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Matthew Lutz-Kinoy : Geografias do corpo

Publicado em: 13 Novembro 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 11 minutos

Matthew Lutz-Kinoy cria pinturas monumentais, cerâmicas e performances que exploram a identidade, o desejo e o prazer. A sua obra atravessa culturas e épocas, buscando na literatura clássica japonesa e no artesanato brasileiro para construir espaços onde o corpo se torna o lugar de todas as possibilidades.

Ouçam-me bem, bando de snobs : Matthew Lutz-Kinoy não é um artista comum, e esta evidência impõe-se desde o primeiro contacto com a sua obra polimorfa. Nascido em 1984 em Nova Iorque, dividido entre Paris e Los Angeles, este homem-orquestra uma prática que desafia qualquer tentativa de categorização preguiçosa. A sua produção artística desdobra-se numa multiplicidade de meios, cerâmica, pintura de grande formato, performance, dança e escultura, como tantos territórios que percorre com uma curiosidade insaciável e uma erudição manifesta. Mas seria um erro monumental ver nesta diversidade técnica um simples oportunismo ou uma dispersão de amador. Pelo contrário, cada meio torna-se em Lutz-Kinoy o vetor de uma reflexão aprofundada sobre representação, identidade, prazer corporal e construção narrativa. O seu trabalho alimenta-se abundantemente de referências históricas, atravessando sem complexos o rococó, o expressionismo abstrato, o orientalismo e as tradições artesanais brasileiras e japonesas, tecendo assim uma teia complexa onde passado e presente dialogam numa tensão produtiva.

Uma das chaves para compreender a obra de Lutz-Kinoy reside na sua relação íntima com a literatura clássica japonesa, mais precisamente com o Genji Monogatari de Murasaki Shikibu, considerado um dos primeiros romances da história literária mundial. Escrito no início do século XI, este monumento da literatura japonesa relata as aventuras amorosas e a vida refinada do príncipe Genji na corte imperial de Heian-kyo. Esta obra literária não é para Lutz-Kinoy uma simples fonte de inspiração superficial, mas constitui verdadeiramente uma estrutura narrativa que ele reinveste na sua própria produção artística. Em 2015, durante a sua exposição em São Paulo intitulada Princess PomPom in the Villa of Falling Flowers, o artista utiliza explicitamente o relato de Murasaki como fundamento conceptual. Numa entrevista com o crítico Tenzing Barshee, Lutz-Kinoy explica a sua abordagem: “Foi interessante utilizar O Conto de Genji como estrutura. Porque tem a forma de uma narrativa pré-existente da qual não tem de assumir a responsabilidade, existe fora de si e da sua própria formação de sentido. Pode, portanto, usá-la como uma estrutura formal, o que lhe permite trabalhar com mais liberdade” [1]. Esta declaração revela uma dimensão essencial da sua prática artística: a utilização de narrativas pré-existentes como armaduras que permitem uma maior liberdade criadora. O Genji Monogatari não é então apenas um motivo decorativo ou uma referência cultural elegante, mas um dispositivo estrutural que autoriza Lutz-Kinoy a explorar temáticas contemporâneas, nomeadamente as questões de género, transição corporal e prazer, através do prisma de uma narração milenar. Esta estratégia permite-lhe criar um espaço de projeção onde o corporal e o narrativo se encontram sem que um esmaga o outro.

O interesse de Lutz-Kinoy pela literatura japonesa não deriva de um exotismo fácil ou de uma apropriação cultural inconsciente. O artista estabelece pontes conceptuais entre os contextos culturais que atravessa. No Brasil, observa a importante comunidade de origem japonesa e sente uma conexão entre o seu próprio estatuto de estrangeiro e esta história migratória complexa. Mas, mais fundamentalmente, encontra no Genji um modelo para articular o que ele chama de “frivolidade corporal” que observa em São Paulo, nomeadamente nos espaços queer e durante a Gay Pride, com “o peso pesado de uma narrativa social”. As personagens do Genji, desgenerificadas no seu trabalho pictórico, tornam-se avatares contemporâneos que permitem explorar as zonas de fluidez identitária e de desejo. As pinturas de grande formato criadas para esta série apresentam figuras ambíguas, frequentemente instaladas como fundos ou biombo, convidando o espectador a penetrar na história “através da textura e não através do texto” [2], como destaca a documentação da exposição no Kim? Contemporary Art Centre. Esta abordagem tátil, que privilegia o toque e a materialidade em detrimento da leitura linear, testemunha uma compreensão sofisticada da forma como as narrativas podem encarnar-se no espaço tridimensional. Os pompons cosidos nas telas acrescentam uma dimensão tátil e ornamental, criando aquilo que Lutz-Kinoy designa por “frivolidade para além do plano pictórico” enquanto mantém “uma atmosfera pesada”. Esta tensão entre leveza decorativa e densidade narrativa caracteriza toda a sua abordagem ao Genji, que mobiliza não como um objeto de museu mas como uma matriz viva para pensar o presente.

Para além desta dimensão literária, a prática de Matthew Lutz-Kinoy ancorase profundamente no universo da dança e da performance. Esta orientação não é acessória mas constitui verdadeiramente o coração da sua abordagem artística. Formado em teatro e coreografia, Lutz-Kinoy pensa o espaço expositivo como um local potencial de movimento, um teatro em potência onde os corpos, o do artista, os dos colaboradores, os dos espetadores, podem desenvolver-se e interagir. As suas performances assumem formas variadas: produções dançadas em vários atos, jantares itinerantes, eventos programados no âmbito das suas exposições. Esta multiplicidade testemunha uma conceção alargada da performance, que não se limita à dança no sentido estrito mas engloba toda a situação em que o corpo se torna vetor de significado e de relação social. O historiador de arte compreende imediatamente que estamos perante um artista para quem a performance não é um meio entre outros, mas o princípio organizador de toda a sua produção.

Em 2013, Lutz-Kinoy apresenta Fire Sale no OUTPOST Studios em Norwich, uma performance que cristaliza de forma exemplar a sua abordagem da dança como processo de objetivação e indexação. O artista dança exaustivamente em torno de uma caixa em chamas até que ela se consuma totalmente, revelando uma série de relevos cerâmicos figurativos extraídos das cinzas. Esta performance constitui, nas suas próprias palavras, “um medley das [suas] performances de dança mais populares” [3], criando assim um índice de trabalhos anteriores que se encontra simultaneamente objetivado e transferido para objetos endurecidos. A obra interroga de forma incisiva a problemática inerente à documentação da performance, essa zona desconfortável situada entre a ansiedade que precede qualquer documento e a experiência do trabalho em si. Lutz-Kinoy recusa a hierarquia tradicional que coloca a performance como evento principal e a sua documentação como rasto secundário. Pelo contrário, ele cria um dispositivo onde o gesto performativo produz diretamente objetos que possuem a sua própria autonomia narrativa. As cerâmicas que emergem do fogo não são simples memórias da dança, mas obras emancipas que desenvolvem a sua própria biografia.

Esta abordagem encontra um prolongamento teórico na colaboração do artista com Silmara Watari, ceramista brasileira que estudou olaria durante treze anos no Japão. Juntos, produzem cerâmicas cozidas em um forno anagama, processo que integra literalmente o movimento e o acaso na matéria. A cozedura dura cerca de cinco dias, durante os quais as cinzas de madeira se depositam nas superfícies cerâmicas aquecidas a aproximadamente 1250 graus Celsius, criando cores e texturas imprevisíveis. Este processo torna-se em si mesmo uma forma de performance onde o fogo “dança” através do forno antropomórfico, como descreve Tenzing Barshee: “A cinza agitada por um pau ou pá, executando uma espécie de dança do fogo, cria uma turbulência através da qual as cinzas aderem às cerâmicas incandescentes. Os flocos de cinza cavalgam o ar quente como pássaros ou uma borboleta” [4]. Esta imagem poética captura a essência da prática de Lutz-Kinoy: o movimento inscreve-se na matéria, a dança fossiliza-se sem perder a sua energia cinética. As cerâmicas tornam-se assim arquivos tridimensionais do gesto, testemunhas materiais de um processo performativo que ultrapassa largamente a simples presença do artista.

O corpo permanece a figura mais proeminente em todo o trabalho de Lutz-Kinoy, seja pela representação direta ou como escala de dimensão. Estes corpos são frequentemente fragmentados, desmembrados, dispersos no espaço da exposição, criando algo que se poderia comparar a uma antiga sepultura onde as diferentes partes, cérebro, pulmão e fígado, estariam conservadas em recipientes separados. Esta distribuição corporal não tem nada de macabro; antes participa de uma reflexão sobre a forma como o corpo se projeta nos objetos e reciprocamente. Os vasos cerâmicos, construídos em relação ao corpo humano segundo as tradições ancestrais da cerâmica, tornam-se extensões antropomórficas, próteses narrativas que permitem pensar a encarnação de forma diferente do seu todo orgânico. Esta abordagem encontra uma ressonância particular nas observações do artista sobre os corpos em transição que ele encontra durante a Gay Pride de São Paulo, esses corpos “com pequenos seios que crescem”, essas três milhões de pessoas que constituem “uma cidade inteira”. Lutz-Kinoy não projeta os seus próprios fantasmas nesses corpos, mas reconhece neles um “espaço de potencial, um tipo diferente de narrativa” que informa diretamente a sua compreensão da figuração como espaço de projeção em vez de metáfora.

A dimensão colaborativa da prática de Lutz-Kinoy merece também uma atenção especial pois não é simplesmente anedótica mas constitutiva do seu método. O artista colabora regularmente com outros criadores, Tobias Madison para uma produção teatral baseada na obra de Shuji Terayama, SOPHIE para a banda sonora de algumas performances, Natsuko Uchino para projetos cerâmicos e planeamento de refeições. Estas colaborações não são simples adições de competências mas espaços de desenvolvimento de saberes que enriquecem mutuamente as práticas envolvidas. Lutz-Kinoy inscreve-se assim numa linhagem de artistas para quem a colaboração não é um compromisso, mas uma expansão das possibilidades criativas. Esta abordagem, profundamente influenciada pelas histórias de práticas queer e colaborativas, reconhece que a criação artística nunca é puramente individual mas sempre produto de redes de influências, aprendizagens e trocas. As cerâmicas produzidas com Watari, por exemplo, levam a marca de treze anos de estudos japoneses da ceramista, da história da imigração japonesa no Brasil, das técnicas ancestrais do forno anagama, mas também da visão de Lutz-Kinoy sobre aquilo que ele chama de “a fantasia social que envolve o artesanato”. Esta última expressão é reveladora: o artista não se interessa tanto pela técnica pura de fabrico, mas pelas narrativas e desejos que se agregam em torno dos objetos artesanais, pela sua capacidade de veicular imaginários coletivos.

As pinturas de grande formato de Lutz-Kinoy, frequentemente instaladas como fundos, tapeçarias ou tetos suspensos, criam ambientes imersivos que desafiam a frontalidade tradicional da pintura. Estas obras não exigem ser contempladas à distância, mas convidam fisicamente o espectador a habitar o seu espaço. Elas reivindicam abertamente, segundo as palavras do próprio artista, “o prazer, a cor, a intimidade, o movimento” como questões centrais. Esta reivindicação não é inocente no contexto da arte contemporânea onde o prazer visual durante muito tempo foi suspeito, associado a uma suposta superficialidade ou a uma complacência decorativa. Lutz-Kinoy assume plenamente esta dimensão hedonista do seu trabalho pictórico, recusando a hierarquia implícita que valorizaria a austeridade conceptual em detrimento do gozo sensual. As suas telas abraçam a sofisticação refinada do século XVIII enquanto incorporam elementos do expressionismo abstrato e influências orientalistas, criando assim sobreposições visuais complexas onde as camadas históricas coexistem sem hierarquia temporal.

O que surpreende na obra de Matthew Lutz-Kinoy é a maneira como cada meio alimenta os outros num sistema de vasos comunicantes. As performances informam as cerâmicas que informam as pinturas que informam novamente as performances, criando um ecossistema criativo onde nenhum meio domina. Esta horizontalidade na abordagem das diferentes técnicas testemunha uma compreensão madura da criação artística como processo e não como produção de objetos isolados. O artista posiciona-se no centro desta prática, não como demiurgo autoritário mas como orquestrador de um conjunto de possibilidades, capaz simultaneamente de dirigir e de minar o seu próprio papel na produção da obra. Esta auto-reflexividade, esta consciência aguda da sua própria posicionalidade enquanto artista, impede qualquer leitura ingénua ou complacente do seu trabalho.

A obra de Lutz-Kinoy interroga também de forma implícita mas constante as estruturas interiores e exteriores que organizam a arte, o social e o eu. Ao atravessar a história da representação do rococó ao expressionismo abstrato, ao combinar alta e baixa cultura, tradição artesanal e práticas contemporâneas, ele destaca o arbitrário dessas categorizações. As suas exposições são realizadas como espaços escultóricos onde as diferentes formas físicas e os diferentes meios, cerâmicas, pinturas, desenhos, interagem para criar uma espacialidade específica. Os desenhos em forma de rolo funcionam como dispositivos narrativos em lugar da linguagem, explicando esquematicamente a estrutura da exposição sem recorrer à textualidade convencional. Esta abordagem reconhece que o significado se constrói tanto pela organização espacial das obras como pelo seu conteúdo intrínseco.

Parece que Matthew Lutz-Kinoy desenvolve uma prática artística de uma raríssima coerência conceptual apesar de, ou antes graças à, sua diversidade formal. A sua obra constrói pacientemente um território onde o movimento e a estase, a narrativa e a matéria, o passado e o presente, o Oriente e o Ocidente, o prazer e o político coexistem sem se anularem mutuamente. Mobilizando a literatura japonesa clássica como estrutura narrativa e a dança como princípio organizador, o artista propõe uma alternativa aos discursos dominantes da arte contemporânea, frequentemente prisioneiros de um presentismo amnésico ou de uma fascinação tecnológica superficial. Lutz-Kinoy lembra-nos que as questões mais urgentes do presente, identidade, género, desejo e pertença, podem ser articuladas através de formas herdadas do passado, desde que sejam reativadas com inteligência e sensibilidade. O seu trabalho constitui uma demonstração eloquente de que a erudição não é incompatível com a sensualidade, que o rigor conceptual pode coexistir com a generosidade visual, e que a arte contemporânea ainda pode surpreender recusando as facilidades do cinismo ou da ironia fácil. Num mundo saturado de imagens instantâneas e gestos convencionais, Lutz-Kinoy constrói lenta e pacientemente um universo onde cada elemento conta e onde a beleza nunca é gratuita mas sempre portadora de múltiplos significados. A sua obra convida-nos a abrandar, a olhar com mais atenção, a tocar em vez de simplesmente ver, a dançar em vez de ficar imóveis. E nesta convocação reside talvez a sua contribuição mais preciosa para a arte do nosso tempo.


  1. Matthew Lutz-Kinoy, entrevista com Tenzing Barshee, “Social Fantasy”, Mousse Magazine, n.º 56, 2017.
  2. Documentação da exposição “Matthew Lutz-Kinoy: Princess pompom in the villa of falling flowers”.
  3. Tenzing Barshee, “Fire Sale”, texto da exposição, Mendes Wood DM, São Paulo.
  4. Ibid.
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Referência(s)

Matthew LUTZ-KINOY (1984)
Nome próprio: Matthew
Apelido: LUTZ-KINOY
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Estados Unidos

Idade: 41 anos (2025)

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