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Njideka Akunyili Crosby: Portais memoriais

Publicado em: 13 Março 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 7 minutos

As pinturas de Njideka Akunyili Crosby convidam-nos a mergulhar nas suas profundezas cuidadosamente construídas, onde as identidades culturais se entrelaçam em camadas complexas. Nas suas obras, os objetos do quotidiano tornam-se totens carregados de sentido, enquanto pessoas e plantas se fundem numa poética trans-cultural.

Ouçam-me bem, bando de snobs! Vocês certamente já ouviram falar de Njideka Akunyili Crosby, esta artista nigeriana-americana que tem o mundo da arte contemporânea aos seus pés, com a sua Bolsa MacArthur Genius e vendas em leilões a atingir preços estratosféricos. Mas quantos de vocês realmente olharam para a sua obra? Não estou a falar de lançar um olhar distraído antes de passar para a próxima sensação do Instagram. Não, estou a falar de parar, respirar e mergulhar nos seus mundos visuais vertiginosos. Os quadros de Akunyili Crosby não saltam ao vosso rosto com o tipo de brilho fácil que domina a nossa época de atenção fragmentada. Eles antes vos convidam a aproximar-se, a inclinar-se, a perder-se nas suas profundidades meticulosamente construídas.

A obra de Akunyili Crosby opera num espaço liminar, entre a Nigéria e a América, entre a memória e o presente, entre o íntimo e o coletivo. Cada peça é um desafio à nossa compreensão simplista da identidade cultural. Tomemos “Still You Bloom in This Land of No Gardens” (2021), uma obra que capta a artista com o seu filho, rodeados por uma vegetação luxuriante que obscurece parcialmente os seus corpos. A forma como as plantas se entrelaçam com as figuras lembra o antropólogo Claude Lévi-Strauss e a sua conceção do “pensamento selvagem” [1].

Lévi-Strauss argumentou que os sistemas culturais são como bricolagens, assemblagens criativas compostas por elementos diversos provenientes de diferentes fontes. Não é precisamente isto que Akunyili Crosby faz? Ela justapõe referências visuais da Nigéria e dos Estados Unidos, criando uma taxonomia pessoal onde a classificação rígida cede lugar a uma inteligência associativa mais fluida. Nas suas obras, objetos do quotidiano, um sofá, um bule, uma mesa, tornam-se totens carregados de significado cultural, à maneira como Lévi-Strauss via os objetos “selvagens” como portadores de significados complexos que desafiam as categorizações ocidentais.

Esta artista utiliza objetos banais como veículos de memória coletiva, criando o que Lévi-Strauss chamaria um “sistema de signos” para navegar entre culturas. O bule esmaltado sobre a mesa em “Tea Time in New Haven, Enugu” não é apenas um acessório decorativo, é um artefacto cultural que fala do legado colonial britânico na Nigéria, reapropriado e transformado em algo especificamente nigeriano. É precisamente este tipo de “bricolagem cultural” que Lévi-Strauss identificou como estando no coração da criação de identidades culturais híbridas.

Mas o que verdadeiramente distingue Akunyili Crosby é a sua técnica de transferência fotográfica. Ela aplica solventes no verso de imagens retiradas de revistas e livros nigerianos, selando essas imagens na superfície do quadro. Este método cria alucinações visuais meticulosas, sobrepondo memórias a momentos que vivem plenamente no presente. E é aqui que vemos a influência de Gaston Bachelard e a sua “Poética do espaço” [2].

Bachelard ensinou-nos que os espaços íntimos, casas, gavetas, cantos, são recipientes de memória e imaginação. Ele escreveu: “A casa é o nosso canto do mundo… é o nosso primeiro universo, um verdadeiro cosmos.” Os interiores domésticos de Akunyili Crosby funcionam exatamente como esses espaços bachelardianos. Em “The Beautyful Ones” Series #11, vemos uma rapariga jovem com um vestido de comunhão branco, de pé num espaço interior revestido de imagens transferidas. Não é simplesmente um retrato, é o que Bachelard chamaria uma “topografia do nosso ser íntimo.”

A atenção meticulosa que Akunyili Crosby dedica aos detalhes dos interiores domésticos, os padrões do chão, os tecidos comemorativos nas paredes, os objetos sobre as mesas, não é simplesmente decorativa. Ela cria o que Bachelard chamaria de “poética do habitar.” Em “Mama, Mummy and Mamma,” três gerações de mulheres são representadas num espaço doméstico carregado de memórias, uma manifestação visual do que Bachelard chama de “a casa onírica”, um espaço que transcende o físico para se tornar um reservatório de sonhos e lembranças.

As janelas, as portas e os quadros que aparecem tão frequentemente na obra de Akunyili Crosby funcionam como os “limiares” bachelardianos, pontos de passagem entre diferentes estados de ser. Em “Portals” (2016), a artista cria literalmente o que Bachelard chamaria de uma “dialética do dentro e do fora”, usando estruturas arquitetónicas como metáforas da transição entre mundos. Esses portais não são simplesmente elementos arquitectónicos; são passagens entre a Nigéria e a América, entre o passado e o presente.

A ultra-planitude das suas imagens cria uma calma profunda, como se existissem fora do fluxo normal do tempo. Essa temporalidade única é o que Bachelard chamaria de uma “verticalidade” do tempo, onde passado, presente e futuro se comprimem num único momento. Nestas obras, o tempo não é linear mas vertical, permitindo que diferentes épocas e lugares coexistam num único espaço pictórico.

A presença das plantas nas suas obras recentes acrescenta outra camada de contemplação, criando um deslizamento entre o espaço interior e exterior, o primeiro plano e o fundo, o eu e o ambiente. Nessas cenas, representadas em papel e fixadas na parede com presilhas e pregos, as figuras pintadas e fotografadas são integradas em mundos efusivos de folhagem, desfocando (e por vezes dilacerando completamente) as distinções entre os humanos e as formas bióticas.

Essa fusão dos corpos humanos com o seu ambiente recorda a preocupação de Bachelard sobre a forma como os espaços íntimos moldam o nosso ser. Akunyili Crosby estende essa ideia sugerindo que a nossa identidade está inextricavelmente ligada não apenas aos espaços que habitamos, mas também às ecologias naturais e culturais que nos rodeiam. As plantas que florescem através deste corpus de obras mais recente introduzem ainda outra camada de reflexão, provocando um deslizamento entre o espaço interior e exterior, o primeiro plano e o fundo, o eu e o ambiente.

A obra de Akunyili Crosby evoca também a noção bachelardiana de “ressonância”, a forma como os objetos e espaços podem evocar memórias e emoções que ressoam em nós. As imagens transferidas que aparecem nas roupas, nas paredes e nos móveis nos seus quadros criam literalmente essa ressonância visual, tecendo fragmentos de memória cultural para criar uma sinfonia visual complexa.

O trabalho de Akunyili Crosby é profundamente autobiográfico, mas nunca solipsista. Ela usa a sua própria experiência como ponto de partida para explorar questões mais amplas de migração, identidade e memória cultural. Como ela própria disse: “Eu retrato a Nigéria como ela existia quando a deixei no final dos anos 90, que não é a mesma que a cultura nigeriana agora… É a minha vida, a minha autobiografia, a minha família, mas essas experiências culturais, económicas e geográficas falam de algo que é maior do que eu: são uma confluência de coisas díspares.” [3]

O que é particularmente impressionante na obra dela é a forma como evita as armadilhas da nostalgia fácil. Há uma brutalidade escondida na beleza. “Um Dia de Sol na Praia Bar” apresenta uma praia pública em Lagos onde o antigo governo militar executava pessoas. Esta justaposição do doméstico e do político lembra como Lévi-Strauss via as estruturas culturais como intrinsecamente ligadas às estruturas de poder. Os ditadores militares que traíram a promessa da África aparecem furtivamente nas suas transferências fotográficas, lembrando que a memória cultural está sempre entrelaçada com a história política.

Em “Misture-se, Destaque-se”, uma mulher abraça um homem sentado por trás, uma pessoa negra e uma pessoa branca, Akunyili Crosby e o marido dela. No centro da imagem está um pote Igbo. O vestido dela é verde e repleto de imagens de figuras negras com os punhos erguidos. “Eu penso nesse banco de memória que carrego desde que cresci na Nigéria”, disse Akunyili Crosby. Observe atentamente e verá esse reservatório de imagens integrado por toda a sua arte: nas roupas, no papel de parede, superfícies de pensamento e sentimento.

A obra de Akunyili Crosby resiste à simplificação e às categorias fáceis. Ela nos convida a considerar como as identidades se formam na interseção de múltiplas influências culturais, como a memória persiste através dos objetos e espaços, e como a arte pode criar um “terceiro espaço” onde diferentes realidades podem coexistir. Como Lévi-Strauss nos lembraria, as identidades culturais nunca são puras ou estáticas, mas sempre em processo de “bricolagem”, montadas a partir de elementos diversos para criar algo novo e único.

As obras de Akunyili Crosby não são simplesmente representações de espaços, são espaços em si, lugares onde podemos entrar e habitar momentaneamente, lugares que ressoam com a nossa própria experiência vivida. Numa mundo obcecado por identidades fixas e fronteiras rígidas, Akunyili Crosby oferece-nos uma visão mais fluida e generosa do que significa existir entre os mundos.

Na próxima vez que tiver a oportunidade de ver o trabalho dela, não seja daqueles que lançam um olhar rápido e seguem o caminho. Pare. Incline-se. Observe atentamente. E deixe-se transportar para esses espaços intermédios onde a memória, a identidade e a imaginação se encontram numa dança complexa e magnífica.


  1. Lévi-Strauss, Claude. O Pensamento Selvagem. Paris: Plon, 1962.
  2. Bachelard, Gaston. A Poética do Espaço. Paris: Presses Universitaires de France, 1957.
  3. Jansen, Char. “Interiores e Interioridade: Njideka Akunyili Crosby.” Contemporary Art Review LA, 3 de abril de 2016.
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Referência(s)

Njideka AKUNYILI CROSBY (1983)
Nome próprio: Njideka
Apelido: AKUNYILI CROSBY
Género: Feminino
Nacionalidade(s):

  • Nigéria
  • Estados Unidos

Idade: 42 anos (2025)

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