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Michaël Borremans : Beleza e terror existencial

Publicado em: 4 Maio 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

Michaël Borremans explora as ambiguidades da condição humana através de uma pintura figurativa tecnicamente virtuosa. As suas composições enigmáticas apresentam personagens isolados em situações absurdas, criando um universo pictórico onde a beleza formal convive constantemente com o estranho inquietante e onde o familiar se torna profundamente perturbador.

Ouçam-me bem, bando de snobs, vocês pensam que sabem tudo sobre arte contemporânea, mas enquanto admiram uma banana colada numa parede a perguntar-se se não ficaria melhor com uma maçã, Michaël Borremans, calmamente refugiado no seu atelier em Gante, Bélgica, propõe-nos uma das pinturas mais perturbadoras e sedutoras da nossa época. Digo “nós”, porque sim, incluo mesmo os mais recalcitrantes de vocês nesta experiência coletiva.

Borremans apareceu no mundo da arte como um fantasma anacrónico, um espectro pictórico que nos assombra com quadros que flertam constantemente com o desconforto e a beleza. Formado inicialmente como fotógrafo na escola Sint-Lucas de Gante, só virou-se para a pintura aos 34 anos, provando que a vocação artística não espera necessariamente pela adolescência para se manifestar. Esta chegada tardia à pintura explica talvez esta maturidade técnica imediata, esta segurança no manuseio do meio, como se os anos de observação tivessem permitido uma perfeita incubação do seu estilo.

Ao olhar para os seus quadros, não podemos deixar de pensar em Velázquez, em Manet, em Degas. Mas reduzir Borremans a essas influências seria como descrever um icebergue falando apenas da sua ponta. Porque, se a técnica lembra os grandes mestres, o conteúdo é decididamente contemporâneo, impregnado de uma inquietante estranheza que nos fala da nossa condição atual. As suas personagens parecem flutuar num espaço-tempo indefinido, desligadas de qualquer contexto geográfico ou histórico. Estão suspensas num vazio narrativo, como actores à espera das instruções num estúdio de filmagem abandonado.

O que me agrada na sua obra é essa capacidade de criar imagens que parecem ao mesmo tempo familiares e profundamente perturbadoras. Tome “The Angel” (2013), esta mulher com um vestido rosa pálido cujo rosto foi completamente coberto de preto. A composição é clássica, a luz perfeitamente controlada, mas o anonimato forçado do modelo cria uma tensão irresolúvel. Ou então as suas séries “Black Mould”, onde figuras com capuzes pontiagudos dançam numa coreografia ritual tão cómica quanto inquietante. Estas figuras encapuzadas evocam simultaneamente a Ku Klux Klan, os penitentes da Semana Santa espanhola, os prisioneiros de Abu Ghraib e os monges medievais. Borremans joga com estas referências para criar um desconforto que transcende a época e fala da permanência dos ritos, da violência e da absurdidade humana.

A obra de Borremans insere-se profundamente numa reflexão cinematográfica, não só pelas suas composições enquadradas como planos fixos, mas também pela própria conceção da imagem. “Tudo está sempre encenado”, confessa ele, “quanto mais me limito, mais obtenho expressão” [1]. Esta abordagem transforma os seus quadros em cenários, em espaços cénicos onde se desenrola um drama silencioso cujo guião completo nunca conheceremos. Tal como no cinema de Lynch ou Bergman, a ausência de explicação narrativa torna-se mais eloquente do que qualquer relato explícito.

O que Borremans compreende melhor do que a maioria dos pintores atuais é o poder de sedução inerente ao meio. Ele usa a beleza como isca, como uma ferramenta estratégica para capturar a nossa atenção antes de nos mergulhar num universo muito mais complexo e ambíguo. “A beleza tem uma função de sedução”, admite ele sem falsa modéstia. Mas essa beleza nunca é gratuita, nunca decorativa. É o cavalo de Troia que permite ao artista infiltrar as nossas defesas estéticas para nos confrontar melhor com as nossas próprias contradições.

O que torna o seu trabalho tão relevante hoje é precisamente essa capacidade de desmontar os mecanismos da imagem contemporânea enquanto utiliza a linguagem ancestral da pintura. Numa época em que somos bombardeados com imagens digitais efémeras, onde a velocidade de circulação prevalece sobre a contemplação, os quadros de Borremans impõem uma temporalidade diferente. Eles obrigam-nos a abrandar, a observar, a perder-nos nos seus detalhes e mistérios.

Tomemos a sua série “Fire from the Sun” (2017), estas cenas perturbadoras que mostram crianças rechonchudas, nuas, a brincar no meio do que parecem ser membros humanos dilacerados. Estes quadros provocaram uma grande controvérsia quando o seu livro “As Sweet as It Gets” apareceu num anúncio da Balenciaga em 2022. Para Borremans, foi “a melhor coisa possível” [2]. Finalmente viam nele um artista subversivo! Esta polémica revela a nossa hipocrisia coletiva: toleramos a violência e o horror nas notícias diárias, nas séries televisivas que consumimos avidamente, mas ficamos chocados quando aparecem num contexto artístico onde se tornam um espelho da nossa própria monstruosidade.

A abordagem de Borremans insere-se numa tradição pictórica que questiona a nossa relação com a imagem e a realidade. Tal como Magritte antes dele, outro pintor belga fascinado pela estranheza do quotidiano, ele usa a representação para melhor evidenciar os seus limites e paradoxos. “É realmente uma questão filosófica sobre o que pode ser a verdade”, explica ele. “E a verdade está tanto na mentira quanto em algo direto ou honesto” [3]. Esta desconfiança em relação às certezas visuais está no coração do seu percurso, como um lembrete constante de que toda imagem é uma construção, nunca uma verdade absoluta.

O teatro desempenha também um papel essencial no universo de Borremans. As suas personagens são frequentemente apresentadas como atores vestindo roupas estranhas, disfarces que os transformam em objetos em vez de sujeitos. “De certa forma, eu objetifico os humanos”, admite ele. “Eu pinto-os como se fossem naturezas-mortas” [4]. Esta objetificação não é um exercício de estilo gratuito, mas uma reflexão profunda sobre a nossa condição contemporânea, onde o indivíduo é cada vez mais reduzido à sua superfície, à sua imagem, perdendo gradualmente a sua substância e interioridade.

O humor negro que atravessa a sua obra é frequentemente negligenciado pelos críticos demasiado sérios para o perceber. No entanto, constitui uma dimensão essencial do seu trabalho. Perante “The Badger’s Song”, esta cena absurda onde um texugo (ou um urso ?) apresenta uma folha branca a um grupo de figuras com capuzes, como não sorrir perante o absurdo da situação? O próprio Borremans insiste na importância do riso: “O humor é essencial em todas as coisas e em cada situação. Levar-se demasiado a sério é uma forma de arrogância” [5]. Este humor funciona como um contraponto necessário à gravidade dos temas abordados, criando uma tensão dialética que enriquece a experiência do espetador.

Mas o aspeto talvez mais fascinante do trabalho de Borremans é a sua consciência aguda da fisicalidade da pintura. Ao contrário de tantos artistas contemporâneos que delegam a execução das suas obras, ele insiste em fazer tudo ele próprio, “até a preparação das camadas de fundo, até a limpeza dos pincéis” [6]. Esta implicação total no processo material confere às suas telas uma presença, uma energia que nenhuma produção delegada poderia alcançar. “Pintar é muito físico”, afirma ele. “Mesmo quando pinto em pequena escala, pinto com todo o meu corpo. Movimento-me mesmo quando trabalho numa mesa. É uma espécie de energia, e a energia passa para a pintura” [7].

Esta energia é palpável em cada uma das suas obras. A matéria pictórica é ao mesmo tempo sensual e espectral, criando uma superfície que atrai e repele simultaneamente. Os rostos das suas personagens parecem emergir da tela como aparições, as suas carnagens iluminadas por uma luz interior que contrasta com os fundos escuros e indefinidos. Este domínio técnico nunca é ostensivo; serve sempre o propósito, a ambiguidade narrativa que o artista procura criar.

A questão do tempo é também central no seu trabalho. As suas telas parecem existir num presente perpétuo, fora de qualquer cronologia identificável. As roupas das suas personagens são deliberadamente ambíguas, não permitindo nenhuma datação precisa. “Queria tornar o contexto difuso. As roupas estão um pouco fora do tempo”, explica ele. “Não está no passado. Não está nem no futuro” [8]. Esta intemporalidade não é uma fuga nostálgica, mas uma estratégia para falar do presente sem os limites de uma representação literal.

O que faz a singularidade de Borremans no panorama artístico contemporâneo é talvez esta posição paradoxal: utilizar um meio ancestral para criar imagens profundamente atuais, empregar técnicas tradicionais para explorar questões resolutamente contemporâneas. “Considero-me claramente um pintor contemporâneo. Uso um meio antigo, mas é apenas um meio fodido” [9], diz ele com a franqueza desarmante que o caracteriza.

A sua arte recorda-nos que a pintura não está morta, ao contrário do que alguns profetas do desastre proclamaram. Ela está simplesmente libertada das suas funções tradicionais, tornando-se um espaço de exploração mais aberto, também mais arriscado. Num mundo saturado de imagens digitais efémeras, os quadros de Borremans oferecem uma forma de resistência, não por nostalgia de uma idade de ouro passada, mas pela criação de experiências visuais que desafiam a nossa relação habitual com as imagens.

Então, da próxima vez que visitar uma exposição de Michaël Borremans, esqueça os seus preconceitos sobre a pintura contemporânea. Deixe-se cativar por estas figuras enigmáticas, estas cenas suspensas entre o banal e o estranho. E talvez, ao deparar-se com um quadro particularmente perturbador, surpreenda-se a rir nervosamente perante a absurdidade sublime que ele propõe. Porque é exatamente aí que reside a força da sua obra: na capacidade de nos fazer sentir simultaneamente a inquietação e o prazer, a beleza e o horror, o riso e a angústia. Uma experiência completa, contraditória e profundamente humana.


  1. Borremans, Michaël. Entrevista com Harriet Lloyd-Smith para a Plaster Magazine, junho de 2024.
  2. Borremans, Michaël. Entrevista com Emily Steer para a AnOther Mag, dezembro de 2024.
  3. Borremans, Michaël. Entrevista com Martin Herbert para a ArtReview, junho de 2015.
  4. Borremans, Michaël. Entrevista com Harriet Lloyd-Smith para a Plaster Magazine, junho de 2024.
  5. Idem.
  6. Borremans, Michaël. Entrevista com Daiga Rudzāte para a Arterritory, novembro de 2020.
  7. Idem.
  8. Borremans, Michaël. Entrevista com Katie White para a Artnet, março de 2025.
  9. Borremans, Michaël. Entrevista com Daiga Rudzāte para a Arterritory, novembro de 2020.
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Referência(s)

Michaël BORREMANS (1963)
Nome próprio: Michaël
Apelido: BORREMANS
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Bélgica

Idade: 62 anos (2025)

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