Ouçam-me bem, bando de snobs, Richard Hambleton não era simplesmente um artista de rua que pintava silhuetas nas paredes de Manhattan. Este canadiano de olhar perspicaz, nascido em 1952 em Tofino, na ilha de Vancouver, redefiniu os códigos da expressão artística urbana com a precisão de um cirurgião e a urgência de um profeta. Quando se instala definitivamente no Lower East Side em 1979, armado com os seus pincéis e tinta preta, não suspeitava que iria revolucionar para sempre a nossa relação com a arte pública.
A obra de Hambleton tem as suas raízes numa tradição estética muito mais antiga do que se imagina. Os seus “Shadowmen”, essas silhuetas fantasmagóricas que assombravam os becos nova-iorquinos dos anos 1980, inserem-se diretamente no legado do romantismo pictórico do século XIX. Tal como os paisagistas românticos que procuravam captar o inefável nas suas telas, Hambleton transforma o espaço urbano em teatro de emoções puras. As suas figuras negras, pintadas às pressas na escuridão, evocam irresistivelmente as obras de Caspar David Friedrich, onde o homem diante da imensidão reduz-se a uma silhueta contemplativa. Em Friedrich, o viajante acima do mar de nuvens torna-se símbolo da condição humana moderna; em Hambleton, o transeunte noturno que descobre uma sombra ameaçadora experimenta essa mesma confrontação com o desconhecido. Esta filiação não é fortuita. Nas suas “Beautiful Paintings” do final dos anos 2000, Hambleton faz um regresso explícito aos códigos do romantismo, com paisagens marinhas de horizontes dourados que lembram Turner, mas trabalhadas com uma gestualidade contemporânea onde a matéria pictórica se torna pura emoção. A técnica do artista canadiano, que consistia em inclinar as suas telas para que a tinta escorresse, tem as suas origens nesta estética romântica do acidente controlado, onde o artista dialoga com as forças naturais da gravidade e da fluidez. Esta abordagem revela um artista consciente de se inserir numa linhagem estética maior, longe da imagem do mero vandalismo que alguns críticos quiseram associar à sua obra. Hambleton transforma assim o legado romântico numa linguagem contemporânea, provando que as grandes questões existenciais atravessam as épocas renovando-se constantemente.
Mas a arte de Hambleton também dialoga com uma dimensão literária profunda que o distingue radicalmente dos seus contemporâneos. Os seus “Shadowmen” mantêm ligações perturbadoras com a obra maior de Hermann Broch, “A Morte de Virgílio”, esta meditação poética sobre a agonia do grande poeta latino publicada em 1945 [1]. Tal como Virgílio em Broch, que vaga nas últimas horas da sua vida entre a realidade e a alucinação, as silhuetas de Hambleton oscilam entre presença e ausência, entre encarnação e desaparecimento. O escritor austríaco descreve um Virgílio assombrado pelas suas próprias criações, incapaz de distinguir o sonho da realidade nas aflições da febre. Esta confusão dos planos encontra o seu equivalente plástico nos “Shadowmen” de Hambleton, figuras liminares que aparecem na curva de uma rua como manifestações do inconsciente urbano. Broch escreve no seu romance que “em todo o lado se encontrava a si mesmo”, descrevendo esta experiência de desdobramento onde o criador se torna o espectador das suas próprias visões. Hambleton realiza a mesma transgressão das fronteiras entre o artista e a sua obra, entre o espectador e a imagem. As suas silhuetas noturnas funcionam como tantos duplos do artista dispersos pela cidade, criando esta “multiplicação das identidades” que Broch explora no seu romance. A influência desta estética literária transparece mesmo na série “Image Mass Murder” (1976-1978), onde Hambleton desenha com giz contornos de corpos humanos manchados de tinta vermelha. Estas falsas cenas de crime evocam a atmosfera turva do romance de Broch, onde a morte ronda constantemente o protagonista. Tal como Virgílio que quer destruir a sua “Eneida” por repulsa da beleza perante a violência do mundo, Hambleton interroga a legitimidade da arte num contexto urbano marcado pela criminalidade e decadência. Esta proximidade estética revela um artista profundamente cultivado, nutrido pelos grandes textos da modernidade literária europeia, longe da imagem simplista do grafiter autodidata. Hambleton prova assim que a arte urbana pode conter em si a complexidade filosófica das obras maiores da literatura, transformando as paredes da cidade em páginas de um livro aberto sobre os questionamentos existenciais da nossa época.
A sua abordagem do espaço urbano revela uma inteligência tática notável. Hambleton não pinta ao acaso: cartografa cuidadosamente as suas intervenções para maximizar o seu impacto psicológico nos transeuntes. Os seus “Shadowmen” surgem nos recantos escuros, nas vielas, nos ângulos mortos onde não se espera encontrar uma presença humana. Esta estratégia da surpresa transforma cada encontro fortuito com a obra numa experiência visceral, num momento de deslizamento entre o quotidiano e o extraordinário.
“Eu pintava a cidade de preto”, declarava ele simplesmente, resumindo numa frase a radicalidade do seu gesto [2]. Mas essa escuridão não é desespero: é revelação. Hambleton usa a cor da sombra para tornar visível o invisível, para materializar essas presenças fantasmagóricas que assombram os nossos imaginários urbanos. As suas silhuetas tornam-se os sintomas de uma cidade que sonha, que projeta as suas angústias e desejos sobre as superfícies cegas das suas paredes.
A evolução do seu trabalho para a tela não constitui de forma alguma uma traição às suas origens murais, ao contrário do que alguns puristas afirmaram. Pelo contrário, essa transição revela a coerência de um percurso artístico que sempre procurou explorar os territórios limítrofes entre a arte e a vida. As suas “Horse and Riders”, inspiradas nas publicidades da Marlboro, desviam os códigos da imagética americana para revelar a sua dimensão mitológica. O cowboy torna-se uma nova figura do homem moderno, solitário e heróico, perpetuando noutro contexto a estética romântica dos seus “Shadowmen”.
A inscrição de Hambleton na história da arte contemporânea ultrapassa largamente o âmbito do street art. Participando nas Bienais de Veneza de 1984 e 1988, expondo nas maiores instituições internacionais, ele impõe uma nova legitimidade a um meio até então considerado marginal. A sua influência em artistas como Banksy ou Blek le Rat (Xavier Prou) testemunha o alcance revolucionário da sua abordagem.
Mas é talvez na sua resistência à recuperação comercial que Hambleton revela a sua verdadeira grandeza. Recusando facilitar a comercialização do seu trabalho, preferindo por vezes a precariedade à comprometimento, ele encarna essa figura romântica do artista insurgente. A sua descida ao inferno nos anos 1990, marcada pelo vício e isolamento, não é um simples acidente de percurso: constitui o lado sombrio de um compromisso total na arte, recusando as facilidades do sucesso institucional.
As “Beautiful Paintings” dos seus últimos anos, com as suas paisagens abstratas de dourados flamejantes, marcam um regresso sereno à beleza pura. Hambleton alcança nelas uma síntese notável entre a sua gestualidade urbana e uma estética mais clássica, provando que a sua arte sempre continha esta dupla dimensão: a urgência da intervenção e a permanência da contemplação.
A sua morte em 2017 encerra uma trajetória exemplar da arte contemporânea, a de um criador que soube transformar as limitações do meio urbano numa linguagem poética universal. Richard Hambleton ficará como aquele que deu as cartas de nobreza à arte de rua, não a suavizando para a tornar aceitável, mas insuflando-lhe toda a complexidade dos grandes questionamentos estéticos da sua época.
A obra de Hambleton ensina-nos que a verdadeira arte nasce sempre da transgressão das fronteiras estabelecidas. Entre rua e galeria, entre figuração e abstração, entre tradição e vanguarda, traçou um caminho singular que continua a inspirar as novas gerações de artistas. O seu legado ultrapassa largamente o âmbito do street art para tocar nas questões fundamentais da criação contemporânea: como pode ainda a arte surpreender, emocionar, revelar num mundo saturado de imagens? A resposta de Hambleton reside nestas milhares de silhuetas negras que continuam a assombrar as nossas memórias visuais, fantasmas persistentes de uma época em que a arte urbana ainda inventava as suas próprias regras.
- Hermann Broch, A Morte de Virgílio, traduzido do alemão por Albert Kohn, Gallimard, 1955
- Citação relatada em Shadowman, documentário de Oren Jacoby, 2017
















