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Paul McCarthy: A anatomia da América doente

Publicado em: 23 Agosto 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 9 minutos

Paul McCarthy disseca com uma brutalidade catártica as mitologias americanas. Este artista californiano de oitenta anos revela, através de performances e instalações monumentais, os traumas ocultos por trás do ideal consumista. As suas apropriações corrosivas da Disney e os seus materiais abjectos expõem a hipocrisia fundamental de uma sociedade em decomposição moral.

Ouçam-me bem, bando de snobs: Paul McCarthy continua a ser o artista americano mais necessário do nosso tempo, aquele que ousa confrontar as mentiras fundadoras da sociedade de consumo com uma brutalidade poética que até os mais cínicos de nós têm dificuldade em suportar. Nascido em 1945 em Salt Lake City numa família mórmon, este homem de oitenta anos continua a produzir obras de uma violência catártica que revelam os traumas escondidos por trás do cenário idílico do sonho americano. O seu trabalho, que se estende desde as performances transgressivas dos anos 1970 às instalações monumentais contemporâneas, constitui uma arqueologia implacável da psique coletiva americana. McCarthy não é simplesmente um provocador: é um diagnosta de génio que ausculta as patologias do seu tempo com a precisão de um cirurgião e a fúria de um profeta. As suas últimas obras, nomeadamente a série “A&E” iniciada em 2019, provam que, na idade em que outros artistas se afundam na auto-paródia, ele continua a aprofundar a sua crítica radical às estruturas de poder contemporâneas.

A abjeção como reveladora do inconsciente cultural

A obra de Paul McCarthy encontra a sua âncora teórica mais profunda na conceção de Julia Kristeva acerca da abjeção, essa zona turva onde se dissolvem as fronteiras entre o limpo e o sujo, o aceitável e o inominável. Julia Kristeva, em “Poderes do Horror”, define a abjeção como aquilo que “perturba uma identidade, um sistema, uma ordem” e “não respeita os limites, os lugares, as regras” [1]. McCarthy encarna esta definição com uma radicalidade que ultrapassa mesmo as intenções teóricas da psicanalista francesa. Desde as suas primeiras performances como “Sauce” em 1974, onde se pintava o rosto com ketchup, maionese e carne crua, o artista californiano explorava já essa liminalidade fundamental. O ketchup não é exatamente sangue, a maionese não é exatamente esperma, mas esta aproximação perturbadora ativa precisamente os mecanismos psíquicos que Kristeva descreve: o espectador vê-se confrontado com substitutos que revelam os seus próprios recalcamentos. Esta estratégia atinge o seu apogeu em “Class Fool” (1976), performance onde McCarthy se atirava violentamente para uma sala de aula coberta de condimentos até ao cansaço e à ferida. O próprio artista reconhece esta dimensão: “Suspeito que esta suspensão da incredulidade existe nos espectadores, mesmo que se agarrem à interpretação consciente de que ketchup é ketchup. Suspeito que ficam perturbados quando o ketchup se torna sangue” [2].

A exposição “Abject Art: Repulsion and Desire in American Art” organizada pelo Whitney Museum em 1993 consagrava precisamente McCarthy como um dos mestres desta estética da abjeção, ao lado de Mike Kelley e Kiki Smith. Mas onde os seus contemporâneos frequentemente se prendiam a estratégias formais, McCarthy empurra a abjeção para as suas implicações sociais e políticas mais explosivas. A sua série “White Snow” (2009-2016) transforma o conto da Branca de Neve num pesadelo escatológico onde os sete anões se tornam figuras fálicas ameaçadoras que evoluem num cenário manchado por fluidos corporais falsos. A inocência infantil, base mitológica da cultura Disney, é literalmente violada pela intrusão do abjeto. Esta profanação não é gratuita: ela revela a violência reprimida que estrutura os relatos fundadores da América. McCarthy não destrói a inocência, ele revela a sua natureza construída e suas funções ideológicas. O branco imaculado da Branca de Neve torna-se o palco de uma orgia grotesca que desnuda os fantasmas pedófilos e as pulsões sádicas ocultas sob a superfície lisa das produções Walt Disney.

A instalação “WS White Snow” apresentada no Park Avenue Armory em 2013, com uma área de quase 1 600 metros quadrados, constituía o apogeu deste percurso. Nesta floresta artificial coberta de detritos e secreções, os visitantes eram forçados a navegar por um labirinto abjeto que transformava a sua perambulação numa experiência de contaminação. A arquitetura em si tornava-se abjeta, obrigando os corpos a uma proximidade desconfortável com as matérias repugnantes. Esta espacialização da abjeção revela a dimensão política do projeto de McCarthy: não se trata apenas de chocar, mas de transformar fisicamente a experiência do espetador para revelar as nossas cumplicidades inconscientes com as estruturas opressivas. Infelizmente, esta obra maior foi destruída em 2024 por falta de apoio institucional, confirmando a resistência do sistema artístico às suas críticas mais radicais. Como lamentava seu filho Damon: “Nós estávamos prontos para negociar com qualquer um para manter a obra viva” [3].

O artista continua hoje esta exploração com “A&E”, projeto multimédia iniciado em 2019 com a atriz alemã Lilith Stangenberg, onde as figuras de Adolf Hitler e Eva Braun se misturam com os arquétipos bíblicos de Adão e Eva. Esta sobreposição audaciosa revela os mecanismos profundos da abjeção política: como as pulsões mais destrutivas da humanidade se articulam com os mitos originários. McCarthy já não se contenta em profanar a inocência americana, ele ataca os próprios fundamentos da civilização ocidental. A abjeção torna-se aqui uma ferramenta de análise histórica que revela a continuidade entre as violências primordiais e suas atualizações contemporâneas. Através deste percurso, o artista realiza o que Kristeva identificava como a função catártica do abjeto: “tornar possível a purificação, a redenção, a reconciliação”, não pela evitação mas pelo confronto direto com aquilo que nos repugna mais profundamente.

A desconstrução impiedosa da ideologia consumista

Para além da sua dimensão psicanalítica, a obra de McCarthy constitui uma crítica sociológica implacável à sociedade de consumo americana e aos seus mecanismos de alienação. Desde “Hot Dog” (1974), performance na qual o artista introduzia o seu pénis num pão de cachorro-quente antes de se untar com mostarda e beber ketchup, McCarthy revelava as dimensões sexuais e canibais que sustentam o ato alimentar na cultura americana. O cachorro-quente, símbolo por excelência da restauração rápida e do American way of life, torna-se sob a sua ação um objeto de perversão que desvenda os impulsos reprimidos do consumismo. Esta estratégia de desvio atinge a sua maturidade com “Bossy Burger” (1991), performance realizada em cenários televisivos reciclados onde McCarthy, disfarçado com a máscara de Alfred E. Neuman, parodia os programas culinários. O artista transforma o ato de cozinhar numa orgia escatológica, revelando a violência simbólica que preside à preparação e ao consumo dos alimentos na sociedade do espetáculo. Como analisa o crítico Cary Levine, estas “frenesias alimentares” de McCarthy expõem “as mecânicas do consumo americano” ao revelar o seu substrato pulsional [4].

A evolução para instalações monumentais na década de 2000 permite a McCarthy amplificar esta crítica sociológica. “Pig Island” (2003-2010) transforma o espaço expositivo num parque de diversões distópico onde porcos gigantes em fibra de vidro evoluem num cenário de desolação consumista. A obra funciona como uma metáfora direta da estupidez das massas pela indústria do entretenimento: os visitantes tornam-se literalmente porcos num sistema concebido para a sua exploração. Esta dimensão alegórica revela a sofisticação teórica de McCarthy, que ultrapassa largamente o registo da provocação gratuita para propor uma análise sistémica dos mecanismos de dominação. A sua apropriação corrosiva das figuras da Disney segue a mesma lógica: ao transformar o Mickey Mouse em um violador e a Branca de Neve numa prostituta, o artista revela as estruturas patriarcais e mercantis que organizam a indústria do entretenimento.

A instalação “Tree” (2014), escultura insuflável de 24 metros instalada na place Vendôme em Paris, ilustra perfeitamente esta estratégia de subversão. Oficialmente apresentada como uma “árvore de Natal”, a obra parecia de forma flagrante um plugue anal gigante, provocando um escândalo internacional e a sua destruição por vandalismo após dois dias de exposição. McCarthy assumia plenamente esta ambiguidade formal, declarando ao diário Le Monde que se tratava de uma “piada” deliberada. Para além da anedota, “Tree” revela a função crítica da arte de McCarthy: introduzir a sexualidade reprimida no coração dos espaços de consumo mais prestigiados. A place Vendôme, templo do luxo francês, ficou manchada pela presença obscena desta escultura que revelava os impulsos escópicos e fetichistas que motivam a compra de objetos de prestígio. A obra funcionava como um espelho deformante que refletia aos transeuntes a sua própria participação num sistema económico fundado na subliminação dos impulsos sexuais.

Esta crítica à ideologia consumista encontra hoje uma atualidade ardente nas colaborações de McCarthy com o seu filho Damon, nomeadamente na série “Rebel Dabble Rabble”. Estes projetos intergeracionais revelam a transmissão de traumas culturais e a perpetuação das estruturas alienantes através das gerações. O artista octogenário não se contenta já em denunciar a sociedade de consumo: ele explora as suas mutações contemporâneas, nomeadamente a economia da atenção e a mercantilização dos afetos no universo digital. As suas instalações mais recentes, que geram mais de 150.000 imagens e terabytes de gravações em vídeo, constituem elas próprias uma metáfora dessa sobreprodução contemporânea. McCarthy transforma a sua própria prática artística numa crítica ao acúmulo compulsivo que caracteriza a época neoliberal. “O acúmulo por cima do acúmulo”, como ele próprio o descreve, torna-se o sintoma de uma sociedade incapaz de gerir a sua própria produtividade. Esta reflexividade crítica coloca McCarthy ao nível dos maiores analistas da modernidade tardia, rivalizando com os sociólogos mais perspicazes do seu tempo.

A clareza impiedosa de um visionário

Paul McCarthy impõe-se hoje como um dos raros artistas contemporâneos capazes de manter uma crítica radical sem ceder às facilidades do mercado da arte ou às seduções da apropriação institucional. Aos oitenta anos, continua a produzir obras de uma violência poética que revelam a hipocrisia fundamental da sociedade americana. O seu trabalho antecipa com uma precisão perturbadora as derivações autoritárias, as manipulações mediáticas e as patologias consumistas que definem a nossa época. A exposição “Outside is Inside, Inside is Outside. God is Dog, Dog is Dog” atualmente apresentada na Hauser & Wirth em Londres demonstra que a sua capacidade de renovação permanece intacta. McCarthy não é apenas um testemunho do seu tempo: é um revelador químico que permite ver aquilo que preferimos ignorar. Numa época em que a arte contemporânea muitas vezes mergulha na complacência decorativa, ele mantém viva a função crítica da arte com uma intransigência que impõe respeito. A sua obra constitui um antídoto necessário contra a amnésia coletiva e as mentiras consoladoras. Ela lembra-nos que a verdadeira arte não deve apenas agradar ou divertir, mas revelar as verdades perturbadoras que as nossas sociedades se esforçam por reprimir.

A arte de McCarthy ensina-nos que a verdadeira transgressão não consiste em violar os interditos morais, mas em revelar os mecanismos pelos quais esses interditos se constituem e se mantêm. Neste aspecto, ele realiza plenamente aquilo a que Lacan chamava a “função reveladora” da arte e aquilo que Foucault identificava como a necessidade de uma “ontologia crítica de nós mesmos”. A sua obra permanece assim de uma atualidade ardente num mundo onde as formas de controlo e subjugação não cessam de se sofisticar e de se dissimular.


  1. Julia Kristeva, Pouvoirs de l’horreur. Essai sur l’abjection, Paris, Éditions du Seuil, 1980.
  2. Paul McCarthy, entrevista com Kristine Stiles, em Paul McCarthy, Londres, Phaidon Press, 2016.
  3. Damon McCarthy citado em The Art Newspaper, 11 de setembro de 2024.
  4. Cary Levine, “You Are What (and How) You Eat: Paul McCarthy’s Food-Flinging Frenzies”, InVisible Culture, Universidade de Rochester, 2003.
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Referência(s)

Paul MCCARTHY (1945)
Nome próprio: Paul
Apelido: MCCARTHY
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Estados Unidos

Idade: 80 anos (2025)

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