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RETNA: Entre graffiti, espiritualidade e iluminuras

Publicado em: 17 Agosto 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 8 minutos

RETNA (Marquis Lewis) cria uma linguagem visual única que funde caligrafia antiga e arte urbana contemporânea. As suas obras misturam hieróglifos, alfabetos sagrados e códigos de rua em composições douradas que questionam os limites entre arte popular e arte erudita, revelando uma espiritualidade autêntica.

Ouçam-me bem, bando de snobs. Existe no panorama artístico contemporâneo um homem que realiza este raro prodígio: fazer dialogar os hieróglifos de Memphis com as tags de Los Angeles, os manuscritos da Idade Média com os muros de cimento. Marquis Lewis, conhecido como RETNA, não é apenas um artista de rua tornado respeitável. Ele é o criador de uma linguagem visual que interroga as nossas certezas sobre aquilo que separa a arte erudita da arte popular, o sagrado do profano, o antigo do moderno.

Nascido em 1979 em Los Angeles, RETNA toma o seu nome de uma música do Wu-Tang Clan, “Heaterz”, onde ecoa a seguinte linha profética: “Kinetic globes light will then shine, burns your retina” (Então brilhará a luz dos glóbulos cinéticos, até que queime a tua retina). Esta filiação musical não é inocente. Revela desde logo a dimensão sinestésica de uma arte que pretende fazer vibrar a retina tanto quanto a audição, criar uma linguagem total que ultrapassa as fronteiras sensoriais.

A obra de RETNA está enraizada numa tradição milenar que encontra as suas raízes mais profundas na arte dos manuscritos iluminados medievais. Esta filiação não é nem fortuita nem superficial. Revela uma compreensão intuitiva do que foi a iluminação na Idade Média: uma arte total onde o texto e a imagem formavam um conjunto indissociável, onde cada letra continha em si uma carga espiritual e estética que ultrapassava a sua simples função linguística.

Os manuscritos iluminados da Europa medieval, produzidos nos scriptoria monásticos entre o século VI e o XV, representavam muito mais do que simples livros decorados [1]. Eram objetos sagrados onde a caligrafia atingia picos de excelência artística e espiritual. O próprio termo “iluminação”, derivado do latim illuminare que significa “iluminar”, designava esta prática que consistia em adornar os textos com cores vivas e sobretudo com ouro, criando literalmente a impressão de que a página era iluminada por dentro. Esta dimensão luminosa encontra um eco impressionante no trabalho de RETNA, cujas letras douradas e prateadas parecem irradiar a mesma energia mística que as iluminuras dos Livros de Horas, esses livros de orações privados populares no final da Idade Média, principalmente no século XV.

A técnica de RETNA lembra diretamente os métodos dos iluminadores medievais. Tal como eles, ele maneja o pincel com precisão de ourives, criando letras capitulares que desabrocham em arabescos complexos. As suas composições obedecem à mesma lógica dos manuscritos carolíngios ou góticos: um equilíbrio subtil entre legibilidade e ornamentação, entre função e beleza. Obras suas como “Sad to See” (2015) ou “Shadows of Light” revelam esta parentela perturbadora com os manuscritos da abadia de Saint-Denis ou as Muito Ricas Horas do duque de Berry. Nelas encontra-se essa mesma densidade decorativa, essa mesma capacidade de transformar o espaço da página num universo cósmico onde cada detalhe participa de um conjunto harmonioso.

Mas RETNA não se limita a imitar a arte medieval. Ele a reinventa à luz da sua época e das suas origens. Filho da diversidade americana, herança afro-americana, salvadorenha e cherokee, cria um alfabeto híbrido que bebe nas fontes mais diversas: hieróglifos egípcios, caligrafia árabe e hebraica, escrita gótica, sem esquecer os códigos do graffiti chicano de Los Angeles. Esta síntese não tem nada de eclética no sentido pejorativo do termo. Revela, pelo contrário, uma compreensão profunda do que sempre foi a iluminura: uma arte da síntese cultural, capaz de integrar as influências mais diversas numa linguagem unificada.

O artista desenvolve assim aquilo que ele próprio denomina uma “linguagem universal”, uma escrita que ultrapassa as barreiras linguísticas e culturais conservando, ao mesmo tempo, a carga espiritual das escritas sagradas. As suas colaborações com marcas como a Louis Vuitton ou as suas criações para o álbum Purpose de Justin Bieber testemunham esta capacidade de fazer circular o seu alfabeto misterioso por todos os circuitos da cultura contemporânea, das galerias mais prestigiadas aos meios mais populares.

Esta dimensão universalista encontra a sua realização mais espetacular na sua colaboração com a ópera Aida de Verdi, apresentada no San Francisco Opera e no Washington National Opera em 2016-2017 [2]. Este encontro entre street art e arte lírica poderia parecer incongruente. Revela na realidade a lógica profunda do trabalho de RETNA. A ópera de Verdi, ancorada no Egito antigo, reencontra graças a ele as suas dimensões hieroglíficas originais. Os cenários de RETNA transformam o palco num manuscrito gigante onde se desdobram os sinais de uma escrita milenar atualizada.

O artista declara acerca desta experiência: “O facto de a minha obra, cuja grande parte está baseada na estrutura dos hieróglifos egípcios, ser usada para Aida fechou o ciclo de toda a minha conceção da minha carreira, marcando uma etapa importante no meu desenvolvimento artístico e espiritual”. Esta frase revela a consciência que RETNA tem de se inserir numa tradição que transcende largamente o âmbito do street art. Ao criar os cenários de Aida, reencontra os gestos ancestrais do iluminador medieval que ornava os manuscritos litúrgicos, transformando a representação teatral numa celebração visual.

A análise das suas obras revela um domínio técnico que nada inveja aos maiores calígrafos do passado. As suas instalações murais, como a realizada no Houston Bowery Wall de Nova Iorque em 2012, desdobram sobre superfícies monumentais essa mesma precisão do traço que se encontra nos mais belos manuscritos. Cada letra é talhada com o cuidado de um ourives, cada composição obedece a regras rítmicas que recordam a musicalidade das escritas sagradas.

Esta dimensão musical não é metafórica. RETNA pinta frequentemente ouvindo música, deixando os ritmos sonoros guiarem o movimento do seu pincel. Esta prática aproxima-se diretamente da experiência dos monges copistas que recitavam salmos enquanto trabalhavam, imprimindo nas suas letras o ritmo das orações. A arte de RETNA reencontra assim esta dimensão performativa da iluminura, esse aspeto ritual que fazia da criação de um manuscrito um ato quase litúrgico.

A espiritualidade que emana das suas obras não pertence ao folclore new age, mas a uma genuína busca de sentido. As suas colaborações com El Mac, nomeadamente o mural em Skid Row representando Big Slim acompanhado da inscrição “Blessed Are The Meek For They Shall Inherit The Earth” (Bem-aventurados os humildes, pois herdarão a Terra), testemunham essa dimensão profética da sua arte. Tal como os iluminadores medievais que ornavam os Evangelhos, RETNA transforma o espaço urbano num suporte de meditação espiritual.

O seu uso do ouro e da prata, constante nas suas obras, não se reduz à mera sedução estética. Ele perpetua essa tradição da iluminação que via nestes metais preciosos os materiais da luz divina. As suas telas como “Sometimes Eye Can’t Read What Eye Write” (2014) brilham com essa mesma luminosidade sobrenatural que os manuscritos do Tesouro de Saint-Denis.

A dimensão cifrada da sua escrita participa também dessa herança medieval. Os manuscritos iluminados frequentemente continham mensagens ocultas, jogos visuais de palavras, alusões que apenas os iniciados podiam decifrar. RETNA perpetua essa tradição do sentido oculto, criando uma linguagem que se mostra sem se revelar inteiramente. As suas declarações sobre a própria impossibilidade que às vezes tem de reler os seus próprios textos revelam essa dimensão oracular da sua arte, essa capacidade de canalizar forças que o ultrapassam.

Essa opacidade assumida distingue radicalmente RETNA da maioria dos artistas de rua contemporâneos. Onde muitos privilegiam a mensagem explícita e a reivindicação política direta, ele escolhe o caminho da alusão e do símbolo. Essa estratégia artística aproxima-o dos grandes mestres da iluminação que sabiam que a beleza pura poderia transmitir mensagens mais profundas do que todos os discursos.

A evolução da sua carreira, dos muros de Los Angeles às mais prestigiadas instituições culturais, testemunha essa capacidade única de fazer dialogar os mundos mais distantes. As suas exposições em galerias internacionais, as suas colaborações com casas de moda, as suas intervenções no espaço público formam um conjunto coerente que revela a pertinência contemporânea da herança medieval.

A posteridade artística de RETNA inscreve-se nessa linhagem dos grandes criadores de linguagens visuais que marcaram a história da arte. Como os mestres iluminadores da Idade Média, ele prova que a caligrafia pode atingir os mais altos patamares da expressão artística. O seu alfabeto misterioso continuará durante muito tempo a questionar e a seduzir, perpetuando essa tradição milenar que faz da escrita uma arte total.

Num mundo em que a comunicação instantânea tende a empobrecer as formas de expressão, RETNA lembra-nos que a escrita ainda pode ser uma arte da lentidão e da contemplação. As suas obras exigem tempo, atenção, essa mesma disposição de espírito que os manuscritos iluminados reclamavam. Elas convidam-nos a redescobrir essa dimensão sagrada da escrita que a nossa época demasiado frequentemente esqueceu.

A arte de RETNA constitui assim muito mais do que um simples sucesso pessoal. Representa uma lição de história da arte em ato, demonstrando que as tradições mais antigas podem alimentar as criações mais contemporâneas. Ao reinventar a iluminação para o século XXI, Marquis Lewis oferece-nos um modelo raro de fidelidade criativa, provando que não há oposição entre enraizamento cultural e inovação artística.

A sua obra permanece aberta, em perpétua expansão, à imagem desses manuscritos medievais que não cessavam de ser enriquecidos pelos seus leitores sucessivos. Cada nova criação de RETNA acrescenta uma página a este livro infinito que ele escreve há mais de vinte anos, continuando esta tradição secular que faz do artista um transmissor entre os mundos, um tradutor do invisível.


  1. Manuscritos Iluminados, Victoria and Albert Museum, Londres. Os manuscritos iluminados constituem uma tradição artística europeia que se estende do século VI ao século XV, caracterizada pela ornamentação de textos com ouro, prata e cores vivas.
  2. Washington National Opera, Notas de Produção de Aida, 2017. Produção dirigida por Francesca Zambello com cenários conceptuais de RETNA, apresentada no Kennedy Center Opera House de 9 a 23 de setembro de 2017.
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Referência(s)

RETNA (1979)
Nome próprio:
Apelido: RETNA
Outro(s) nome(s):

  • Marquis Lewis

Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Estados Unidos

Idade: 46 anos (2025)

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