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Murakami: O xamã pop do apocalipse kawaii

Publicado em: 23 Dezembro 2024

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 7 minutos

Takashi Murakami transforma o trauma em espetáculo, a espiritualidade em mercadoria, e a crítica em celebração. Ele navega entre a alta arte e a cultura baixa com a facilidade de um funâmbulo sob ácido, criando uma rede de interconexões que desafia qualquer hierarquia tradicional.

Ouçam-me bem, bando de snobs : permitam-me falar-vos de Takashi Murakami (nascido em 1962), esse artista japonês que conseguiu transformar a arte contemporânea num circo pop delirante, mantendo ao mesmo tempo uma profundidade intelectual que a maioria de vós nunca saberá apreciar na sua justa medida.

Deixem-me dizer-vos por que o seu conceito “Superflat” é muito mais do que uma simples teoria artística para impressionar os outros. É um enorme golpe contra o establishment artístico ocidental, uma desconstrução sarcástica da sociedade de consumo pós-guerra e um espelho distorcido da nossa obsessão coletiva pela superficialidade. Quando Murakami lançou este conceito em 2000, não criou apenas um estilo, formulou uma crítica social mordaz que ainda hoje faz ranger os dentes dos puristas da arte.

Acham que as suas flores sorridentes são apenas dispositivos fofos para agradar às massas? Enganam-se. Esses sorrisos congelados são as cicatrizes de Hiroshima e Nagasaki, transformadas em símbolos pop coloridos. Isto é o que Jean Baudrillard chamaria de simulacro perfeito, uma cópia sem original que se torna mais real do que a própria realidade. Cada pétala é uma dose de amnésia coletiva servida com um sorriso comercial, uma forma de digerir o trauma nacional transformando-o em mercadoria.

Walter Benjamin ficaria fascinado pela forma como Murakami joga com a aura da obra de arte. Ele cria deliberadamente peças destinadas a ser reproduzidas, fazendo da cópia uma parte integrante do conceito original. Quando colabora com Louis Vuitton ou Kanye West, não é oportunismo comercial, é uma performance artística que transforma o próprio capitalismo em meio.

A sua técnica de produção, com o seu exército de assistentes na sua empresa Kaikai Kiki, não é semelhança aos ateliers da Renascença, mas com um toque pós-moderno que faria Andy Warhol sorrir. Ele nem sequer tenta esconder o carácter industrial da sua produção, pelo contrário, faz dele um elemento central da sua obra. Isto é o que Fredric Jameson chamaria de “sublime histérico” do capitalismo tardio, onde o excesso se torna a norma e a sobreprodução é celebrada como uma forma de arte.

Tomemos a sua série dos “Arhats”, esses 500 discípulos de Buda que ele transformou numa frescura monumental de 100 metros de comprimento. É uma reinterpretação magistral da iconografia budista que faria Erwin Panofsky chorar. Cada figura é um híbrido grotesco entre a tradição religiosa e a cultura pop, criando o que Roland Barthes teria qualificado de “texto” visual polissémico.

Murakami transforma o trauma em espectáculo, a espiritualidade em mercadoria, e a crítica em celebração. Ele navega entre a arte alta e a cultura baixa com a facilidade de um funâmbulo sob ácido, criando o que Gilles Deleuze chamaria de “rizoma” cultural, uma rede de interconexões que desafia toda a hierarquia tradicional.

A sua fascinação pelo kawaii (o fofo japonês) não é uma simples obsessão estética. É uma exploração profunda do que Mark Fisher chamava de “realismo capitalista”, essa incapacidade colectiva de imaginar uma alternativa ao sistema actual. As personagens fofas de Murakami são sintomas de uma sociedade infantilizada pelo consumismo, mas são também actos de resistência pelo seu próprio excesso.

A sua personagem emblemática Mr. DOB é um Frankenstein cultural, uma monstruosidade que junta Mickey Mouse e manga, e que encarna perfeitamente o que Theodor Adorno chamou de “padronização” da cultura de massa. Mas Murakami vira essa padronização contra ela própria, criando uma crítica que funciona tanto como produto comercial como comentário social.

Veja a sua colaboração com a Louis Vuitton, foi mais do que uma simples coleção de malas. Foi uma performance conceptual que transformava o luxo em pop art e vice-versa. Ele conseguiu fazer aquilo que Guy Debord nunca imaginaria possível: desviar o espetáculo enquanto fazia parte integrante dele. É isso que Jacques Rancière chamaria uma “partilha do sensível” reconfigurada.

Quando pinta cogumelos psicadélicos em cores berrantes, não é só para ficar bonito. É uma referência direta aos cogumelos atómicos que devastaram o seu país, transformados em doces visuais tóxicos. É o que Susan Sontag teria chamado uma “estética do desastre”, mas levada ao absurdo.

A forma como mistura referências à arte tradicional japonesa com a cultura otaku é uma proeza conceptual. Ele pega na tradição do nihonga (a pintura japonesa tradicional) e faz explodir por dentro, criando o que Hal Foster chamaria um “realismo traumático” colorido e pop. É como se Jackson Pollock tivesse decidido fazer mangas, uma combinação improvável que não devia funcionar, mas que se torna estranhamente coerente sob a sua direção.

Não é possível compreender Murakami sem compreender o conceito japonês de ma, esse espaço negativo que dá sentido a todo o resto. Só que no seu caso, já não existe espaço negativo. Tudo está saturado, sobrecarregado, sobreconsumido. É uma crítica à sociedade da hiperconsumação que usa os seus próprios códigos para se fazer ouvir.

A sua utilização obsessiva de motivos repetitivos não deixa de lembrar as práticas meditativas do budismo zen, mas corrompidas pela lógica da produção em massa. Cada flor sorridente é ao mesmo tempo uma unidade de meditação e um produto padronizado, criando aquilo que Martin Heidegger poderia ter chamado uma “técnica” artística única no seu género.

Os crânios que aparecem regularmente na sua obra não são simples vaidades pós-modernas. São os fantasmas da história japonesa, disfarçados por uma verniz de cultura pop. É o que Michel Foucault teria chamado uma “heterotopia”, um espaço onde as contradições culturais podem coexistir.

Quando expõe no Castelo de Versalhes, não é só para chocar os conservadores. É uma reapropriação pós-colonial do espaço cultural ocidental, transformando o símbolo máximo do poder monárquico europeu em terreno de jogo para as suas criaturas híbridas. É o que Edward Said teria chamado um “contra-discurso” visual.

O seu estilo “superflat” não é só uma estética simples. É uma metáfora da própria condição pós-moderna, onde tudo é colocado no mesmo plano, onde a hierarquia cultural tradicional desmorona sob o peso da sua própria contradição. É o que Fredric Jameson chamaria o “sublime pós-moderno”, uma arte que reflete e critica simultaneamente as condições da sua própria produção.

A forma como ele alterna entre diferentes meios, pintura, escultura, animação, moda, não é mero oportunismo mercantil. É uma estratégia deliberada para infiltrar todos os aspetos da cultura contemporânea, criando aquilo que Nicolas Bourriaud chamaria uma “estética relacional” à escala global.

As suas exposições são ambientes imersivos que confundem a linha entre arte e entretenimento, entre crítica e celebração. É o que Claire Bishop chamaria de “instalação participativa” que força o espectador a tornar-se cúmplice do seu próprio consumo cultural.

A forma como ele utiliza a tecnologia digital para criar as suas obras não é uma simples escolha técnica. É uma reflexão profunda sobre o que Bernard Stiegler chamava de “gramatização” da experiência estética na era digital. As suas imagens são ao mesmo tempo analógicas e digitais, manuais e mecânicas, criando uma tensão produtiva entre tradição e inovação.

A sua empresa Kaikai Kiki não é apenas uma simples estrutura de produção. É uma performance conceptual contínua que transforma o ato de criação artística em processo industrial, mantendo ao mesmo tempo uma qualidade artesanal que faria William Morris sorrir. É o que Karl Marx chamaria de “contradição produtiva”.

A forma como recicla constantemente os seus próprios motivos não é uma falta de imaginação. É uma estratégia deliberada que transforma a repetição em diferença, criando aquilo que Gilles Deleuze chamaria de “diferença e repetição” visual. Cada iteração acrescenta uma nova camada de significado, criando uma marca cultural complexa.

Então sim, as suas obras vendem-se por milhões de euros, e sim, pode comprar t-shirts com os seus motivos em qualquer loja na moda. Mas esse é precisamente o assunto. Murakami percebeu que no nosso mundo hiperconectado e hipermarcado, a única forma de fazer uma crítica eficaz ao sistema é infiltrar-se no interior, fazê-lo implodir sob o peso das suas próprias contradições.

Ele é o herdeiro espiritual de Marcel Duchamp, transformando a arte num jogo conceptual que se ri das convenções enquanto as explora. É o digno sucessor de Andy Warhol, levando a lógica da reprodução mecânica às suas últimas consequências. E é profundamente japonês na sua forma de transformar o trauma histórico em fantasmagoria pop.

Murakami é um filósofo visual que utiliza a estética da cultura popular para dissecar as patologias do nosso tempo. É um xamã pós-moderno que transforma as nossas neuroses coletivas num espetáculo deslumbrante. E, acima de tudo, é um espelho deformante que nos mostra no que nos tornámos, quer gostemos ou não.

Então, da próxima vez que vir uma das suas flores sorridentes, olhe além do verniz pop e das cores ácidas. Talvez veja o reflexo grotesco da nossa própria condição contemporânea, uma gargalhada amarga que ressoa no vazio da nossa cultura de consumo.

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Referência(s)

Takashi MURAKAMI (1962)
Nome próprio: Takashi
Apelido: MURAKAMI
Outro(s) nome(s):

  • 村上隆 (Japonês)

Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Japão

Idade: 63 anos (2025)

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