Ouçam-me bem, bando de snobs : se ainda procuram certezas na arte contemporânea, sigam outro caminho. Karin Kneffel não está aqui para vos consolar com verdades tranquilizadoras sobre aquilo que acreditam ver. Esta mulher de 68 anos, antiga aluna de Gerhard Richter, passou as últimas quatro décadas a construir um corpo pictórico que atua como um veneno lento contra os nossos hábitos visuais. As suas telas hiper-realistas não são janelas para o mundo, mas espelhos deformantes que nos devolvem a imagem da nossa própria incapacidade de distinguir o autêntico do falso.
“O meu interesse em criar arte é produzir um sentimento de dúvida, algo que ainda não consegui realmente alcançar” [1]. Esta declaração da artista ressoa como um manifesto. Kneffel não pinta para revelar, mas para perturbar. As suas composições são “impossibilidades perfeitamente construídas” que colapsam “lugares e incidentes heterogéneos” [1]. Eis uma pintora que assume plenamente a natureza fictícia do seu meio enquanto explora o seu poder representacional. Esta tensão constitui o núcleo nervoso do seu trabalho.
A arquitetura do olhar
A obra de Kneffel mantém uma relação complexa com a arquitetura moderna, particularmente visível nas suas intervenções nas obras de Ludwig Mies van der Rohe. Em 2009-2010, na exposição “House on the Edge of Town” no Museu Haus Esters em Krefeld, ela apodera-se das vilas modernistas concebidas pelo arquiteto para questionar a persistência do passado no presente. Estes edifícios, pensados segundo os princípios de transparência e racionalidade, tornam-se sob o seu pincel espaços de memória estratificada onde se sobrepõem diferentes temporalidades.
A abordagem de Kneffel face ao legado modernista revela uma inteligência crítica notável. Em vez de ceder à nostalgia ou à denúncia fácil, ela escolhe pintar “uma imagem de uma imagem da imagem que experimentamos hoje” [2]. Este método de mise en abyme visual junta-se às preocupações da arquitetura contemporânea sobre a questão da reinterpretação dos modelos históricos.
As treze pinturas desta série transformam os espaços de Mies van der Rohe em palcos da ambiguidade. Kneffel aí desenvolve a sua técnica característica dos reflexos e das superfícies molhadas para confundir as fronteiras entre o interior e o exterior, entre o passado e o presente. Esta estratégia pictórica encontra um eco direto na filosofia arquitetónica de Mies, que procurou dissolver as limitações tradicionais do espaço doméstico. No entanto, onde o arquiteto visava a clareza e o minimalismo, a pintora introduz a confusão e a dúvida.
A instalação de 2014 no Pavilhão Mies van der Rohe em Barcelona leva essa lógica ao paroxismo. Colocando uma das suas telas em frente à claraboia do pavilhão, Kneffel cria um dispositivo onde a arquitetura se torna cúmplice da ilusão pictórica. O espectador fica imerso num jogo de múltiplos reflexos onde a realidade do edifício se mistura com as ficções da pintura. Esta intervenção ultrapassa o simples ato de expor para se tornar uma reflexão sobre a natureza da perceção arquitetónica em si.
A artista compreende que a arquitetura moderna, com a sua pretensão de funcionalidade pura, não escapa às construções simbólicas. As suas pinturas revelam as dimensões psicológicas e emocionais que os espaços modernistas procuram reprimir. Ao pintar os interiores da época com os seus móveis e as suas obras de arte, ela expõe as contradições entre o ideal modernista e a realidade burguesa dos seus encomendantes.
Esta investigação do espaço arquitetónico acompanha-se de uma reflexão sobre o estatuto da arte no espaço doméstico. Kneffel pinta as obras de Chagall, Kirchner ou Macke tal como apareciam nas casas Lange e Esters, seguindo-as depois nas suas localizações museológicas atuais. Esta “arqueologia visual” revela como o deslocamento das obras altera o seu significado e o seu impacto estético.
O uso recorrente de superfícies refletoras nestas composições não se deve a um mero efeito decorativo. Constitui uma metáfora da condição moderna, onde não cessamos de ver imagens de imagens. A arquitetura de vidro de Mies van der Rohe, concebida para revelar e unificar, torna-se em Kneffel o símbolo de uma época em que a transparência esconde tanto quanto revela.
A psicanálise do quotidiano
Para além das suas explorações arquitetónicas, a obra de Kneffel revela uma compreensão profunda dos mecanismos psíquicos que regulam a nossa relação com os objetos e os espaços domésticos. As suas naturezas-mortas monumentais e as suas cenas de interior funcionam como câmaras de eco do inconsciente coletivo, onde se cristalizam os desejos e as angústias da burguesia contemporânea.
A artista confessa francamente: ela não usa “a cor, a pintura a óleo, de forma ingênua” [2]. Esta consciência técnica é acompanhada de uma lucidez psicológica. Kneffel sabe que os seus frutos sobredimensionados, os seus animais com olhar demasiado humano e os seus interiores apurados despertam estruturas sentimentais ocultas em nós. Ela joga deliberadamente na fronteira que separa a emoção autêntica do kitsch, essa “marca de fábrica” que “apela às estruturas sentimentais que adormecem em cada um de nós” [3].
Os seus retratos de animais dos anos 1990 ilustram perfeitamente essa estratégia da ambivalência emocional. Essas criaturas fixam-nos com “os seus olhos arregalados, as narinas bem abertas, as orelhas caídas, quase rindo” [3]. O efeito é impressionante: projetamos nesses rostos animais uma humanidade que nos incomoda. O espectador fica preso num mecanismo de projeção e retração que revela a fragilidade das nossas certezas perceptivas.
Esta investigação dos mecanismos projetivos encontra o seu cumprimento nos interiores recentes da artista. Os espaços domésticos que ela pinta funcionam como ecrãs de projeção para os nossos fantasmas de conforto e segurança. Mas esses interiores são sempre vistos através de um vidro embaciado, por detrás de gotas de água ou reflexos parasitas que transformam o espaço familiar num território inquietante.
O uso recorrente do motivo da janela no seu trabalho não é fruto do acaso. A janela, esse “olho da casa” segundo a expressão consagrada, torna-se em Kneffel o lugar de uma interrogação sobre os limites entre o íntimo e o público, entre o dentro e o fora. Mas, ao contrário da tradição pictórica que faz da janela uma moldura transparente para o mundo, ela faz dela um filtro deformante que revela a impossibilidade de um olhar neutro.
As suas composições recentes com empregadas de limpeza introduzem uma dimensão social nesta psicanálise do doméstico. Estas figuras, frequentemente emprestadas do cinema de Hitchcock ou de Billy Wilder, encarnam a parte reprimida do conforto burguês. Elas lembram que a ordem doméstica repousa sobre um trabalho invisível, geralmente feminino, que mantém a ilusão da espontaneidade do bem-estar.
A artista desenvolve uma verdadeira “poética da suspeita” que revela as dimensões inconscientes da nossa relação com os objetos. As suas naturezas-mortas não celebram a abundância ou a beleza, mas interrogam a nossa necessidade compulsiva de consumo visual. As frutas que ela pinta são “demasiado reais” para serem verdadeiras, as suas superfícies demasiado perfeitas para não despertar desconfiança.
Esta abordagem psicanalítica do quotidiano encontra a sua justificação teórica na atenção que Kneffel presta aos processos da percepção. Ela compreende que “não podemos ver nenhuma coisa como ela é, vemos sempre a representação que temos das coisas” [4]. Esta lucidez leva-a a construir imagens que expõem os nossos mecanismos perceptivos em vez de os confortar.
O uso sistemático da focagem igual nas suas composições perturba os nossos hábitos visuais. Na realidade, o nosso olho faz constantemente a focagem, criando uma hierarquia entre os planos. Ao pintar tudo com a mesma nitidez, Kneffel cria um espaço “imaginário” onde “presente e história podem fundir-se” [4]. Esta técnica revela a natureza construída da nossa percepção e a sua ancoragem em esquemas culturais determinados.
A política da imagem
A obra de Kneffel desenvolve-se num contexto pós-Guerra Fria onde as certezas ideológicas se esboroam em favor de uma sociedade da imagem generalizada. O seu trabalho pode ser lido como uma resposta artística às transformações do espaço público alemão e europeu desde a reunificação. Ao escolher pintar interiores burgueses e objetos de consumo, ela interroga as novas relações de força que emergem numa sociedade pacificada na superfície.
A técnica hiper-realista da artista não é mera virtuosidade técnica. Constitui uma tomada de posição estética e política num mundo saturado de imagens digitais. Perante a desmaterialização progressiva da produção artística, Kneffel reivindica a lentidão e a materialidade da pintura a óleo. Cada tela exige meses de trabalho, cada detalhe é conquistado contra a facilidade do digital.
Esta resistência pela lentidão ganha uma dimensão política quandose considera o contexto de produção das suas obras. Formada na Alemanha Ocidental dos anos 1980, Kneffel pertence a uma geração que viveu a queda do Muro de Berlim e a unificação. As suas pinturas de interiores podem ser lidas como uma meditação sobre a identidade alemã em reconstrução, entre herança moderna e realidades contemporâneas.
A atenção que ela dedica aos objetos do quotidiano revela uma consciência aguda das mutações sociais em curso. As suas naturezas-mortas não mostram produtos de luxo ou símbolos de poder, mas frutas, móveis e animais domésticos que compõem o ambiente da classe média. Esta democracia do objeto pintado traduz uma visão igualitária da arte que recusa as hierarquias tradicionais entre nobre e trivial.
O seu trabalho sobre as arquiteturas modernistas de Mies van der Rohe pode também ser interpretado como uma reflexão sobre o legado político da modernidade. Ao mostrar como esses espaços utópicos se tornaram museus, ela revela o fracasso relativo do projeto moderno de transformação social através da arquitetura. As suas pinturas expõem a distância que separa as ambições revolucionárias das vanguardas da sua atual recuperação museológica.
O uso recorrente da figura do voyeur nas suas composições introduz uma dimensão crítica sobre a sociedade de vigilância contemporânea. Ao colocarmo-nos sistematicamente na posição de observadores indiscretos, ela revela a nossa cumplicidade com os mecanismos de controlo social. As suas janelas embaçadas e as superfícies refletoras evocam os ecrãs de vigilância que povoam o espaço urbano contemporâneo.
A questão do género também atravessa o seu trabalho de forma subtil mas persistente. Formada num meio artístico dominado por homens, ela teve de impor os seus temas contra os preconceitos da época. “Naquela época, na academia, achava-se que tal ou tal motivo não devia ser pintado. Frutas ou animais, por exemplo. Muito decorativos, portanto ainda mais inadequados para uma mulher” [4]. Esta resistência às proibições de género perpassa toda a sua obra.
A mecânica da dúvida
Após quatro décadas de criação, Kneffel desenvolveu uma verdadeira máquina para produzir incerteza. As suas últimas obras, nomeadamente a série “Face of a Woman, Head of a Child” de 2021-2022, revelam um domínio técnico e conceptual que coloca a sua arte ao nível dos maiores. Estas dezenas de dípticos sobre o tema da mãe e da criança marcam uma viragem na sua produção ao introduzir, pela primeira vez, a figura humana no centro das suas preocupações.
Estes retratos, derivados de esculturas policromadas do Renascimento nórdico, operam uma laicização radical da iconografia cristã. Ao eliminar halos, véus e outros atributos religiosos, Kneffel “transforma os modelos em objetos altamente subjetivos, dotados de uma vitalidade animada graças ao contorno e à cor pictóricos” [5]. Esta secularização revela a persistência das estruturas arquetípicas na arte contemporânea.
A técnica do díptico revela-se particularmente eficaz para criar o efeito de dúvida desejado pela artista. Ao separar mãe e filho em duas telas distintas, ela quebra a unidade tradicional do grupo sagrado ao mesmo tempo que preserva o seu vínculo pela semelhança fisionómica. Esta fragmentação gera uma tensão emocional que perturba os nossos hábitos iconográficos.
A inclusão do seu autorretrato com o seu filho nesta série introduz uma dimensão autobiográfica inédita no seu trabalho. Esta intrusão do pessoal no corpus revela uma evolução da artista para uma aceitação da subjetividade. O facto de ela pintar estas obras no momento em que se torna avó acrescenta uma ressonância temporal que enriquece a leitura do conjunto.
A mestria técnica alcançada nestas últimas obras ronda o prodígio. Kneffel consegue reproduzir a textura da madeira pintada das esculturas originais ao mesmo tempo que conserva a fluidez da pintura a óleo. Esta proeza revela uma compreensão profunda dos desafios da tradução entre meios. Ela não pinta esculturas, mas a ideia de escultura tal como pode existir na pintura.
A escolha de trabalhar a partir de fotografias, em vez de a partir da natureza, introduz uma mediação adicional que enriquece a reflexão sobre a imagem. “As fotografias são os originais ambivalentes sobre os quais se baseiam a maioria das suas pinturas” [6]. Esta ambivalência constitui precisamente o terreno de jogo da artista. Ela transforma a imperfeição do meio fotográfico em força criativa.
A evolução técnica de Kneffel revela um paradoxo fascinante: quanto mais domina a sua arte, mais as suas obras se tornam complexas e difíceis de realizar. “Torno-me mais rápida, mas, ao mesmo tempo, as minhas telas exigem mais tempo” [4]. Esta aparente contradição traduz uma ambição artística que não para de crescer com a idade. Longe de se simplificar, a sua arte densifica-se e estratifica-se.
Esta crescente complexidade acompanha-se de uma consciência aguda da herança pictórica. Kneffel não para de dialogar com a história da pintura, desde o Renascimento do Norte até à pop art americana. Mas este diálogo nunca se traduz numa citação gratuita ou num pastiche complacente. Ela usa a história como um reservatório de problemas estéticos a resolver em vez de um museu a visitar.
A arte de Kneffel confronta-nos com uma verdade perturbadora: já não sabemos ver. Acostumados aos fluxos de imagens digitais, perdemos a capacidade de atenção sustentada que a pintura exige. As suas telas hiper-realistas obrigam-nos a abrandar, a perscrutar, a duvidar das primeiras impressões. Funcionam como exercícios de reeducação visual num mundo de cegos apressados.
O seu sucesso comercial e crítico internacional, coroado pela sua representação na Gagosian desde 2012, testemunha a pertinência desta abordagem. Num mercado de arte dominado pela imediaticidade e pela espetacularização, Kneffel propõe uma alternativa baseada na contemplação e introspeção. As suas obras, vendidas por várias centenas de milhares de euros, provam que ainda existe um público para uma arte exigente.
O olho e a mão
Karin Kneffel ensina-nos uma lição fundamental: a arte não deve confortar, mas questionar; não deve aconchegar, mas perturbar. A sua obra constitui um antídoto precioso contra a fascinação preguiçosa e o consumo passivo de imagens. Ao transformar a dúvida em método criativo, abre novas perspetivas para a pintura contemporânea.
A sua trajetória artística testemunha uma obstinação notável. Formada na esteira de Gerhard Richter, conseguiu desenvolver uma linguagem pictórica autónoma que, sem negar a herança moderna, inventa as suas próprias soluções plásticas. Esta independência estética merece ser aplaudida num ambiente artístico frequentemente sujeito a modismos e pressões comerciais.
A amplitude do corpus constituído ao longo de quarenta anos coloca definitivamente Kneffel entre as figuras maiores da pintura europeia contemporânea. As suas obras, presentes nas maiores coleções internacionais, continuarão por muito tempo a alimentar reflexões sobre a imagem e a perceção. Constituem um testemunho único sobre as mutações da sociedade ocidental desde o fim da Guerra Fria.
O empenho pedagógico da artista, que formou gerações de estudantes em Bremen e depois em Munique, assegura a transmissão da sua abordagem. Esta dimensão professoral revela uma conceção da arte como disciplina que exige rigor e perseverança. Numa época que privilegia a inovação permanente, Kneffel defende as virtudes do aprofundamento e da maturação lenta.
A sua arte recorda-nos, finalmente, que a pintura conserva recursos expressivos únicos que os novos meios não conseguem igualar. A materialidade da pasta, a lentidão da execução, a presença física da obra criam condições de receção insubstituíveis. Ao persistir neste caminho contra ventos e marés, Kneffel mantém viva uma tradição milenar, atualizando-a para a nossa época.
Num mundo que corre para a abstração digital e a inteligência artificial, a obra de Karin Kneffel constitui um saudável lembrete da irreductível especificidade da experiência estética humana. As suas dúvidas pintadas ajudam-nos a reencontrar a nossa própria capacidade de questionamento. E talvez essa seja a sua mais bela vitória: ter transformado a incerteza em certeza criativa.
- Galeria Gagosian, “About Karin Kneffel”, site web da galeria Gagosian, consultado em 2025
- Sunil Manghani, “On situating painting: An interview with Karin Kneffel”, Journal of Contemporary Painting, Volume 3, Números 1 & 2, 2017
- Noemi Smolik, “Karin Kneffel”, Artforum, tradução do alemão por Joachim Neugroschel
- Anke Brack, “Karin Kneffel: ‘Meine Bilder haben sich gut gehalten'”, Neue Zürcher Zeitung, 28 de novembro de 2020
- Mousse Magazine, “Karin Kneffel ‘Face of a Woman, Head of a Child’ na Gagosian, Roma”, 26 de outubro de 2022
- Gagosian Quarterly, “The Actual Picture: On Karin Kneffel’s Painting”, outubro de 2022
















