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Kei Imazu, mitologia e arquivos coloniais

Publicado em: 20 Julho 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 9 minutos

Kei Imazu transforma os arquivos coloniais e as mitologias indonésias em pinturas-relatos impressionantes. Armada com tecnologias 3D e uma curiosidade antropológica insaciável, esta artista japonesa instalada em Bandung revela as camadas enterradas da história do arquipélago através de composições de uma riqueza visual espantosa.

Ouçam-me bem, bando de snobs! Aqui está uma artista que faz tremer as certezas do nosso tempo a grandes golpes de pincéis mergulhados na complexidade do mundo. Kei Imazu, nascida em Yamaguchi em 1980 e estabelecida desde 2018 em Bandung, Indonésia, orquestra uma pintura que recusa categoricamente o conforto aconchegante da arte decorativa. As suas telas, tecidas de imagens digitais transformadas em óleo sobre linho, constituem um laboratório visual onde se encontram mitologia malaia, arquivos coloniais e aflição ecológica contemporânea.

Esta mulher não pinta, ela exuma. Seu atelier parece mais o de uma antropóloga digital do que a caverna romântica da artista inspirada. Armada com software 3D, Photoshop e uma curiosidade arqueológica insaciável, ela constrói suas composições como se reconstroem civilizações perdidas. Cada tela nasce de uma pesquisa meticulosa: fotografias de arquivos holandeses, cartografias coloniais, objetos 3D escaneados nos destroços de navios holandeses, fragmentos mitológicos indonésios. Esta vertiginosa acumulação de imagens heterogêneas poderia afundar no caos pós-moderno se Imazu não possuísse esse raro dom de transformar a cacofonia em sinfonia.

A arqueologia como método artístico

A abordagem de Imazu enraíza-se profundamente numa visão arqueológica da criação contemporânea. Michel Foucault, em L’Archéologie du savoir [1], desenvolveu um método de análise dos discursos que buscava revelar as formações discursivas subjacentes às enunciações. De forma similar, Kei Imazu pratica uma arqueologia visual que exuma as camadas enterradas da história indonésia. As suas pinturas funcionam como sítios de escavação onde afloram simultaneamente as marcas do passado colonial, os mitos pré-coloniais e as feridas ecológicas contemporâneas.

Essa abordagem arqueológica manifesta-se particularmente nas suas obras recentes dedicadas ao mito de Hainuwele, essa deusa malaia cujo corpo desmembrado dá origem aos tubérculos alimentares [2]. Imazu não se limita a ilustrar essa narrativa fundadora: ela sobrepõe-a aos mapas coloniais holandeses, às fotografias da exploração mineira contemporânea, aos dados científicos sobre o desmatamento. Cada elemento iconográfico funciona como um fragmento arqueológico portador de uma temporalidade específica. A pintura torna-se então um testemunho onde se lêem em transparência as várias épocas que moldaram o arquipélago indonésio.

A artista procede por estratificação visual, à semelhança de como o arqueólogo lê as camadas geológicas. As suas telas mais realizadas, como Memories of the Land/Body (2020), revelam este método de forma exemplar. Numa superfície de três metros por seis, ela sobrepõe mapas do vulcão Gunung Sumbing realizados pelo geólogo holandês Franz Wilhelm Junghuhn, texturas digitais que evocam a pele humana, fragmentos de vegetação tropical e formas abstratas que sugerem órgãos internos. Esta sobreposição não é gratuita: revela como a cartografia colonial se inscreveu na própria pele da Indonésia, transformando um território vivo numa recurso explorável.

A dimensão arqueológica do seu trabalho é acompanhada por uma reflexão sobre a memória coletiva. Imazu interessa-se particularmente pelos objetos e relatos que a história oficial negligenciou ou ocultou. As suas pesquisas nos arquivos neerlandeses revelam a dimensão desta amnésia organizada: os documentos relativos à história indonésia são conservados na Holanda, escritos do ponto de vista dos colonizadores. Frente a esta confiscatória da memória, a artista opõe a riqueza da tradição oral indonésia, esses relatos mitológicos que trazem uma outra visão do mundo, centrada na fertilidade, na regeneração e na harmonia com a natureza. As suas pinturas tornam-se então contra-arquivos, espaços onde as vozes abafadas podem finalmente ser ouvidas.

Esta abordagem arqueológica encontra prolongamento na utilização que Imazu faz das tecnologias digitais. Longe de ceder às seduções da arte digital espetacular, ela emprega a 3D e os softwares de tratamento de imagem como ferramentas de investigação histórica. Os modelos digitais que cria a partir de objetos arqueológicos autênticos, fragmentos de porcelana chinesa, ferramentas pré-coloniais, vestígios de naufrágios, permitem-lhe reposicioná-los em contextos narrativos inéditos. Esta ressurreição digital dos objetos perdidos faz parte da sua abordagem arqueológica: devolver vida àquilo que foi enterrado pela história.

Cinema de autor e temporalidades múltiplas

A estrutura narrativa das pinturas de Kei Imazu evoca irresistivelmente as inovações temporais do cinema de autor contemporâneo. Tal como Apichatpong Weerasethakul nos seus filmes da segunda nova vaga do cinema tailandês, a artista japonesa faz coexistir várias temporalidades dentro de um mesmo espaço visual. As suas telas funcionam segundo uma lógica de montagem cinematográfica onde os planos se sobrepõem em vez de se sucederem. Esta técnica, que se poderia qualificar de “pintura-testemunho”, recorda as experimentações de Andrei Tarkovski sobre a natureza fluida do tempo [3].

Em The Sea is Barely Wrinkled (2025), a sua exposição no Museum MACAN de Jacarta, Imazu desenvolve uma temporalidade verdadeiramente cinematográfica. A obra central, que toma o título do romance Palomar de Italo Calvino, funciona como um filme pintado onde se entrecruzam o naufrágio do Batavia em 1629, as mitologias javanesas de Nyai Roro Kidul e as projeções climáticas para Jacarta em 2050. Esta sobreposição temporal não é arbitrária: revela como as violências coloniais do passado continuam a estruturar as catástrofes ecológicas do presente.

A influência do cinema de autor manifesta-se também na forma como Imazu constrói as suas composições. As suas pinturas não têm um centro único, mas desenvolvem-se segundo uma lógica rizomática onde cada elemento entra em ressonância com os outros. Esta abordagem lembra os filmes de Béla Tarr ou Aleksandra Sokurov, esses realizadores que privilegiam a duração e a imersão em detrimento da ação dramática. As telas de Imazu exigem um tempo de contemplação semelhante: é preciso aceitar perder-se nos seus meandros visuais para captar a coerência profunda.

A dimensão temporal do seu trabalho complica-se ainda mais com as suas instalações colaborativas com Bagus Pandega, nomeadamente Artificial Green by Nature Green 4.0 (2024). Esta obra, apresentada na Bienal de Arte de Banguecoque, funciona literalmente como um filme em tempo real: um braço mecânico desenha diariamente silhuetas de animais e plantas numa tela pintada por Imazu, antes que um segundo mecanismo apague esses desenhos com água, num ciclo sem fim. Esta mecânica de criação e destruição evoca diretamente as elipses temporais do cinema contemplativo, esses longos planos fixos que revelam o desgaste do tempo sobre as coisas e os seres.

A artista domina igualmente a arte do flashback visual. Nas suas séries dedicadas à ocupação japonesa da Indonésia durante a Segunda Guerra Mundial, entrelaça fotografias de arquivo, testemunhos familiares e as suas próprias experiências enquanto mãe japonesa a criar o seu filho em terras indonésias. Esta técnica de sobreposição memorial lembra os filmes de Chris Marker, nomeadamente Sans Soleil, onde a imagem presente se torna o recipiente de todas as imagens passadas.

Mas é talvez na gestão do espaço pictórico que Imazu revela melhor a sua afinidade com o cinema de autor. As suas telas mais monumentais, como Blossoming Organs (2023), funcionam como planos sequência onde o olhar pode vaguear sem esgotar nunca a riqueza visual. Cada zona da tela possui a sua própria densidade narrativa, as suas próprias referências temporais, as suas próprias cargas emocionais. Esta multiplicidade de centros de interesse evoca os filmes de Robert Altman ou Paul Thomas Anderson, realizadores que sabem orquestrar a complexidade narrativa sem jamais cair na confusão.

A influência do cinema de autor manifesta-se finalmente na melancolia que atravessa toda a sua obra. Tal como os filmes de Wong Kar-wai ou Hou Hsiao-hsien, as pinturas de Imazu carregam em si uma nostalgia por um mundo em vias de desaparecimento. Esta melancolia não é paralisante: pelo contrário, alimenta uma forma de resistência poética face à aceleração destrutiva do capitalismo contemporâneo.

Uma obra cruzamento

A exposição Tanah Air na Tokyo Opera City Art Gallery, que decorreu no início deste ano, confirma a maturidade artística de Kei Imazu. O título, que significa “patria” em indonésio (literalmente “terra-água”), revela a ambição desta retrospectiva: cartografar os territórios íntimos e geopolíticos que alimentam a sua criação. A artista aí despliega todo o seu vocabulário plástico, desde pinturas intimistas até instalações monumentais, revelando uma coerência de visão notável.

As suas últimas obras testemunham uma radicalização da sua abordagem. As esculturas impressas em 3D, como SATENE’s Gate (2024), materializam no espaço as figuras mitológicas que assombram as suas telas. Estas peças, de uma brancura espectral, evocam vestígios arqueológicos do futuro, fragmentos de uma civilização que teria sabido reconciliar tecnologia e espiritualidade. Esta expansão para a escultura confirma que Imazu já não se contenta em pintar o mundo: ela molda-o segundo a sua visão.

A sua instalação Bandoengsche Kininefabriek (2024), dedicada à história do cultivo da quinina em Bandung, ilustra perfeitamente o seu método de trabalho. Partindo de um facto histórico preciso, a exploração colonial dessa planta antimalárica, ela tece uma rede de correspondências que abrange a história da medicina tropical, as resistências indígenas e os desafios sanitários contemporâneos. Esta capacidade de revelar as ligações ocultas entre fenómenos aparentemente díspares constitui talvez o talento mais raro desta artista.

Porque Kei Imazu possui essa qualidade preciosa: ela ensina-nos a observar. As suas telas funcionam como reveladoras que nos permitem perceber a complexidade do mundo contemporâneo. Perante as suas obras, as hierarquias habituais esbate-se: o mito tem tanto valor como o arquivo, a cartografia colonial dialoga com a tradição oral, a arte pré-colonial ressoa com as tecnologias digitais. Esta horizontalidade dos saberes constitui provavelmente uma das contribuições mais valiosas do seu trabalho para a arte contemporânea.

O compromisso ecológico da artista nunca se traduz num militante primário. As suas obras dedicadas ao desmatamento na Indonésia ou à poluição do rio Citarum revelam antes uma compreensão profunda dos mecanismos que ligam a exploração colonial e a destruição ambiental. Esta consciência ecológica ancorada no seu conhecimento íntimo das mitologias indonésias, esses relatos que concebem o humano como parte integrante de um cosmos vivo.

É também de saudar a sua capacidade de navegar entre os mundos artísticos japonês e indonésio sem jamais ceder às facilidades do exotismo. O seu estatuto de estrangeira residente confere-lhe uma posição privilegiada de observação, a de quem pertence e não pertence, a de quem vê com olhos novos sem, no entanto, permanecer na superfície das coisas. Esta posição de entre-dois alimenta a riqueza do seu olhar e a justeza das suas intuições.

Kei Imazu oferece-nos afinal muito mais do que uma obra de arte: ela propõe-nos um método para habitar o mundo contemporâneo. Face à saturação informacional que caracteriza a nossa época, ela mostra que é possível criar sentido ao tecer ligações inesperadas entre os fragmentos do real. As suas pinturas funcionam como mapas cognitivos que nos ajudam a orientar-nos no caos do presente. Nesse sentido, o seu trabalho integra a linhagem dos grandes criadores que, em cada época, conseguiram inventar novos modos de percepção do real.

Esta artista merece toda a nossa atenção. Não só porque domina brilhantemente os códigos da arte contemporânea, mas porque ela incorpora uma visão do mundo que nos faltava de forma aguda. Num panorama artístico frequentemente narcisista e autorreferencial, Kei Imazu lembra-nos que a arte ainda pode servir para algo: ajudar-nos a compreender o mundo e, talvez, a transformá-lo.


  1. Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, Edições Gallimard, 1969
  2. Adolf E. Jensen, Hainuwele; Contos Populares da Ilha das Molucas Ceram, Frankfurt am Main, Klostermann, 1939
  3. Andrei Tarkovski, O Tempo Selado, Edições da Estrela, 1989
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Referência(s)

Kei IMAZU (1980)
Nome próprio: Kei
Apelido: IMAZU
Outro(s) nome(s):

  • 今津景 (Japonês)

Género: Feminino
Nacionalidade(s):

  • Japão

Idade: 45 anos (2025)

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