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Mao Yan : Retratos quânticos de um mestre do cinza

Publicado em: 20 Fevereiro 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 7 minutos

No seu atelier de Nanjing, Mao Yan transforma o óleo em névoa e o cinza em filosofia. Os seus retratos são experiências quânticas tornadas visíveis, onde cada nuance de cinza contém multidões, como tantos universos paralelos possíveis.

Ouçam-me bem, bando de snobs. Passei horas a contemplar os retratos de Mao Yan, e tenho de vos dizer uma coisa: talvez estejamos todos enganados sobre a pintura contemporânea chinesa. Pensam que conhecem a arte chinesa com os vossos clichés sobre caligrafia e tinta? Deixem-me falar-vos deste artista que transforma óleo em neblina e o cinzento em filosofia.

No seu atelier em Nanjing, longe dos holofotes de Beijing e do caos do mercado de arte, Mao Yan cria retratos que estão tanto presentes como ausentes, como fantasmas presos entre dois mundos. As suas telas fazem-me pensar naqueles momentos em que acordamos de um sonho e durante alguns segundos não sabemos se ainda estamos a dormir ou já despertos. É exatamente isto que Mao Yan pinta: esse instante preciso em que a realidade e a ilusão se confundem.

Vamos dedicar um momento para falar de Marcel Proust e da sua obra-prima “À la recherche du temps perdu”. Tal como Proust que mergulha nos meandros da memória através de sete volumes de uma densidade alucinante, Mao Yan explora as profundezas da perceção através dos seus retratos espectrais. Não é por acaso que o artista cita Proust como uma grande influência. Nos seus retratos de Thomas, o seu modelo europeu que pinta há mais de uma década, Mao Yan capta o que Proust chamava “as intermitências do coração”, aqueles momentos em que o presente e o passado se entrechocam, onde a identidade se torna fluida como fumaça.

Os retratos de Thomas não são simples representações de um homem. São explorações do próprio tempo, como a madeleine de Proust que desencadeia uma torrente de memórias. Cada camada de tinta cinzenta que Mao Yan aplica meticulosamente é como uma estratigrafia de memória, criando uma profundidade que vai muito além da superfície da tela. É um processo que pode levar anos, assim como Proust levou anos para construir a sua obra monumental.

A conexão com Proust vai ainda mais longe. Os dois artistas partilham uma obsessão pela forma como a nossa percepção do mundo está constantemente em fluxo. Quando Proust escreve sobre como o rosto de Albertine muda conforme o ângulo e a luz, ele faz exatamente o que Mao Yan faz com os seus retratos onde as feições parecem dissolver-se e reformar-se consoante o nosso ponto de vista. É uma exploração da própria natureza da percepção e da memória.

Mas não é tudo. Falemos agora de Werner Heisenberg e do seu princípio da incerteza. Sabe, esse princípio fundamental da mecânica quântica que nos diz que nunca podemos conhecer simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula com precisão absoluta. Quanto mais tentamos definir um, mais o outro se torna indefinido. Os retratos de Mao Yan funcionam exatamente da mesma maneira.

Quanto mais tenta fixar o olhar nas feições dos seus retratos, mais parecem escapar-lhe. É como se Mao Yan tivesse traduzido o princípio da incerteza de Heisenberg em termos pictóricos. As suas figuras existem num estado de sobreposição quântica, ao mesmo tempo presentes e ausentes, definidas e indefinidas. Isto é particularmente visível na sua série “Thomas” onde o sujeito parece simultaneamente materializar-se e dissolver-se numa névoa de cinzentos.

Essa incerteza não é um defeito ou uma limitação, é precisamente o tema. Tal como Heisenberg nos mostrou que a incerteza é uma propriedade fundamental do universo, Mao Yan mostra-nos que ela é também uma propriedade fundamental da identidade humana. Os seus retratos não são desfocados por falta de técnica, são desfocados porque é a única forma honesta de representar a realidade da existência humana.

Veja como ele usa a luz nas suas obras. Os rostos emergem da escuridão como partículas quânticas aparecendo espontaneamente do vazio. Os contornos são deliberadamente indefinidos, como se o próprio acto de observação perturbasse o seu estado. É exatamente o que Heisenberg descobriu: o observador inevitavelmente afecta aquilo que observa. No caso de Mao Yan, cada olhar que lançamos sobre os seus retratos altera-os subtilmente.

E depois há a questão do tempo. Na mecânica quântica, o tempo não é a flecha linear que imaginamos na nossa experiência diária. Da mesma forma, nos retratos de Mao Yan, o tempo parece dobrar-se e torcer-se. Um só retrato pode conter anos de trabalho, camadas sobre camadas de tinta aplicadas pacientemente, criando uma espécie de testemunho visual temporal que desafia a nossa compreensão linear do tempo.

O que particularmente me interessa é a forma como Mao Yan usa o cinzento. Para ele, não é apenas uma cor, é todo um espectro de possibilidades, como os diferentes estados quânticos de uma partícula. Os seus cinzentos contêm multidões: por vezes quentes e quase respirando, outras vezes frios e distantes como o espaço interestelar. É como se cada nuance de cinzento fosse um universo paralelo possível, outra versão da realidade que poderia existir.

O próprio artista fala de querer que “cada canto da pintura esteja cheio de expressão”. É exatamente isso que o campo quântico faz, enche cada ponto do espaço de potencialidade. Nos retratos de Mao Yan, cada centímetro quadrado da tela vibra de possibilidades, mesmo as zonas aparentemente vazias. É o que Heisenberg chamaria flutuações do vazio, a ideia que mesmo o vazio nunca está realmente vazio, mas sempre cheio de energia potencial.

E falemos da sua técnica. A forma como Mao Yan constrói os seus retratos, camada após camada, recorda a forma como os físicos constroem os seus modelos quânticos. Cada camada de pintura é como uma função de onda, contribuindo para a probabilidade final de onde e como o sujeito aparecerá. O resultado final não é uma imagem fixa, mas uma constelação de possibilidades.

A sua exploração recente da abstração não é uma ruptura com o seu trabalho anterior, é uma extensão natural dessa abordagem quântica. Nas suas obras abstratas, ele leva ainda mais longe a ideia de incerteza e potencialidade. As formas geométricas flutuam como partículas no vazio, as suas posições e relações constantemente em fluxo.

Mas não se engane, isto não é arte conceptual fria e calculista. Há uma profunda humanidade no trabalho de Mao Yan, assim como há uma beleza profunda nas equações da mecânica quântica. Estes retratos são meditações sobre a natureza fundamental da existência humana, sobre como existimos simultaneamente em múltiplos estados, sobre como a nossa identidade está sempre em fluxo.

É por isso que o trabalho de Mao Yan é tão importante agora. Numa época em que estamos obcecados com certezas, em que queremos definir e categorizar tudo, ele lembra-nos que a incerteza não é apenas inevitável, é essencial. Como Heisenberg demonstrou para o mundo físico, Mao Yan mostra para o mundo humano que a indeterminação é uma propriedade fundamental da realidade.

Os seus retratos são janelas para uma verdade mais profunda: que todos nós somos, de certa forma, seres quânticos, existindo em múltiplos estados simultaneamente, as nossas identidades tão indomáveis quanto partículas subatómicas. E é precisamente essa indomabilidade que nos torna humanos.

O génio de Mao Yan é mostrar-nos essa verdade não através de fórmulas matemáticas ou teorias abstratas, mas através da materialidade sensorial da pintura. Os seus retratos são experiências de pensamento tornadas visíveis, meditações sobre a incerteza tornadas tangíveis. Convidam-nos a aceitar a ambiguidade fundamental da existência, não como uma limitação, mas como uma fonte de beleza e mistério.

Por isso, da próxima vez que olhar para um retrato de Mao Yan, não tente “compreender” ou “definir”. Deixe-se levar pela sua incerteza quântica. Deixe a sua percepção oscilar entre os diferentes estados possíveis, como uma partícula que dança entre probabilidades. Porque é aí que reside a verdadeira magia da sua arte, não no que define, mas no que deixa indefinido.

Num mundo obcecado pela precisão e pela certeza, Mao Yan oferece-nos algo mais precioso: uma janela para o indeterminado, uma celebração do incerto. Os seus retratos não são apenas obras de arte, são lições de física quântica para a alma.

E se pensa que estou a exagerar a comparação entre arte e física quântica, olhe mais uma vez para estes retratos. Veja como parecem mudar conforme o seu ponto de vista, como recusam ser fixados numa única interpretação, como existem num estado de possibilidades perpétuas. Não é exatamente isso que Heisenberg nos ensinou sobre a natureza fundamental da realidade?

Mao Yan não é apenas um pintor, é um físico do visível, um explorador das fronteiras difusas entre o ser e o não-ser. E os seus retratos não são apenas imagens, são experiências de pensamento visuais que nos convidam a questionar tudo o que pensamos saber sobre a realidade, identidade e perceção.

Num mundo cada vez mais polarizado, onde tudo tem de ser preto ou branco, Mao Yan recorda-nos a beleza e a verdade do cinzento, não como um compromisso ou indecisão, mas como um estado de possibilidades infinitas. E não é isso, afinal, sobre o que a arte deveria falar?

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Referência(s)

MAO Yan (1968)
Nome próprio: Yan
Apelido: MAO
Outro(s) nome(s):

  • 毛焰 (Chinês simplificado)

Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • China

Idade: 57 anos (2025)

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