Ouçam-me bem, bando de snobs: Ilana Savdie pinta como se o corpo fosse um campo de batalha onde ocorrem simultaneamente uma insurreição celular e um carnaval alucinatório. Nas suas telas monumentais, a carne já não conhece suas fronteiras, os órgãos migram, os membros se dissolvem em marés de rosa vivo e verde elétrico, enquanto parasitas microscópicos se tornam protagonistas de um drama cósmico. Esta artista nascida em 1986 em Miami e criada entre a Colômbia e a Flórida não produz simplesmente quadros: ela constrói ecossistemas visuais onde violência e sedução, o íntimo e o político, o orgânico e o sintético coabitam numa tensão insuportável.
A obra de Savdie está enraizada numa experiência particular da metamorfose, aquela que atravessa a literatura latino-americana como um fio condutor obsessivo. Ao observar suas composições, é impossível não evocar o universo de Gabriel García Márquez, essa figura tutelar de Barranquilla, cidade onde a artista passou sua infância. O realismo mágico, essa estética onde o sobrenatural infiltra o quotidiano sem provocar espanto, encontra nas pinturas de Savdie uma tradução plástica impressionante. Os corpos que ela representa sofrem transformações que recordam as dos personagens de García Márquez: eles não se limitam a mudar, tornam-se simultaneamente vários estados de ser, recusando a lógica binária que quer que uma coisa seja ou uma coisa ou outra.
Mas Savdie leva essa lógica da metamorfose muito além do território sul-americano. Suas figuras evocam também A Metamorfose de Franz Kafka, esse texto fundador onde Gregor Samsa acorda transformado em verme. Em ambos os casos, a transformação corporal torna-se metáfora da alienação social, da experiência do corpo julgado inconveniente, inapropriado, monstruoso. Savdie, enquanto mulher queer de origem libanesa, judia, venezuelana e colombiana, conhece intimamente essa experiência do corpo percebido como problemático pelas estruturas de poder. Suas pinturas não contam a metamorfose como um evento pontual, mas como um estado permanente de instabilidade. O corpo em Savdie está sempre a tornar-se outra coisa, nunca fixo, nunca tranquilizador na sua estabilidade.
Essa instabilidade encontra sua expressão mais completa na utilização que a artista faz dos parasitas como motivo recorrente. As larvas alaranjadas que serpenteiam por “Pinching the Frenulum” ou os vermes tecnicolor de “Helminth” não são simples ornamentos biológicos: encarnam uma filosofia da infiltração e da mudança. O parasita, no imaginário de Savdie, não é o vil explorador que a moral burguesa condena, mas um agente de transformação que obriga seu hospedeiro a evoluir e a se reconfigurar. Essa fascinação por organismos que desafiam as categorias estabelecidas junta-se a uma longa tradição literária de exploração das fronteiras do vivo, da ficção científica aos escritos sobre o ciborgue, passando pelas teorias contemporâneas sobre corpos híbridos.
A obra de Savdie dialoga também com uma história da arte que ela maltrata, recorta e reagrupa segundo a sua própria lógica carnavalesca. As suas referências ao Barroco não se limitam à simples citação erudita: constituem uma estratégia de apropriação violenta. Em The Enablers, a artista inspira-se no Massacre dos Inocentes de Rubens, esta composição de 1611 onde os corpos se entrelaçam numa coreografia trágica [1]. Em Rubens, o entrelaçamento das carnes serve para representar o horror de um infanticídio coletivo, a violência estatal exercida sobre os mais vulneráveis. Savdie conserva esta estrutura composicional onde os corpos perdem a sua individualidade para formar uma massa orgânica convulsiva, mas elimina o pathos religioso para o substituir por uma ambiguidade radical.
Esta relação com o Barroco estende-se a Francisco de Goya, cuja obra assombra várias pinturas de Savdie. Em Baths of Synovia, ela revisita a água-forte “Aguarda que te unten” da série Los Caprichos, onde um duende e uma mulher vesga seguram uma cabra que tenta fugir. Em Goya, esta cena pertence a um universo de feitiçaria e superstição que o pintor espanhol satirizava na sua crítica às Luzes traídas. Savdie conserva a estranheza da cena, a sua violência latente, mas a transpoe para um registo onde a metamorfose já não é maldição mas possibilidade, onde o corpo que se deforma já não é vítima mas ator da sua própria reconfiguração.
Esta reinterpretação dos mestres barrocos não é um simples exercício estilístico. Revela como Savdie usa a história da arte como um arsenal numa guerra estética contra as hierarquias visuais. Misturando Rubens com capturas de ecrã do TikTok, Goya com fotografias microscópicas de parasitas, ela pratica o que se poderia chamar um colapso das temporalidades. A Grande Arte e a cultura popular, a imagética científica e o folclore colombiano, tudo isso está colocado no mesmo plano, esmagado numa horizontalidade que recusa a verticalidade do julgamento de gosto.
As pinturas de Savdie usam cores que agredem o olho: rosas vivos, verdes fluorescentes, amarelos ácidos, azuis elétricos. Esta paleta, que a artista reivindica como originária da sua infância em Barranquilla e da sua exposição ao Carnaval, funciona como uma armadilha visual. Seduz primeiro o olhar pela sua exuberância, pela generosidade cromática, antes de revelar progressivamente a inquietação que emerge destas composições. A própria Savdie disse: “O excesso de cor assemelha-se a uma subversão sedutora” [2]. Esta sedução constitui uma tática, um meio de levar o espectador a olhar para aquilo que preferiria evitar: a fragilidade dos corpos, a sua porosidade, a sua perpétua ameaça de dissolução.
O carnaval de Barranquilla ocupa um lugar central na genealogia estética de Savdie. Esta celebração, segundo maior carnaval do mundo depois do Rio, representa uma inversão temporária da ordem social, um momento em que as hierarquias desabam e onde o grotesco se torna rei. A figura da Marimonda, esta personagem mascarada meio macaco meio elefante com nariz fálico, assombra a obra de Savdie desde a infância. Criada pelas classes populares para ridicularizar as elites opressivas, a Marimonda encarna a resistência pela zombaria, o poder subversivo da exageração corporal. Savdie declarou: “Adorei este conceito de exagero do corpo como forma de zombaria e da zombaria como forma de protesto” [3].
Esta dimensão carnavalesca não se enquadra no folclore pitoresco. Constitui uma proposta política radical: e se o corpo recusasse as categorias que lhe são impostas? E se, em vez de se conformar às normas de género, raça e classe, se metamorfoseasse permanentemente, escapando assim às tentativas de classificação e controlo? As pinturas de Savdie propõem exatamente isso: corpos que fogem, que transbordam, que contaminam o seu ambiente com a sua própria substância. Nunca estão onde se espera, nunca são estáveis na sua identidade.
A técnica pictórica de Savdie reforça esta instabilidade ontológica. Ela trabalha por camadas sucessivas de acrílico, óleo e cera de abelha, criando superfícies que oscilam entre uma transparência membranosa e uma opacidade reptiliana. A cera, em particular, produz texturas que evocam simultaneamente a pele, as escamas, os órgãos internos. Esta materialidade perturbadora faz com que a pintura se incline para o lado do próprio corpo: já não se olha simplesmente uma representação, está-se confrontado com uma presença carnal que respira, transpira, palpita.
Em Radical Contractions, a sua exposição de 2023 no Whitney Museum, Savdie levou esta lógica ao seu paroxismo. O próprio título joga com a polissemia: as contrações radicais são tanto os espasmos do diafragma provocados pelo riso, as convulsões da dor, como os movimentos políticos de resistência. Esta ambivalência atravessa toda a exposição, onde cada quadro parece vibrar de uma tensão interna pronta a explodir. As obras pressentiam diretamente o que viria a tornar-se a evidência do clima político americano atual com o segundo mandato de Donald Trump: a proibição do aborto, a multiplicação das leis anti-LGBTQIA+ e a violência armada endémica. Perante estas opressões sistémicas, Savdie propõe não uma lamentação mas uma resposta estética violenta.
Esta violência expressa-se nomeadamente na forma como Savdie trata os portais ou buracos negros que aparecem em várias pinturas recentes. Essas aberturas circulares funcionam como passagens entre dimensões, escapadelas cartunescas que permitem às figuras desaparecer de um lado da tela para reaparecer noutro. Evocam os portable holes dos Looney Tunes, esses dispositivos absurdos que desafiam as leis da física. Mas em Savdie, esses portais adquirem uma dimensão política: representam a possibilidade de escapar às estruturas de controlo, de atravessar fronteiras proibidas e de se subtrair à vigilância.
A artista constrói as suas composições a partir de um processo complexo que mistura desenho, colagem digital e pintura. Ela começa por esboços a tinta preta, amplamente figurativos, que escaneia e manipula no computador. Esses esboços digitais, nos quais integra elementos do seu banco de imagens, tornam-se o ponto de partida para as pinturas. Mas uma vez na tela, tudo pode mudar. Savdie deixa a tinta e a cera derreterem e viajarem pela superfície, criando formas imprevistas às quais deve responder. Este diálogo entre intenção e acaso, entre controlo e abandono, produz a tensão que electrifica as suas obras.
A referência às gravuras japonesas de Tsukioka Yoshitoshi nas suas pinturas recentes acrescenta uma nova camada de complexidade. Estas gravuras do século XIX que representam guerreiros samurais em posturas heroicas fornecem a Savdie um vocabulário visual para interrogar a masculinidade, o poder e a violência glorificada. Mas aqui também, ela desvia estas imagens do seu contexto original: os guerreiros dissolvem-se, as suas armaduras confundem-se com carapaças de insectos, o seu heroísmo suposto dilui-se no ácido das cores fluorescentes.
Em Ectopia, a sua exposição de 2024 na White Cube de Paris, Savdie aprofundou esta reflexão sobre o herói e o espetáculo da guerra. O termo médico “ectopia” designa um órgão ou uma parte do corpo posicionada anormalmente [4]. É precisamente isso que as pinturas de Savdie fazem: colocam tudo no sítio errado, criando um sentimento de desconforto produtivo. Os olhos aparecem onde deviam estar bocas, os membros emergem de orifícios improváveis, os interiores tornam-se exteriores. Esta topografia impossível do corpo reflete a experiência daqueles cujos corpos são constantemente julgados deslocados, inadequados e, portanto, ectópicos pelas normas dominantes.
A utilização que Savdie faz da linguagem do horror e da comédia é particularmente interessante. Estes dois géneros, aparentemente opostos, partilham a mesma estrutura narrativa: colocam as personagens em situações em que o corpo escapa ao controlo, em que se torna imprevisível, embaraçoso, ameaçador. Em Savdie, esta perda de controlo não é apresentada como trágica, mas como libertadora. Quando o corpo se recusa a obedecer às injunções sociais, quando transborda, foge e se transforma, abre novas possibilidades de existência.
Esta abertura de possibilidades atravessa toda a obra de Savdie como uma linha de força subterrânea. As suas pinturas não propõem resolução, nem desenham uma utopia tranquilizadora. Mantêm o espectador num estado de desconforto produtivo, preso entre atração e repulsa, familiaridade e estranheza. Esta posição desconfortável é precisamente aquela que a artista procura produzir, pois é neste entremeio que algo pode mover-se, que as certezas podem vacilar, que novas configurações podem emergir.
É isto que Savdie nos oferece: não uma celebração ingénua da diferença, nem uma denúncia moralista da opressão, mas uma visão complexa, contraditória, jubilosa e aterrorizante de um mundo onde os corpos se recusam a ficar parados. Nas suas pinturas, a carne torna-se política, a cor torna-se resistência, a metamorfose torna-se ato de sobrevivência. E nós, espectadores, somos convidados a habitar este espaço vertiginoso onde nada permanece estável, onde tudo pode a qualquer momento tombar no seu contrário, onde o parasita e o hospedeiro, o predador e a presa, o opressor e o oprimido trocam os seus papéis numa dança sem fim. É desconfortável, perturbador e necessário. É exatamente o que precisamos.
- Peter Paul Rubens, O Massacre dos Inocentes, 1611-1612, óleo sobre painel, Art Gallery of Ontario, Toronto
- Jasmine Wahi, “Eufórico e Grotesco: Ilana Savdie sobre Pintar Parasitas,” Interview Magazine, 22 de dezembro de 2021
- Apple Podcasts, “Ilana Savdie,” podcast, episódio transmitido em 2023, podcasts.apple.com, reouvido em outubro de 2025
- Moran Sheleg, “O Corpo Sombrio de Ilana Savdie,” ensaio para a exposição Ectopia, White Cube Paris, 2024
















