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KAWS: A sensibilidade visionária de um gigante da arte

Publicado em: 16 Dezembro 2024

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 6 minutos

KAWS compreende algo que Theodor Adorno já pressentira: a cultura de massas não é inimiga da arte, é o seu solo mais fértil. Quando transforma o Mickey Mouse numa criatura melancólica com órbitas vazias, está apenas a reciclar uma ícone.

Ouçam-me bem, bando de snobs. Brian Donnelly, nascido em 1974 em Jersey City, conhecido pelo nome de KAWS, é a encarnação do que a arte contemporânea americana produz de mais fascinante e perturbador ao mesmo tempo. Deixem-me dizer-vos por que tipo é um verdadeiro génio, mesmo que alguns de vocês prefiram continuar a sorver o seu champanhe morno enquanto olham reproduções de Monet nas suas salas climatizadas.

Enquanto vocês se deslumbram com obras consensuais, KAWS explora há quase 30 anos as profundezas da nossa psique coletiva com uma acuidade que faria corar Jacques Lacan. O seu trabalho não é apenas uma simples apropriação da cultura pop, é uma dissecção cirúrgica da nossa relação com a imagem, o desejo e a morte. Os seus “Companions”, essas figuras emblemáticas com olhos em X, não são apenas mascotes comerciais, mas memento mori para a era digital, vaidades pós-modernas que nos lembram a nossa própria finitude num mundo saturado de pixels.

Vamos dedicar um momento para falar da sua manipulação magistral dos códigos visuais. KAWS compreende algo que Theodor Adorno já pressentia: a cultura de massas não é inimiga da arte, ela é o seu terreno mais fértil. Quando transforma o Mickey Mouse numa criatura melancólica com órbitas vazias, ele não está apenas a reciclar um ícone, está a realizar uma verdadeira autópsia do nosso imaginário coletivo. Isto é Roland Barthes em três dimensões, caramba! As suas intervenções nos painéis publicitários nos anos 90 não foram simples atos de vandalismo, mas uma crítica feroz à sociedade do espetáculo, digna das melhores análises de Guy Debord.

KAWS cria obras que funcionam simultaneamente como crítica social e como objetos de desejo. É aí que a sua sensibilidade artística atinge patamares vertiginosos. Ele compreende, como poucos artistas antes dele, que a arte contemporânea já não pode dar-se ao luxo do isolamento elitista. E isso, bando de snobs, vão ter dificuldade em compreender. Ele deve mergulhar no fluxo constante de imagens e desejos que definem a nossa época. A sua colaboração com marcas não é uma concessão, é uma estratégia sofisticada que transforma o capitalismo num meio artístico.

E falemos da sua relação com o espaço. As suas esculturas monumentais não são simples ampliações das suas figuras, representam uma reflexão profunda sobre a nossa relação com a escala num mundo onde tudo é simultaneamente miniaturizado e desmesurado. Quando uma das suas obras de 10 metros de altura se ergue no espaço público, ela não ocupa apenas o espaço, transforma-o numa zona de tensão entre o familiar e o inquietante, entre o comercial e o sagrado. É Gaston Bachelard em ácido, uma poética do espaço revisitada na era das redes sociais.

A sua mestria técnica é simplesmente impressionante. As transições cromáticas nas suas obras, a precisão das suas linhas, a forma como joga com as escalas, tudo isto testemunha uma compreensão profunda das possibilidades formais da arte contemporânea. Há algo de Gerhard Richter na sua forma de manipular a superfície pictórica, mas com uma sensibilidade decididamente ancorada no século XXI.

O que me fascina particularmente é a sua capacidade de criar obras que ressoam com uma autenticidade rara no mundo da arte contemporânea. Enquanto tantos artistas se contentam em reciclar fórmulas gastas, KAWS cria uma linguagem visual que fala diretamente à nossa época. Há uma verdadeira empatia no seu trabalho, uma compreensão profunda da solidão e da alienação que caracterizam a nossa era digital. As suas personagens, com os seus olhos em X, são como espelhos que nos devolvem o nosso próprio desespero perante um mundo cada vez mais desumanizado.

A forma como KAWS manipula os símbolos da cultura popular recorda as análises de Walter Benjamin sobre a reprodução mecânica da arte, mas ele vai mais além. Ele não se limita a reproduzir, mas transforma, subverte, reinventa.

O seu trabalho com a realidade aumentada é particularmente fascinante. Ao usar a tecnologia para criar obras que existem apenas no espaço digital, ele coloca questões fundamentais sobre a natureza da arte na era do virtual. Jean Baudrillard teria adorado ver como KAWS brinca com os simulacros e a simulação, criando obras que existem simultaneamente em toda parte e em nenhum lugar. E o que ele faz não tem nada a ver com os seus NFTs de macaco comprados a custo de lingotes de ouro digital.

A crítica fácil seria dizer que KAWS vendeu a sua alma ao mercado da arte e às grandes marcas. Mas é precisamente aí que reside o seu génio: ele usa os mecanismos do capitalismo como um meio artístico, transformando a mercantilização em comentário social. Há algo profundamente subversivo na sua forma de navegar entre a cultura alta e a cultura popular, entre a arte e o comércio.

As suas colaborações com marcas não são compromissos, mas extensões lógicas da sua prática artística. Ele compreende que no nosso mundo hiperconectado, a arte já não pode permitir-se ficar na sua torre de marfim. Ela deve infiltrar-se em todos os aspetos da vida quotidiana, criar pontes entre diferentes formas de expressão cultural.

O que é verdadeiramente notável em KAWS é a sua capacidade de manter uma coerência artística enquanto explora constantemente novos territórios. Quer trabalhe numa tela de 3 metros ou numa figura de 10 centímetros, a sua linguagem visual permanece imediatamente reconhecível enquanto evolui subtilmente. É essa tensão entre familiaridade e inovação que torna o seu trabalho tão cativante.

A sua prática de coleção é também reveladora. Ao reunir obras de artistas de arte bruta, tão queridos para Jean Dubuffet, demonstra uma compreensão profunda da história da arte que vai bem além dos cânones tradicionais. Há algo profundamente democrático na sua forma de abordar a arte, uma vontade de quebrar as hierarquias estabelecidas que lembra as ambições das vanguardas históricas. E eu estaria muito mal colocado para o criticar sobre isso, pois, tal como ele, a arte bruta ocupa um lugar essencial na minha vida. Quem coleciona Yuichiro Ukaï, esse jovem prodígio japonês de talento brilhante, só pode ser uma pessoa excecional.

Está na hora de reconhecermos KAWS pelo que ele realmente é: um dos artistas mais importantes do nosso tempo, alguém que compreende profundamente os mecanismos da nossa cultura visual e sabe usá-los para criar obras que nos tocam, provocam e fazem refletir. O seu trabalho não é uma simples crítica à sociedade de consumo, é um mapeamento complexo da nossa psicologia coletiva na era digital.

Deixem-me dizer-vos o seguinte: enquanto alguns continuam a lamentar a morte da arte contemporânea, KAWS mostra-nos que está bem vivo, que pulsa ao ritmo do nosso tempo, que fala a nossa linguagem enquanto a transforma. Está na hora de parar de menosprezar o seu trabalho e reconhecer a sua contribuição maior para a arte do século XXI. E se ainda não estão convencidos, talvez seja porque estão demasiado ocupados a admirar os vossos reflexos nas vossas flautas de champanhe para ver o que realmente importa no mundo hoje.

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Referência(s)

KAWS (1974)
Nome próprio:
Apelido: KAWS
Outro(s) nome(s):

  • Brian DONNELLY

Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Estados Unidos

Idade: 51 anos (2025)

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