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O universo desestabilizador de Stefanie Heinze

Publicado em: 8 Abril 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 11 minutos

As telas repletas de cores ácidas de Stefanie Heinze mergulham-nos num universo onde a materialidade convive com o estranho, onde a abstração flerta com a figuração sem nunca se submeter a ela, criando visões desestabilizadoras que desafiam as nossas percepções habituais.

Ouçam-me bem, bando de snobs. Estão aí, com os vossos óculos de armação grossa e roupas monocromáticas, a olhar para as telas de Stefanie Heinze como se compreendessem tudo. Mas deixem-me dizer-vos uma coisa: não entendem nada. E é precisamente aí que reside toda a beleza da sua obra. Essa incompreensão, essa perplexidade que sentem perante as suas pinturas, é exatamente o que ela procura.

As pinturas repletas de cores ácidas e formas ambíguas desta artista berlinense mergulham-nos num universo onde a materialidade convive com o estranho, onde a abstração flerta com a figuração sem nunca realmente se submeter a ela. Ela transforma a tela num campo de batalha onde se confrontam formas orgânicas mutantes e cores que gritam a sua presença.

Quando olho para as suas telas, sinto-me como se estivesse na cabeça de Alice depois de ter comido todos os cogumelos do País das Maravilhas. Os órgãos transformam-se em objetos domésticos, as partes genitais tornam-se criaturas animadas, e as cores atacam-nos com uma intensidade quase insuportável. Não admira que os colecionadores se desdobrem para adquirir as suas obras! Numa venda na Christie’s em dezembro de 2023, a sua tela “Third Date” foi vendida por 239 000 dólares, triplicando a sua estimativa máxima. Uma semana depois, na Sotheby’s, “Vim” ultrapassou largamente a sua estimativa, atingindo os 203 000 dólares. E, francamente, eu compreendo-os. Num mercado saturado de obras intercambiáveis, Heinze oferece algo autenticamente desestabilizador.

O que gosto no trabalho de Heinze é a forma como ela manipula o processo de criação como uma alquimista do caos. Ela começa por desenhos minuciosos, muitas vezes realizados em pequenos cadernos que transporta sempre consigo, que depois transfere para a tela. Mas atenção, não é um simples aumento! É uma tradução, com todos os acidentes e transformações que isso implica. Ela própria diz: “Não tenho ideia de como vai ficar. Descubro enquanto faço e simplesmente confio na pintura.” Essa abordagem intuitiva, essa confiança no próprio processo, está a anos-luz da arte conceptual fria que domina demasiado frequentemente as nossas galerias.

Franz Kafka, na sua Metamorfose, mostrou-nos como um homem pode acordar transformado num inseto monstruoso [1]. Esse processo de transformação radical, onde a identidade estável é subitamente posta em causa, encontra uma ressonância visual poderosa nas telas de Heinze. Ela mostra-nos como uma luva de cozinha pode transformar-se numa criatura lacrimosa, como uma banana pode tornar-se num pénis melancólico ou como órgãos desencarnados podem formar uma sinfonia visual hipnotizante. Tal como Gregor Samsa a despertar na forma de inseto, os objetos familiares nas pinturas de Heinze sofrem uma metamorfose inquietante, tornando-se ao mesmo tempo reconhecíveis e profundamente estranhos.

A referência a Kafka não é fortuita. Tal como o escritor praguense, Heinze é mestre na arte de tornar o estranho familiar e o familiar estranho. Em “Odd Glove (Forgetting, Losing, Looping)” (2019), ela transforma uma simples luva de cozinha numa criatura com os olhos fechados de onde escorrem lágrimas, que são também, se virmos bem, órgãos genitais masculinos. Esta metamorfose de objetos domésticos em entidades emocionais não deixa de lembrar a forma como Kafka transformava situações banais em pesadelos burocráticos absurdos.

Em Kafka, os objetos comuns podem, de repente, tornar-se ameaçadores ou incompreensíveis, como no seu conto “A preocupação do pai de família”, onde um simples objeto, Odradek, se torna uma criatura enigmática que desafia toda a categorização. Da mesma forma, as formas nas pinturas de Heinze resistem a qualquer tentativa de classificação estável. Elas existem num estado de fluxo perpétuo, evocando simultaneamente várias coisas sem nunca se fixarem numa identidade única.

“Vim” (2019) mergulha-nos num universo onde as formas parecem estar em constante mutação, como se recusassem fixar-se numa identidade estável. Esta instabilidade, esta fluidez formal, lembra a visão kafkiana de um mundo onde a identidade é sempre precária, sempre ameaçada de dissolução. As personagens de Kafka frequentemente se encontram em situações onde a sua identidade social e pessoal é posta em causa, pensemos em Joseph K. em “O Processo”, acusado de um crime que não cometeu e cuja natureza desconhece. Da mesma forma, as formas nos quadros de Heinze parecem estar num processo permanente de identificação e desidentificação, nunca completamente a elas mesmas, sempre a tornar-se outra coisa.

Mas não fiquemos apenas em Kafka. A obra de Heinze dialoga também com o teatro do absurdo, nomeadamente com as peças de Samuel Beckett. Tal como o autor irlandês, ela cria universos onde o sentido tradicional está suspenso, onde os corpos são fragmentados, onde o esperar e a incerteza reinam soberanos [2]. Em “Food for the Young (Oozing Out)” (2017), as suas formas caricaturais flutuando num espaço indefinido evocam a atmosfera de “Esperando Godot”, onde as personagens existem num limbo espacial e temporal, à espera de uma resolução que nunca chegará.

A forma como Beckett desconstrói a linguagem, tornando-a simultaneamente cómica e perturbadora, encontra um eco visual nas composições de Heinze. Os seus títulos frequentemente líricos, “High Potency Brood”, “A Hollow Place in a Solid Body”, “Frail Juice”, funcionam como contrapontos poéticos à aparente anarquia das suas imagens. Tal como em “Fim de Partida” de Beckett, onde os diálogos absurdos dissimulam uma profunda meditação sobre a condição humana, as composições aparentemente caóticas de Heinze escondem uma reflexão subtil sobre as relações de poder e as normas sociais.

As personagens de Beckett são muitas vezes reduzidas a corpos disfuncionais, confinados em espaços restritos, pensemos em Winnie enterrada até à cintura, depois até ao pescoço em “Dias Felizes”, ou nas personagens em urnas em “Comédia”. Esta redução do corpo a uma presença simultaneamente cómica e patética encontra paralelo na forma como Heinze fragmenta e reconfigura as formas corporais nas suas pinturas. Os órgãos são isolados do seu contexto habitual, os membros torcem-se em configurações impossíveis, criando uma sensação de alienação corporal que é profundamente beckettiana.

Existe em Beckett uma tensão constante entre o cómico e o trágico, o banal e o profundo. Essa mesma tensão anima as telas de Heinze. Suas formas biomórficas evocam tanto órgãos íntimos quanto objetos do cotidiano, criando um diálogo entre o corpo e o mundo material que nos rodeia. Em “Der Professor” (2020), ela justapõe elementos que evocam ora a autoridade acadêmica, ora a fragilidade corporal, numa composição que lembra o teatro do absurdo beckettiano, onde os corpos são frequentemente reduzidos à sua função mais elementar.

O humor negro de Beckett, “Nada é mais engraçado do que o infortúnio”, como diz Nell em “Fim de Partida”, encontra seu equivalente visual na abordagem de Heinze. Ela aborda temas potencialmente pesados, o corpo, o género, o poder, e os trata com uma leveza que não diminui a sua gravidade, mas a torna mais acessível, mais imediata. Essa mistura do sério com o lúdico cria uma tensão produtiva que incita o espectador a envolver-se ativamente com a obra, em vez de a consumir passivamente.

Mas não se deixe enganar: apesar dessas referências literárias, a arte de Heinze está profundamente enraizada na materialidade da pintura. Ela não ilustra conceitos; cria experiências visuais que desafiam a nossa perceção. Como ela própria diz: “Eu não trabalho a partir de outros artistas. Gosto de ver pinturas e gosto muito de pintores, mas não trabalho a partir deles.” Essa independência feroz faz parte do seu encanto. Ela não está aqui para inserir-se gentilmente numa linhagem artística pré-existente, mas para criar a sua própria linguagem visual, a sua própria gramática pictórica.

O que também me agrada nas suas pinturas é essa tensão palpável entre controlo e abandono. Heinze fala frequentemente da dificuldade de abordar uma tela em branco, da ansiedade que precede a mudança. Ela evoca “a escolha entre capacidade e incapacidade” que o controlo representa. Esta luta para encontrar um equilíbrio entre a maestria técnica e o abandono à intuição lembra a maneira como Beckett procurava “encontrar uma forma que acomode a desordem”, para usar as suas próprias palavras. Nos seus cadernos, Beckett escrevia: “Comecei a escrever em francês porque em francês é mais fácil escrever sem estilo.” Da mesma forma, Heinze procura uma abordagem da pintura que escape às convenções estilísticas estabelecidas, que privilegie a experiência direta sobre a virtuosidade técnica.

Em “Breeze Blocks” (2024), uma das suas obras recentes expostas na galeria Petzel em Nova Iorque, Heinze leva ainda mais longe esta exploração dos limites entre ordem e caos. As formas parecem ao mesmo tempo rígidas como blocos de construção e fluidas como líquidos em movimento, criando uma tensão visual que evoca a forma como Beckett usava a repetição e a variação para criar uma musicalidade desestabilizadora nos seus textos. Esta obra, com o seu equilíbrio precário entre estrutura e dissolução, personifica perfeitamente a estética beckettiana do fracasso controlado, do que ele chamava “tentar novamente, falhar novamente, falhar melhor.”

O humor também é omnipresente no trabalho de Heinze. Um humor ácido, deslocado, que lembra o de Beckett. Quando ela transforma partes do corpo em criaturas animadas ou objetos domésticos em entidades emocionais, ela joga com as nossas expectativas, criando situações visuais que são ao mesmo tempo cómicas e inquietantes. Esta abordagem lembra as situações absurdas das peças de Beckett, onde o riso nasce frequentemente de um profundo desconforto existencial. Assim como Beckett que usava o riso como uma forma de resistência à absurdidade da condição humana, Heinze usa o humor como uma estratégia para enfrentar a absurdidade das normas sociais e das expectativas culturais.

Heinze partilha também com Kafka e Beckett uma desconfiança em relação aos sistemas de poder estabelecidos. As suas pinturas, com formas que recusam conformar-se a categorias estáveis, podem ser lidas como uma crítica às normas sociais rígidas. Em “a 2 sie” (2019), cujo título se refere à sua compreensão infantil de uma canção pop com a letra “A to Z”, ela propõe um “novo alfabeto, talvez recomeçando para as mulheres.” Esta vontade de criar uma nova linguagem visual, libertada das restrições patriarcais, ressoa com a forma como Kafka e Beckett ambas procuraram subverter as estruturas linguísticas dominantes.

Como Kafka, que escrevia em alemão deliberadamente simplificado, criando um estilo que resistia às convenções literárias da sua época, Heinze desenvolve um vocabulário visual que escapa às categorias artísticas tradicionais. E como Beckett, que abandonou o inglês pelo francês para se libertar do peso da tradição literária anglófona, Heinze procura libertar-se das expectativas ligadas à pintura figurativa ou abstrata tradicional.

Heinze descreve a pintura como uma forma de compromisso com “o vazio, o medo, a incerteza.” Como para Beckett, o fracasso não é um obstáculo a evitar, mas uma parte integrante do processo criativo, uma fonte potencial de descoberta e inovação. Ela abraça os “erros de tradução” que ocorrem quando transfere os seus desenhos para a tela, vendo nestes acidentes não falhas, mas oportunidades para descobrir novas possibilidades formais.

Enquanto o mundo da arte contemporânea muitas vezes se afunda em um intelectualismo pedante ou num minimalismo estéril, Heinze ousa ser excessiva, sensual, emocional. As suas pinturas não o mantêm à distância com um conceito frio; elas convidam-no a mergulhar num banho de cores e formas onde o sentido emerge da experiência sensorial em vez de uma teoria preconcebida. Elas exigem uma resposta visceral, não uma decodificação intelectual.

Este compromisso com o corpo, com a materialidade, é particularmente revigorante numa época em que tanta arte contemporânea parece existir principalmente para ser fotografada e partilhada no Instagram. As pinturas de Heinze resistem à reprodução digital; os seus matizes de cor, a sua textura, a sua escala devem ser experimentados pessoalmente para serem plenamente apreciados. Elas lembram-nos que a arte, em sua melhor forma, é um encontro físico, não um consumo virtual.

A sua exposição na Fondazione Sandretto Re Rebaudengo, que acabou de terminar, intitulada “Your Mouth Comes Second”, aprofunda a sua exploração da ternura, da vulnerabilidade e da integração do espiritualismo antigo e urbano. O próprio título sugere uma inversão das prioridades habituais, colocando aquilo que vem antes da linguagem: observação, sensibilidade, apropriação, desajeitamento, incerteza, em primeiro plano. Esta prioridade dada à experiência pré-linguística lembra o interesse de Beckett pelo que permanece quando a linguagem falha, por aqueles momentos em que as palavras já não são suficientes e em que somente o corpo, com os seus gestos e silêncios, pode comunicar.

Num panorama artístico frequentemente dominado pelo cinismo e cálculo, Stefanie Heinze oferece-nos uma lufada de ar fresco, estranha, colorida, desconfortável talvez, mas inegavelmente viva. Ela não procura impressionar-nos com teorias obscuras ou referências pomposas. Ela convida-nos, antes, a perdermo-nos nos seus mundos visuais desorientadores, a encontrar aí os nossos próprios significados, a abraçar a incerteza como forma de libertação.

E se você não gostar disso, bem, é problema seu, não dela. A arte de Heinze não foi feita para ser compreendida; ela foi feita para ser vivida. Como as obras de Kafka e Beckett, confronta-nos com a estranheza fundamental da existência, com a insuficiência da linguagem convencional para expressar a nossa experiência do mundo, e com a necessidade de criar novas formas de expressão.

Então, na próxima vez que se encontrar diante de uma das suas telas, pare de tentar “compreendê-la”. Deixe-se desestabilizar, confundir, divertir. É nesse desequilíbrio mesmo que reside o poder do seu trabalho. Porque, como disse Beckett, “ser um artista é falhar como ninguém mais ousa falhar.” E Heinze, nas suas falhas gloriosas e exuberantes, mostra-nos como o sucesso pode ser.


  1. Franz Kafka, A Metamorfose, traduzido por Alexandre Vialatte, Gallimard, Paris, 1955.
  2. Samuel Beckett, Esperando Godot, Les Éditions de Minuit, Paris, 1952.
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Referência(s)

Stefanie HEINZE (1987)
Nome próprio: Stefanie
Apelido: HEINZE
Género: Feminino
Nacionalidade(s):

  • Alemanha

Idade: 38 anos (2025)

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