

Seria redutor classificar Ju Ting entre os abstracionistas chineses da sua geração sem reconhecer a especificidade radical da sua abordagem. Sim, ela participou em exposições coletivas maiores, “Painting and Existence: Chinese, Japanese, and Korean Abstract Painting” em 2020 e “The Logic of Painting” em 2021, e as suas obras figuram em coleções prestigiadas como o Museu Nacional de Arte da China em Pequim, a White Rabbit Gallery em Sydney, ou o Arario Museum em Seul. Mas o que distingue o seu trabalho do dos seus contemporâneos é precisamente esta dupla inscrição teórica que tentei esclarecer. Onde outros exploram a cor em si ou a gestualidade pela sua dinâmica, Ju Ting constrói um sistema conceptual coerente que articula arquitetura e psicanálise, superfície e profundidade, revelação e dissimulação.

O seu processo de trabalho, que ela descreve como quase burocrático, “朝九晚五” (nove horas-dezessete horas), como um emprego de escritório [4], contrasta radicalmente com a imagem romântica da artista inspirada. Esta disciplina diária não é inocente: permite o acúmulo paciente das camadas, essa sedimentação temporal que constitui o próprio material da sua exploração. Cada sessão de trabalho acrescenta uma camada ao “muro” pictórico, e é só depois de semanas ou meses de acumulação que pode ocorrer o momento crítico da incisão ou da destruição. Esta temporalidade longa, herdada da sua formação em gravura, opõe-se à imediaticidade gestual do expressionismo abstrato ocidental. Ju Ting não procura o instante da inspiração; ela cultiva a paciência geológica, aquela que permite às camadas solidificar-se, formar uma massa coerente que será possível interrogar, partir, revelar.

A dimensão feminista do seu trabalho, embora a artista não a reivindique explicitamente, merece também ser destacada. Enquanto mulher artista no contexto chinês contemporâneo, Ju Ting faz parte de uma geração que procura afirmar uma subjetividade feminina num discurso artístico durante muito tempo dominado pelos homens. O texto de acompanhamento da sua exposição Amber na galeria Urs Meile observa que ela se insere num “diálogo silencioso com as artistas femininas históricas que desafiaram o discurso artístico dominado pelo patriarcado”. A sua prática da estratificação e da revelação pode ser lida como uma metáfora das camadas sociais e psicológicas que as mulheres têm de negociar na sua construção identitária. As violências controladas que ela inflige às suas superfícies, as incisões, as rasgadelas e os golpes de martelo, podem também ser interpretadas como uma libertação das frustrações e das restrições impostas pelas normas sociais.

O mercado internacional de arte começou a reconhecer a singularidade de Ju Ting. As suas exposições individuais nos espaços da galeria Urs Meile, em Lucerna em 2018 e 2021 e em Pequim em 2019 e 2021, testemunham uma visibilidade crescente no Ocidente. Mas para além do sucesso comercial, é a coerência do seu percurso que impressiona: desde as suas primeiras explorações semi-figurativas de 2013 até às monumentais instalações de 2021, passando pelo refinamento técnico das séries Pearl e Amber, Ju Ting não cessou de aprofundar o mesmo sulco conceptual. Cada nova série não é uma ruptura mas um desenvolvimento orgânico, “como o bambu que cresce por nós sucessivos”, segundo a sua própria metáfora. Esta fidelidade a uma pesquisa única, levada a cabo com rigor e sem compromissos, faz dela muito mais do que uma artista na moda: uma pesquisadora obstinada das possibilidades ainda inexploradas da pintura.

Vivemos numa época em que a arte contemporânea se dispersa em mil direções, onde cada artista parece querer inventar ex nihilo a sua própria linguagem sem referência à história. Ju Ting, ao contrário, inscreve-se conscientemente em filiações teóricas profundas, aquela de Semper, a de Freud, mas também a, mais específica, da tradição chinesa da estratificação e do refinamento paciente. O seu ateliê pequinês torna-se o lugar de uma síntese improvável entre pensamento ocidental e prática oriental, entre teoria arquitetónica do século XIX e psicanálise vienense, entre disciplina artesanal da gravura e liberdade gestual da destruição. Esta capacidade de hibridar fontes díspares sem as trair, de construir pontes conceptuais sem sacrificar o rigor, faz de Ju Ting uma figura maior da arte contemporânea chinesa.

As suas obras continuarão a desafiar as nossas categorias habituais. Pintura ou escultura? Arquitectura ou psicanálise? Construção ou destruição? Superfície ou profundidade? Ju Ting recusa essas dicotomias. Ela obriga-nos a pensar a complexidade, a aceitar que a arte possa ser simultaneamente várias coisas contraditórias, que a criação possa nascer tanto da acumulação paciente como da violência libertadora. Num panorama artístico frequentemente dominado pelo espetacular e pelo imediato, ela propõe uma temporalidade diferente, aquela da sedimentação geológica e da escavação arqueológica. Ela recorda-nos que sob toda superfície se escondem profundezas insuspeitadas, que por trás de cada fachada lisa se ocultam camadas de memória, de trabalho e de tempo acumulado. E que o ato artístico mais fecundo consiste talvez precisamente em revelar essas profundezas ocultas, em rasgar os véus para expor a verdade estratificada que jaz por baixo.


  1. Gottfried Semper, Der Stil in den technischen und tektonischen Künsten oder praktische Ästhetik, München, 1860-1863.
  2. “鞠婷个展”咚!咚!”开幕现场” (A abertura da exposição pessoal de Ju Ting “Dong! Dong!”), Artron Art News, 6 de dezembro de 2021.
  3. “鞠婷个展”鳞”开幕现场” (A abertura da exposição pessoal de Ju Ting “Écailles”), Artron Art News, 27 de setembro de 2019.
  4. Idem
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Referência(s)

JU Ting (1983)
Nome próprio: Ting
Apelido: JU
Outro(s) nome(s):

  • 鞠婷 (Chinês simplificado)

Género: Feminino
Nacionalidade(s):

  • China

Idade: 42 anos (2025)

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