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Ma Ke: A experiência estética e existencial

Publicado em: 20 Março 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

Ma Ke transforma a tela num campo de batalha existencial onde as suas personagens oscilam entre presença e ausência. Através de uma técnica pictórica enérgica e cores intensas, ele explora os limites da representação, criando um espaço de encontro entre culturas oriental e ocidental.

Ouçam-me bem, bando de snobs, deixem por um momento a vossa conversa insípida e a vossa contemplação narcisista dos mesmos artistas repetidos nas vossas noites de vernissage. Está na hora de olhar para outro lado, para o Oriente, para essa China que normalmente conhecem apenas pelos clichés, e por vezes nem isso. Vou falar-vos hoje de Ma Ke, esse pintor chinês que transforma a tela num campo de batalha existencial, numa cena de metamorfoses perpétuas, esse funâmbulo audaz que atravessa o abismo entre tradição e inovação com uma despreocupação que vos faria embranquecer de inveja.

Ma Ke nasceu em 1970 em Zibo, na China, mas esta não é uma história de criança prodígio que vou contar. O seu percurso é antes o de uma consciência em constante despertar, de um homem que soube transformar o seu pensamento em ato pictórico. Formado primeiro pelo pai nas técnicas tradicionais chinesas e no realismo social russo, depois na Academia de Belas-Artes de Tianjin e na Academia Central de Belas-Artes de Pequim, Ma Ke descobriu a arte ocidental como uma revelação, um novo sopro que lhe permitiu imaginar outras possibilidades, outras liberdades.

Mas o que torna o seu trabalho tão interessante é a sua forma de navegar entre dois mundos, oscilando entre o poder expressivo da abstração ocidental e a profundidade meditativa da tradição chinesa. Nas suas telas, frequentemente povoadas por personagens solitários ou em pequeno número, mergulhados em fundos monocromáticos, Ma Ke cria um espaço de encontro entre culturas, um terreno de experimentação onde pode explorar os limites da representação e da expressão.

Olhem para esta obra intitulada “Procurar a espada”, onde Ma Ke revisita a parábola clássica chinesa com um toque contemporâneo que nos transporta diretamente para o universo kafkiano da metamorfose. Esta cena não é apenas uma simples ilustração de um conto antigo, é uma metáfora visual da nossa condição moderna, suspensa entre memória colectiva e desorientação individual. Como Vladimir Nabokov escrevia na sua análise dos relatos de Kafka: “A metamorfose é aquele momento preciso em que a alma toma consciência da sua própria prisão” [1]. Ma Ke capta exatamente esse instante de consciência, em que o ser humano percebe a sua condição trágica enquanto procura uma saída.

A sua técnica pictórica, com estas pinceladas enérgicas e expressivas, estas cores intensas que emergem de fundos monocromáticos, evoca os tormentos interiores do homem moderno. Estas figuras que às vezes parecem dissolver-se no fundo, outras vezes emergir com violência, não deixam de recordar as reflexões de Emil Cioran sobre o apagamento do indivíduo: “Estamos todos no fundo de um inferno cujo cada momento é um milagre” [2]. Ma Ke cria precisamente esses momentos miraculosos em que o ser humano, em toda a sua fragilidade, consegue ainda assim afirmar a sua presença face às forças que procuram engoli-lo.

O que imediatamente impressiona no trabalho de Ma Ke é esta tensão constante entre aparecimento e desaparecimento, entre presença e ausência. Na série “Montando o vazio”, inspirada num poema de Tang Wei Zhuang, Ma Ke ilustra esta busca espiritual com uma intensidade impressionante. O cavaleiro, suspenso no vazio, simboliza a aspiração humana a transcender a sua condição terrena. Poder-se-ia ver aqui uma ilustração quase literal do que Peter Sloterdijk chama “a verticalidade tensa”, essa propensão humana para querer elevar-se acima da sua condição: “O ser humano é aquele que tem que se superar para ser” [3]. A verticalidade que atravessa a obra de Ma Ke não é apenas formal, é profundamente filosófica.

As paisagens pintadas por Ma Ke nunca são lugares idílicos ou representações naturalistas, mas espaços mentais, territórios da alma. Em “Montanha vazia”, a paisagem torna-se uma presença quase metafísica, um lugar onde o humano é confrontado com a sua insignificância face à imensidão. Esta abordagem evoca irresistivelmente as reflexões de Jankélévitch sobre a montanha como metáfora da busca filosófica: “A montanha não é um objetivo, mas um meio; não é um fim, mas um caminho para ver mais longe” [4]. Ma Ke transforma assim a paisagem tradicional chinesa num espaço existencial contemporâneo.

A influência de Jung e da sua teoria do inconsciente coletivo também é perceptível no trabalho de Ma Ke, nomeadamente na sua maneira de usar arquétipos universais enquanto os reinventa numa linguagem pictórica pessoal. O cavalo, figura recorrente na sua obra, não deixa de evocar o que Jung chamava “as imagens primordiais”, essas representações inatas que habitam o nosso inconsciente coletivo [5]. Mas Ma Ke não se limita a reproduzir esses arquétipos, ele os transforma, deforma, insere-lhes uma nova vida que corresponde à nossa época atribulada.

Tomemos por exemplo a sua série sobre “A Metamorfose” inspirada em Kafka. Ma Ke não procura ilustrar literalmente o relato do escritor checo, mas antes capturar a essência, aquele medo existencial face à transformação. Os corpos deformados, fragmentados, que povoam estes quadros, não deixam de lembrar o que Deleuze e Guattari teorizaram sob o conceito de “corpos sem órgãos”, essa aspiração a escapar às determinações orgânicas para alcançar um estado de pura intensidade [6]. Ma Ke, através do seu trabalho sobre a figura humana, convida-nos a repensar a nossa relação com o corpo, com a identidade, com a transformação.

Nas suas obras recentes, Ma Ke direcionou-se para uma exploração mais abstrata, utilizando pontos, linhas, planos, esferas e formas geométricas para construir imagens de animais ou figuras humanas. Esta abordagem mais geométrica, que recorda certas investigações cubistas, demonstra a sua constante vontade de renovar a sua linguagem pictórica, de encontrar novas formas de expressar o humano. Como escreveu Paul Klee, “a arte não reproduz o visível, torna visível” [7]. Ma Ke, através destas composições abstratas, procura precisamente tornar visível o invisível, dar forma a essas forças que nos atravessam e nos constituem.

A paleta de Ma Ke, frequentemente dominada por tons de cinza ou rosa, cria uma atmosfera tanto íntima como inquietante. Esta restrição cromática não é sinal de limitação, mas sim de concentração, de intensificação da expressão. Como observou Alberto Giacometti, “quanto mais olho, mais vejo cinzento” [8]. Esse cinzento que invade algumas telas de Ma Ke não é sinal de desencanto, mas antes de lucidez, de vontade de ver o mundo como ele é, para além das ilusões coloridas.

O que distingue Ma Ke de muitos artistas contemporâneos chineses é a sua recusa em jogar a carta do “exotismo” ou da identidade cultural como argumento comercial. Não procura criar uma arte “tipicamente chinesa” que corresponda às expectativas ocidentais, nem imitar as modas artísticas ocidentais. A sua abordagem é profundamente sincera, enraizada numa reflexão pessoal sobre a condição humana e sobre as possibilidades expressivas da pintura. Como observou acertadamente a crítica de arte Karen Smith, Ma Ke poderá bem ser “o primeiro pintor modernista autêntico da China” [9].

O trabalho de Ma Ke recorda-nos que a verdadeira arte nunca é uma simples questão de estilo ou técnica, mas sempre uma questão de necessidade interior, de visão pessoal do mundo. Numa época em que a arte contemporânea parece frequentemente reduzir-se a estratégias de marketing ou posturas intelectuais, o trabalho de Ma Ke lembra-nos o que pode ser a pintura quando praticada como uma verdadeira exploração existencial: um espaço de liberdade, questionamento e transformação.

O que me toca pessoalmente na obra de Ma Ke é essa forma que ele tem de criar imagens que nos assombram, que continuam a viver em nós muito tempo depois de desviarmos o olhar. Os seus quadros não são objetos decorativos destinados a adornar os nossos interiores, mas presenças inquietantes que nos interrogam, nos desestabilizam, nos transformam. Como escreveu François Cheng a propósito da pintura tradicional chinesa: “Uma verdadeira pintura é aquela onde se entra como num cenário real, onde se pode permanecer, vaguear e voltar” [10]. Os quadros de Ma Ke são precisamente esses espaços habitáveis pela imaginação, esses territórios onde a alma pode vaguear e perder-se.

Ouçam-me bem, bando de snobs, se procuram uma arte que vos conforte nas vossas certezas, que acaricie o vosso gosto pelo belo ou pelo conceptual na moda, sigam o vosso caminho. Mas se estão prontos para se confrontarem com uma pintura que vos olha tanto quanto vocês a olham, que vos interroga sobre a vossa própria condição, que vos convida a uma verdadeira experiência estética e existencial, então a obra de Ma Ke merece toda a vossa atenção. Porque o que ele nos oferece não são simplesmente quadros para contemplar, mas um espaço para pensar, sentir e estar plenamente vivo.

Ma Ke continua a viver e trabalhar em Pequim, prosseguindo incansavelmente a sua busca pictórica. A sua obra, ainda demasiado desconhecida no Ocidente, merece amplamente ser descoberta e meditada, não como uma curiosidade exótica vinda do Oriente, mas como uma das vozes mais autênticas e profundas da pintura contemporânea mundial.


  1. Nabokov, Vladimir. Littératures. Fayard, 1985.
  2. Cioran, Emil. O mau demiurgo. Gallimard, 1969.
  3. Sloterdijk, Peter. A mobilização infinita. Christian Bourgois, 2000.
  4. Jankélévitch, Vladimir. O Je-ne-sais-quoi e o Quase-nada. Seuil, 1980.
  5. Jung, Carl Gustav. As raízes da consciência. Buchet/Chastel, 1971.
  6. Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. Mil Platôs. Éditions de Minuit, 1980.
  7. Klee, Paul. Teoria da arte moderna. Gallimard, 1998.
  8. Giacometti, Alberto. Escritos. Hermann, 1990.
  9. Smith, Karen. Comissária da exposição Ma Ke, “A Vida Mais Intensa”, na Platform China, Pequim, de 20 de abril a 2 de junho de 2012.
  10. Cheng, François. Vazio e cheio: a linguagem pictórica chinesa. Seuil, 1991.
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Referência(s)

MA Ke (1970)
Nome próprio: Ke
Apelido: MA
Outro(s) nome(s):

  • 马轲 (Chinês simplificado)
  • 馬軻 (Chinês tradicional)

Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • China

Idade: 55 anos (2025)

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