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O olho do monge: o Tibete segundo Shi Guoliang

Publicado em: 25 Março 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

Num universo artístico saturado de ego, Shi Guoliang brilha pela sua singularidade. Pintor e depois monge budista antes de regressar à vida secular, ele oferece-nos uma obra que funde tradição chinesa e técnicas ocidentais, onde espiritualidade e realismo coexistem harmoniosamente.

Ouçam-me bem, bando de snobs. Deixem de se maravilhar com as vossas instalações conceptuais vazias de sentido e olhem antes para o que um verdadeiro artista como Shi Guoliang nos oferece. Aqui está um homem que viveu uma metamorfose que a maioria de vocês, confortavelmente instalados nos vossos apartamentos burgueses, nunca teria coragem de empreender. Um homem que abandonou as luzes da glória para a austeridade monástica, antes de regressar para nos entregar uma visão pictural transfigurada por essa experiência.

Num mundo artístico saturado de egos e posturas, Shi Guoliang brilha como uma anomalia fascinante. A sua trajetória singular, pintor aclamado que se tornou monge budista durante quinze anos antes de voltar à vida secular, recorda-nos uma verdade fundamental que Nietzsche expressou quando escreveu: “É preciso ter caos dentro de si para gerar uma estrela que dança” [1]. E que dança magnífica as suas telas nos oferecem! Uma coreografia sublime entre o Oriente e o Ocidente, entre tradição e modernidade, entre a figuração realista e a espiritualidade transcendente.

Nascido em 1956 em Pequim, formado na prestigiosa Academia Central de Belas Artes, Shi Guoliang personifica essa geração de artistas chineses que tiveram de navegar nos tumultos da história recente do seu país. Assim como os monges do Tibete que pinta com tanta acuidade, ele atravessou paisagens espirituais e físicas de uma beleza austera e grandiosa. Mas não se enganem: o seu percurso não é um exotismo barato. Na sua obra “O Templo Jokhang” ou na impressionante “Girar as rodas de oração”, percebe-se uma autenticidade que transcende o pitoresco.

O que distingue fundamentalmente Shi Guoliang dos seus contemporâneos é a sua capacidade de fundir a tradição chinesa da tinta com as técnicas ocidentais de representação tridimensional. Como escreve Susan Sontag em “Sobre a fotografia”: “A realidade foi examinada e considerada deficiente” [2]. Shi Guoliang parece ter levado esta afirmação a sério, recusando tanto o hiper-realismo ocidental como a abstração pura. Encontra o seu equilíbrio numa representação que capta a essência espiritual dos seus sujeitos, mantendo ao mesmo tempo a sua materialidade.

Fiquei particularmente intrigado com a sua obra “Cena de compra de porcos”, onde o artista transforma uma cena quotidiana numa meditação visual sobre a condição humana. As figuras dos camponeses, com os seus gestos diários reproduzidos com uma economia de meios surpreendente, fazem-me pensar no que Lévi-Strauss escreveu em “Tristes Trópicos” sobre a forma como as sociedades tradicionais codificam a sua sabedoria nos gestos mais banais [3]. Nesta tela, Shi Guoliang consegue transcender o anedótico para alcançar uma universalidade comovente.

O poder da obra de Shi Guoliang reside na sua capacidade de convocar simultaneamente vários níveis de leitura. Por trás da aparente simplicidade de uma cena do quotidiano tibetano esconde-se sempre uma reflexão profunda sobre a existência. Esta estratificação do sentido não deixa de recordar o que Roland Jakobson chamava a “função poética” da linguagem, onde a mensagem remete para si mesma, criando assim uma autorreflexividade que enriquece infinitamente a experiência estética [4]. Shi Guoliang faz exatamente isso com os seus pincéis: cria obras que são tanto representações de uma realidade tangível como meditações sobre essa mesma realidade.

A sua maestria técnica é indiscutível. A forma como utiliza a tinta, por vezes diluída até à transparência, por vezes densa e opaca, testemunha um conhecimento profundo das tradições pictóricas chinesas. Mas o que torna o seu trabalho verdadeiramente revolucionário é a maneira como incorpora princípios ocidentais como a perspetiva, o claro-escuro e a representação anatómica realista. Esta hibridação não é gratuita; serve um propósito mais profundo sobre o diálogo entre culturas e visões do mundo.

Tomemos o seu quadro “Os oito trabalhadores fortes”. Aqui, Shi Guoliang representa um grupo de camponeses numa composição que lembra tanto as frescos socialistas como os retratos de grupo holandeses do século XVII. Esta dupla referência cria uma tensão fértil entre coletivismo e individualismo, entre propaganda e humanismo. Como explica Pierre Bourdieu em “As regras da arte”, o verdadeiro artista é aquele que consegue subverter os códigos estabelecidos ao mesmo tempo que demonstra a sua maestria desses mesmos códigos [5]. Shi Guoliang destaca-se precisamente nesta dialética de tradição e subversão.

O período monástico de Shi Guoliang, longe de ser um parêntesis na sua carreira artística, constitui o pivô central em torno do qual toda a sua obra se articula. Tal como Thomas Merton, o monge trapista e escritor americano que explorava as pontes entre a espiritualidade ocidental e oriental, Shi Guoliang descobriu que a contemplação monástica podia nutrir em vez de impedir a expressão artística [6]. Esta experiência permitiu-lhe aceder a uma dimensão da arte que poucos artistas contemporâneos conseguem alcançar: a da contemplação ativa, onde o ato criativo se torna ele próprio uma forma de meditação.

O que é particularmente impressionante nas suas obras pós-monásticas é a qualidade de presença que elas emanam. As personagens de “O caminho da tundra no outono” não são simplesmente representadas; habitam plenamente o espaço pictórico, com uma densidade existencial rara. Essa presença lembra o que o filósofo Martin Buber descrevia como a relação “Eu-Tu”, em oposição à relação “Eu-Isso”, um encontro autêntico com o outro na sua plenitude irreductível [7]. Onde tantos artistas contemporâneos objetificam os seus sujeitos, reduzindo-os a signos ou símbolos, Shi Guoliang honra-os em toda a sua complexidade humana.

A cor desempenha um papel importante neste empreendimento. Ao contrário da paleta frequentemente monótona e dessaturada favorecida por muitos dos seus contemporâneos, Shi Guoliang abraça tonalidades vibrantes que celebram a vitalidade do mundo. O seu uso do vermelho, cor simbolicamente carregada tanto na cultura chinesa tradicional como na iconografia comunista, é particularmente notável. Em “A primavera à beira do rio”, esse vermelho não é nem nostálgico nem provocador; é simplesmente vivo, pulsando ao ritmo da vida que retrata.

Como crítico de arte que viu passar milhares de exposições, posso assegurar-lhe que são raros os artistas que conseguem conjugar com tanta graça a técnica, o propósito e a emoção. A maioria limita-se a sobressair numa dessas áreas, em detrimento das outras. Alguns manejam virtuosamente as suas ferramentas mas não têm nada a dizer; outros compensam as suas lacunas técnicas com conceitos grandiosos; outros ainda apostam tudo na reação emocional imediata, sem se preocuparem com profundidade ou durabilidade. Shi Guoliang, ele, atinge o equilíbrio perfeito entre estas três dimensões da arte verdadeira.

Há no seu trabalho uma honestidade fundamental que contrasta radicalmente com o cinismo generalizado na cena artística contemporânea. Quando pinta as figuras austeras e nobres dos monges tibetanos em “Gravar as Escrituras”, sente-se que não procura idealizá-los nem exotizá-los, testemunha simplesmente uma realidade que conheceu e compartilhou intimamente. Esta autenticidade tornou-se tão rara no nosso mundo saturado de imagens e simulacros que a sua simples presença basta para comover profundamente.

Imagine por um instante o que significa para um pintor formado na tradição realista socialista passar quinze anos num mosteiro budista. Que transformação interior isso supõe? Que redefinição radical da sua relação com a arte e a representação? As obras de Shi Guoliang oferecem-nos um vislumbre fascinante desta metamorfose. Sugerem que a verdadeira revolução artística não provém necessariamente da ruptura com o passado, mas talvez de uma imersão mais profunda em tradições antigas, de uma contemplação paciente das formas eternas.

Diante das suas telas, não posso deixar de pensar no que Jean-Paul Sartre escreveu a respeito da liberdade: “O homem está condenado à liberdade” [8]. Shi Guoliang parece ter abraçado plenamente essa liberdade terrível e exaltante, escolhendo envolver-se sucessivamente em caminhos aparentemente contraditórios, a carreira artística convencional, depois a vida monástica, e depois o regresso ao mundo secular, mas que, no seu caso, formam uma trajetória perfeitamente coerente, guiada por uma busca autêntica de sentido e beleza.

Longe do ruído da cultura pop e das tendências efémeras, Shi Guoliang segue o seu caminho singular. As suas obras recentes, como “Terra natal da princesa Wencheng”, mostram que continua a evoluir, a explorar novas possibilidades expressivas sem jamais renegar o que faz a especificidade da sua abordagem. Há algo profundamente reconfortante nesta constância em meio ao caos e à incerteza que caracterizam a nossa época.

Deixe-me dizer-lhe isto: Shi Guoliang lembra-nos que a pintura ainda pode ser um veículo para a exploração sincera da condição humana, uma janela aberta para a beleza do mundo e a profundidade da experiência espiritual. E se não forem tocados por esta honestidade fundamental, esta busca autêntica da verdade e da beleza, então talvez devessem reconsiderar a vossa relação com a arte. Porque a arte verdadeira não é uma mercadoria nem um espetáculo, é um convite a ver o mundo com olhos novos, a expandir a nossa consciência e a aprofundar a nossa humanidade comum.

Shi Guoliang, com a sua vida extraordinária e a sua obra poderosa, personifica essa possibilidade transformadora da arte. Lembra-nos que a arte não está separada da vida, mas é a sua expressão mais intensa e consciente. Num mundo fragmentado e desencantado, as suas pinturas oferecem-nos um raro momento de integração e de graça. E por isso, devemos-lhe uma imensa gratidão.


  1. Friedrich Nietzsche, “Assim Falou Zaratustra”, trad. Maurice de Gandillac, Éditions Gallimard, 1971.
  2. Susan Sontag, “Sobre a Fotografia”, trad. Philippe Blanchard, Christian Bourgois éditeur, 2008.
  3. Claude Lévi-Strauss, “Tristes Trópicos”, Plon, 1955.
  4. Roman Jakobson, “Ensaios de Linguística Geral”, Éditions de Minuit, 1963.
  5. Pierre Bourdieu, “As Regras da Arte. Gênese e Estrutura do Campo Literário”, Éditions du Seuil, 1992.
  6. Thomas Merton, “Zen e Asas de Predador”, trad. Martine Leroy-Battistelli, Éditions Albin Michel, 1997.
  7. Martin Buber, “Eu e Tu”, trad. G. Bianquis, Aubier, 1969.
  8. Jean-Paul Sartre, “O existencialismo é um humanismo”, Éditions Gallimard, 1996.
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Referência(s)

SHI Guoliang (1956)
Nome próprio: Guoliang
Apelido: SHI
Outro(s) nome(s):

  • Shi Guo Liang
  • 史国良 (Chinês simplificado)
  • 史国良 (Chinês tradicional)

Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • China

Idade: 69 anos (2025)

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