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Merab Abramishvili: Os jardins do absoluto

Publicado em: 7 Dezembro 2024

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

Os mandalas paradisíacos de Merab Abramishvili, com seus motivos repetitivos e seus símbolos interligados, representam uma tentativa única de criar imagens dialéticas onde o passado e o presente se encontram. As suas composições circulares transcendem a mera decoração para alcançar uma sofisticação filosófica notável.

Ouçam-me bem, bando de snobs, é mais do que tempo de falarmos a sério sobre Merab Abramishvili (1957-2006), este artista georgiano que conseguiu transcender as fronteiras entre tradição e modernidade com uma audácia que a maioria de vocês, pequenos colecionadores perdidos nas vossas certezas contemporâneas, provavelmente nunca conseguirá compreender completamente.

Na cacofonia pós-soviética dos anos 1980, enquanto a Geórgia lutava com as angústias da sua identidade cultural, Abramishvili escolheu um caminho singular que faria as vossas instalações de vídeo parecerem meros divertimentos de feira. Formado na Academia de Artes de Tbilisi, onde se licenciou em 1981, mergulhou nas profundezas da arte medieval georgiana, não para a copiar servilmente como fariam estudantes de primeiro ano de arte, mas para extrair a essência e transmutá-la em algo radicalmente novo.

A técnica de gesso que usava, inspirada nas frescas de Ateni Sioni que estudou na juventude ao lado do seu pai Guram Abramishvili, não era uma simples reprodução técnica, deixem de acenar com a cabeça como se compreendessem, vocês que confundem originalidade com provocação fácil. Não, era uma reinvenção completa do meio pictórico. Quando aplicava as suas sucessivas camadas de branco de Meudon sobre as suas tábuas, era como se o próprio Martin Heidegger guiasse a sua mão numa busca do ser-no-mundo autêntico. Cada camada de preparação era meticulosamente lixada, criando uma superfície que não era simplesmente um suporte, mas tornava-se parte integrante da obra em si, tal como Maurice Merleau-Ponty falava da carne do mundo que não é nem pura matéria nem puro espírito.

As cores que usava, ligadas a gema de ovo (técnica da têmpera), criavam uma luminosidade particular que faz os vossos néons artísticos parecerem tão subtis quanto uma placa de farmácia. Esta técnica dominada da Idade Média não era apenas uma demonstração de virtuosismo, vejo já alguns de vocês revirarem os olhos, mas deixem-me acabar. Era uma pesquisa profunda sobre a própria natureza da representação pictórica, uma exploração que se cruza com as reflexões de Jacques Derrida sobre a trace e a presença.

Tomemos a sua série “Jardins do Paraíso”, que faz as vossas instalações vegetais na moda parecerem o equivalente a uma pequena horta suburbana. Estas obras não são simples representações de um paraíso perdido, acordem, isto não é uma aula de iconografia para principiantes. Cada tela é uma meditação profunda sobre a nossa relação com o tempo e o espaço. As árvores com raízes aparentes que pinta não estão lá para embelezar, como as vossas plantas em vasos nas vossas galerias assépticas. Elas incorporam o que Gilles Deleuze chamava rizoma, uma estrutura de pensamento não hierárquica que desafia as nossas conceções tradicionais de ordem e caos.

A maneira como ele estrutura as suas composições, com esses grandes espaços vazios que dialogam com detalhes de uma precisão obsessiva, cria aquilo que Theodor Adorno teria chamado de uma dialética da presença e da ausência. Esses vazios não são erros de composição como alguns críticos míopes sugeriram, são tão essenciais à obra quanto o silêncio na única sinfonia de Yves Klein. Eles criam um espaço de respiração que permite ao olho e à mente contemplar o infinito, um pouco como quando Emmanuel Levinas fala do infinito que se revela no rosto do outro.

Nas suas representações do “Caminho da Seda” e nas suas séries sobre o “Harém”, Abramishvili não se limita a fazer turismo cultural como tantos artistas ocidentais que se apropriam superficialmente da estética oriental. Ele cria uma verdadeira síntese entre as tradições pictóricas georgiana e persa, uma fusão que teria feito sorrir Claude Lévi-Strauss, pois ilustra perfeitamente a sua teoria do bricolage cultural. Os detalhes minuciosos das suas miniaturas, combinados com a escala monumental das suas composições, criam uma tensão visual que desafia as nossas expectativas habituais.

A sua série “300 Aragvianos”, pintada em 1987, não é apenas uma simples celebração histórica para turistas sedentos de exotismo. É uma reflexão profunda sobre a natureza do sacrifício e do heroísmo, que ecoa as análises de Giorgio Agamben sobre o estado de exceção. A forma como ele trata as figuras, simultaneamente presentes e ausentes, sólidas e evanescentes, cria uma ambiguidade visual que nos força a repensar a nossa relação com a história e a memória coletiva.

As cenas religiosas de Abramishvili, como a sua “Anunciação” ou a sua “Crucificação”, não são ilustrações piedosas para calendário paroquial, eu vejo alguns de vocês rirem-se, mas o vosso cinismo só revela a vossa ignorância. Estas obras são explorações filosóficas profundas sobre a natureza do sagrado no nosso mundo desencantado. A forma como ele trata a luz nestas composições, criando efeitos de transparência graças às múltiplas lavagens de superfície, junta-se às reflexões de Georges Bataille sobre a experiência interior e a transgressão dos limites.

A sua técnica de lavagem repetida das superfícies não era um simples efeito estilístico, parem de pensar como decoradores de interiores. Era um método que criava uma profundidade paradoxal, uma superfície que parece ao mesmo tempo sólida e imaterial. Esta abordagem ecoa as teorias de Jean Baudrillard sobre a simulação e o simulacro, criando imagens que são mais reais do que a própria realidade. A translucidez obtida assim não é um simples efeito óptico, mas uma metáfora visual da nossa relação complexa com o real e a ilusão.

Nas suas últimas obras, nomeadamente nos seus mandalas paradisíacos, Abramishvili alcança um nível de sofisticação que faz a maioria das produções contemporâneas parecer tão superficiais quanto um filtro do Instagram. Estas composições circulares, com os seus motivos repetitivos e os seus símbolos interligados, não são simples exercícios decorativos para amadores de espiritualidade new age. Representam uma tentativa de criar aquilo que Walter Benjamin chamou de uma “imagem dialética”, onde o passado e o presente se encontram numa constelação de sentidos.

A forma como ele trata os animais nas suas composições não tem nada a ver com as vossas pequenas provocações conceptuais sobre a condição animal. As suas criaturas, sejam elas reais ou fantásticas, possuem uma presença que transcende a simples representação naturalista. Elas incorporam o que Friedrich Nietzsche chamava de dionisíaco, uma força vital que desafia as nossas categorias racionais. Cada animal é pintado com uma precisão que lembra os bestiários medievais, mas a sua presença na composição cria uma tensão moderna que nos obriga a repensar a nossa relação com o mundo natural.

A sua paleta cromática, com os seus tons profundos e as suas transparências subtilíssimas, não é o resultado de uma simples pesquisa estética. Participa numa reflexão profunda sobre a natureza da própria percepção visual, juntando-se às teorias de Rudolf Arnheim sobre a psicologia da forma. As cores não são simplesmente aplicadas na superfície, parecem emanar do interior mesmo da obra, criando aquilo que Gaston Bachelard teria chamado de uma “poética do espaço” pictórica.

A influência das frescas georgianas no seu trabalho não se limita a uma simples questão técnica. Está em jogo toda uma concepção do espaço pictórico, uma forma de pensar a superfície não como um simples limite bidimensional, mas como um lugar de manifestação do sagrado. Esta abordagem junta-se às reflexões de Mircea Eliade sobre o espaço sagrado e o espaço profano, criando obras que funcionam como hierofanias contemporâneas.

A forma como Abramishvili estrutura as suas composições, com estas alternâncias de vazios e cheios, de zonas detalhadas e de espaços depurados, cria um ritmo visual que não é sem lembrar as análises de Henri Maldiney sobre o ritmo como fundamento da experiência estética. Cada quadro torna-se assim um espaço de respiração onde o olhar pode perder-se e reencontrar-se, criando uma experiência contemplativa que desafia os nossos hábitos de consumo rápido das imagens.

As suas últimas obras, realizadas pouco antes da sua morte em 2006, mostram uma evolução para uma luminosidade cada vez mais etérea, como se o artista procurasse transcender os limites da própria materialidade pictórica. Esta busca não era uma simples pesquisa formal, deixem de pensar como técnicos de superfície. Era uma exploração profunda do que Michel Henry chamava a “fenomenologia da vida”, uma tentativa de tornar visível o invisível sem o reduzir a simples efeitos visuais.

A dimensão simbólica do seu trabalho, particularmente nas suas representações do paraíso, não se reduz a uma simples reciclagem de motivos tradicionais. Cada elemento é repensado, reinventado, numa abordagem que lembra o que Paul Ricoeur dizia sobre o símbolo como estrutura de duplo sentido. As árvores, os animais, as figuras humanas tornam-se os elementos de uma linguagem pictórica que transcende as oposições tradicionais entre abstração e figuração.

E se acharem que sou demasiado severo com a arte contemporânea, é porque não entenderam o essencial: Abramishvili mostra-nos precisamente aquilo que falta a tantas produções atuais, uma profundidade que não confunde complexidade conceptual com obscuridade gratuita, uma mestria técnica que não se reduz à virtuosidade vazia, uma espiritualidade que não cai na nova era barata.

A sua capacidade de fundir as influências orientais e ocidentais foi uma verdadeira transmutação alquímica que criou algo radicalmente novo, mas permanecendo profundamente enraizado nas tradições que reinventava. Esta abordagem faz dele um artista verdadeiramente contemporâneo no sentido que Giorgio Agamben lhe dá: alguém que, estando do seu tempo, toma distância dele para melhor o compreender.

O seu legado não reside tanto numa influência direta sobre outros artistas, a sua abordagem era demasiado pessoal, demasiado exigente para ser simplesmente imitada, mas na demonstração de que ainda é possível criar uma arte que fala de transcendência sem cair no kitsch, de tradição sem cair no passado, de espiritualidade sem ceder ao misticismo new age. Uma arte que, como dizia Theodor Adorno a propósito da música de Schönberg, mantém a sua promessa de felicidade precisamente ao recusar as consolação fáceis de uma beleza convencional.

É por isso, bando de snobs que se gabam das suas últimas aquisições digitais, que é tempo de olhar verdadeiramente para a obra de Abramishvili. Não como uma curiosidade exótica vinda do Oriente, mas como um desafio lançado à nossa própria concepção do que a arte pode e deve ser no século XXI. Um desafio que nos obriga a repensar não só a nossa relação com a tradição e a modernidade, mas também a nossa compreensão do que significa criar num mundo que parece ter perdido os seus referenciais espirituais e estéticos.

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Referência(s)

Merab Guramovich ABRAMISHVILI (1957-2006)
Nome próprio: Merab Guramovich
Apelido: ABRAMISHVILI
Outro(s) nome(s):

  • მერაბ აბრამიშვილი (Georgiano)

Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Geórgia

Idade: 49 anos (2006)

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