Ouçam-me bem, bando de snobs. Na febre artística dos anos 1980, enquanto o minimalismo dominava ainda a cena nova-iorquina com a sua rigidez ascética, Julian Schnabel irrompeu no mundo da arte com uma intensidade sísmica que ainda hoje ressoa. As suas obras monumentais, superfícies partidas e gestos pictóricos desmesurados perturbam os códigos estabelecidos com uma audácia que desafia ainda a nossa compreensão convencional da arte.
Nascido no Brooklyn em 1951, este artista prolífico sempre reivindicou a sua singularidade com uma confiança desconcertante. Alguns viram-lhe arrogância, outros génio. Mas para além das controvérsias que marcaram a sua carreira, Schnabel encarna uma forma rara de liberdade criativa, a de um artista que se recusa obstinadamente a conformar-se às expectativas. Num mundo da arte frequentemente prisioneiro das suas próprias convenções, escolheu o caminho da experimentação radical, empurrando constantemente os limites do possível.
Suas famosas “plate paintings”, essas pinturas cobertas de fragmentos de louça quebrada que ele começa a produzir em 1978, marcam uma virada decisiva na história da arte contemporânea. Essas obras não são apenas uma simples inovação técnica ou um gesto iconoclasta. Elas representam uma verdadeira ruptura filosófica com a tradição pictórica, evocando o conceito bergsoniano de duração pura. Henri Bergson, em seu “Ensaio sobre os dados imediatos da consciência”, desenvolve a ideia de que o verdadeiro tempo não é aquele, homogêneo e divisível, dos relógios, mas aquele, heterogêneo e contínuo, da consciência. As superfícies fragmentadas de Schnabel, em sua materialidade mesma, incorporam essa temporalidade estilhaçada onde cada instante conserva a marca dos anteriores ao mesmo tempo que se abre para o futuro.
A superfície acidentada dessas obras cria uma topografia complexa onde a luz dança e se refrata, gerando uma experiência visual que ultrapassa a simples contemplação para se tornar uma verdadeira exploração sensorial. Os fragmentos de porcelana, com seus ângulos vivos e suas superfícies brilhantes, criam um jogo infinito de reflexos e sombras que transforma cada pintura em uma paisagem dinâmica, que muda conforme o ângulo de visão e a intensidade luminosa. Essa dimensão física da obra não é sem lembrar as reflexões de Maurice Merleau-Ponty sobre a fenomenologia da percepção. Em “O Olho e o Espírito”, o filósofo insiste na importância do corpo na nossa relação com o mundo e a arte. As pinturas de Schnabel, por sua presença imponente e materialidade exacerbada, engajam precisamente esse diálogo corporal com o espectador.
Essa abordagem encontra um eco particular em sua série dos anos 1990 pintada sobre lonas militares recuperadas. O artista sobrepõe camadas de pintura sobre esses suportes já marcados pelo tempo e pelo uso, criando assim testemunhos visuais contemporâneos onde o passado e o presente se misturam inextricavelmente. Essas telas carregam em si uma história anterior à intervenção do artista, vestígios de usos militares ou industriais que transparecem sob as camadas de tinta. Schnabel não busca apagar essas marcas pré-existentes, mas, ao contrário, as integra à sua composição, criando um diálogo complexo entre a memória do material e o ato pictórico.
O uso de lonas militares não é casual. Esses materiais, concebidos para a guerra e a proteção, são desviados de sua função primeira para se tornar o suporte de uma expressão artística. Esse gesto de transformação lembra a noção alquímica de transmutação, onde a matéria vil é convertida em ouro filosofal. Schnabel realiza uma transformação similar, elevando materiais utilitários ao patamar de obras de arte. Essa abordagem insere-se em uma longa tradição de reapropiação artística, ao mesmo tempo que a leva a novos territórios de expressão.
Os anos 1990 marcam também um período de intensa experimentação com outros materiais não convencionais. O veludo, em particular, torna-se um suporte privilegiado para Schnabel. A textura profunda e absorvente desse material lhe permite explorar novas possibilidades pictóricas. A pintura, dependendo se é aplicada na superfície ou se penetra as fibras, cria efeitos de profundidade e luminosidade impossíveis de obter numa tela tradicional. Essas obras sobre veludo revelam um domínio excepcional da luz e da escuridão, onde as figuras parecem emergir das trevas como aparições espectrais.
Esta busca constante de novos suportes e novas técnicas testemunha uma insatisfação fundamental face aos limites da pintura tradicional. Schnabel nunca se contenta com as soluções estabelecidas. Cada série de obras representa uma nova tentativa de ultrapassar as fronteiras do possível, de inventar uma nova linguagem pictórica. Esta busca incessante não deixa de lembrar a dos alquimistas medievais, que procuravam transformar continuamente a matéria enquanto se transformavam a si próprios no processo.
Os retratos realizados por Schnabel constituem um capítulo particularmente interessante da sua obra. Quer se trate de figuras históricas ou contemporâneas, o artista consegue captar não tanto a aparência física, mas a essência espiritual dos seus sujeitos. Estes retratos não visam a semelhança fotográfica, mas sim revelar uma verdade interior, uma presença que transcende a simples representação. Nessas obras, Schnabel muitas vezes combina diferentes técnicas e materiais, criando superfícies complexas que parecem vibrar com uma energia própria.
Esta abordagem do retrato encontra uma extensão natural no seu trabalho como cineasta. Os seus filmes, nomeadamente “Basquiat” (1996) e “O Escafandro e a Borboleta” (2007), revelam a mesma sensibilidade à presença humana, o mesmo desejo de ultrapassar as aparências para alcançar uma verdade mais profunda. Esta capacidade de navegar entre diferentes meios artísticos testemunha uma visão criativa que transcende as categorias tradicionais.
Os anos 2000 veem Schnabel explorar novos territórios com as suas pinturas em superfícies impressas. Utilizando reproduções de fotografias ou padrões pré-existentes como base, ele cria obras que jogam com a tensão entre a imagem mecânica e o gesto pictórico. Estes trabalhos questionam a própria natureza da imagem na nossa sociedade contemporânea, reafirmando simultaneamente a primazia do gesto artístico.
Este período vê também o artista desenvolver uma série de obras monumentais que ultrapassam ainda mais os limites da escala. Estas pinturas, algumas das quais atingem dimensões arquitetónicas, criam ambientes imersivos que transformam radicalmente a experiência do espectador. A escala não é aqui um simples efeito de grandiloquência, mas participa plenamente do impacto emocional da obra.
Os críticos muitas vezes reprovaram a Schnabel a sua ambição desmesurada, o seu ego sobredimensionado. Mas não é precisamente esta desmesura que confere à sua obra o seu poder singular? Num mundo da arte por vezes paralisado pelo cinismo e pelo cálculo, Schnabel mantém uma fé quase ingénua no poder da pintura para transformar a nossa perceção do real. Esta fé manifesta-se em cada aspeto da sua prática, desde as escolhas de materiais às decisões de composição.
A escala monumental das suas obras, longe de ser gratuita, contribui plenamente para o seu impacto emocional. Frente a estas pinturas que muitas vezes excedem a escala humana, o espectador experimenta fisicamente a sua própria finitude. Este confronto com o sublime, no sentido kantiano do termo, provoca um vertigem que é também um convite para transcender os nossos habituais limites perceptivos. Os grandes formatos de Schnabel não são uma simples demonstração de poder, mas criam um espaço de contemplação onde o espectador pode perder-se e reencontrar-se.
As obras recentes de Schnabel demonstram que a sua criatividade permanece intacta. As suas experimentações com novos materiais e técnicas, nomeadamente as suas pinturas sobre poliéster impresso, atestam uma curiosidade inesgotável. O artista continua a explorar novas possibilidades técnicas enquanto mantém essa intensidade emocional que caracteriza toda a sua obra. As suas pinturas mantêm essa capacidade rara de nos surpreender, de nos destabilizar, de nos fazer duvidar das nossas certezas estéticas.
Se a história da arte do século XX pode ser vista como uma sucessão de rupturas e questionamentos, Schnabel ocupa um lugar à parte nesta genealogia. A sua obra não se inscreve numa progressão linear, mas cria antes curto-circuitos temporais, fazendo dialogar tradição e inovação numa síntese pessoal única. Ele busca livremente na história da arte, mantendo uma visão resolutamente contemporânea.
Essa liberdade face à história manifesta-se particularmente na sua forma de tratar a superfície pictórica. Schnabel não hesita em combinar técnicas tradicionais com materiais contemporâneos, criando obras que desafiam categorizações simples. Esta abordagem híbrida produz pinturas que parecem existir fora do tempo, ao mesmo tempo que estão profundamente ancoradas na nossa época.
A questão da temporalidade é central na obra de Schnabel. As suas pinturas, quer sejam feitas em lonas gastas, pratos partidos ou veludo, trazem sempre vestígios de uma história. Não é apenas a história dos próprios materiais, mas também a da pintura enquanto meio. Cada obra parece conter em si várias temporalidades que se sobrepõem e entrelaçam.
Esta complexidade temporal encontra-se também na sua prática no cinema. Os seus filmes, tal como as suas pinturas, jogam com diferentes camadas de tempo e memória. Quer se trate da vida de Jean-Michel Basquiat ou da experiência de Jean-Dominique Bauby em “O Escafandro e a Borboleta”, Schnabel cria obras que transcendem a simples narração linear para alcançar uma verdade mais profunda.
O que impressiona na carreira de Julian Schnabel é a sua capacidade de manter, ao longo de mais de quatro décadas, uma intensidade criativa que não enfraquece. Num mundo da arte frequentemente dominado por efeitos de moda e estratégias de marketing, ele continua a produzir uma obra profundamente pessoal que não faz qualquer concessão às expectativas do mercado ou da crítica.
Os detratores de Schnabel reprovar-lhe o seu recuso às convenções, o seu gosto pelo espetacular, a sua propensão a trabalhar em formatos desmedidos. Mas não é precisamente essa capacidade de ultrapassar limites que faz a grandeza da sua obra? Num tempo marcado pelo conformismo e pela padronização, a sua intransigência criativa aparece como um ato de resistência necessário.
A obra de Julian Schnabel recorda-nos que a verdadeira arte nasce sempre de uma necessidade interior, de uma urgência que transcende considerações de estilo ou mercado. A sua pintura, na sua própria grandiosidade, constitui um testemunho essencial sobre as possibilidades da arte na nossa época. Mostra-nos que ainda é possível, hoje, criar obras que nos comovem e nos transformam, obras que dão forma ao invisível e voz ao indizível. Pela sua capacidade única de transcender as fronteiras entre os meios, pela sua audácia formal e pela sua constante reinvenção, Julian Schnabel já se inscreve na história como um dos artistas maiores do século XXI, um criador cuja influência continuará a ressoar muito para além do nosso tempo.
















