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Roberto Fabelo, a arte da metamorfose em Cuba

Publicado em: 12 Maio 2025

Por: Hervé Lancelin

Categoria: Crítica de arte

Tempo de leitura: 11 minutos

Roberto Fabelo transforma panelas queimadas em telas, tratados de anatomia em territórios oníricos. Este artista cubano desenha baratas com cabeças humanas, mulheres-pássaro, rinocerontes em miniatura. Entre Goya e Kafka, cria um universo barroco onde a sobrevivência se torna metamorfose, onde cada resíduo se transmuta em mito.

Ouçam-me bem, bando de snobs, porque vou falar-vos de Roberto Fabelo, e vão descobrir que para além dos vossos vernissages mundanos em Saint-Germain des Prés, existe um artista cubano que desenha em panelas queimadas com a mesma intensidade que Goya gravava os seus pesadelos. Nascido em 1950 em Guáimaro, este grafómano compulsivo transformou cada superfície disponível em território de conquista artística, desde as páginas amarelecidas de um tratado de anatomia do século XIX às paredes do Museo Nacional de Bellas Artes de Havana.

Olhem para os seus Sobrevivientes que escalam a fachada do museu, essas baratas gigantes com cabeças humanas que evocam imediatamente a metamorfose kafkiana. Mas onde Kafka permanece preso no seu quarto praguense, Fabelo explode a narrativa nas paredes de Havana. Estas criaturas híbridas não são simplesmente ilustrações literárias; elas encarnam a resiliência do povo cubano, esses sobreviventes últimos que, como as baratas, resistiriam mesmo a um apocalipse nuclear [1].

A obsessão de Fabelo por Kafka vai além da simples referência. Na sua exposição madrilena de 2023, apresenta Metamorfose onde o protagonista da novela se duplica, torna-se bicéfalo. Esta multiplicação das perspetivas não é apenas um exercício formal. Reflete a condição cubana contemporânea, essa esquizofrenia insular onde cada cidadão deve navegar entre várias realidades contraditórias. A barata de Kafka torna-se em Fabelo uma metáfora política, uma criatura que sobrevive nos interstícios do sistema.

O artista leva esta exploração kafkiana às suas instalações monumentais. Quando suspende do teto estas esferas gigantes cobertas de baratas douradas (Mundo K), ele não está apenas a citar o escritor praguense. Cria um universo paralelo onde a metamorfose se torna condição permanente, onde o humano e o inseto se fundem numa dança macabra que lembra tanto os Caprichos de Goya como os delírios burocráticos do O Processo.

Esta fusão entre literatura e artes visuais atinge o seu auge quando Fabelo se debruça sobre García Márquez. Encarregado de ilustrar uma edição especial de Cem Anos de Solidão em 2007, o artista não se limita a desenhar imagens decorativas. Mergulha no realismo mágico como um mergulhador em apneia, emergindo com criaturas impossíveis que parecem ter habitado Macondo desde sempre. As suas mulheres com cabeças de pássaro, os seus rinocerontes miniaturas que atravessam as costas de uma sereia adormecida, tudo isso faz parte da mesma lógica narrativa onde o fantástico se torna quotidiano.

Mas atenção, não pensem que Fabelo é um simples ilustrador genial. O seu trabalho nas páginas do Tratado de Anatomia Humana de Leo Testut revela uma abordagem mais radical. Ao desenhar diretamente sobre estas pranchas anatómicas do século XIX, comete aquilo que ele próprio chama de “sacrilégio” [2]. Contudo, este aparente vandalismo esconde uma operação mais subtil: a transformação do corpo médico em corpo poético, do diagnóstico em delírio, da ciência em ficção.

Tomem Confusão É Facilmente Cometida, onde mãos esqueléticas se metamorfoseiam em figuras de femme fatale e rei demoníaco. Ou Interno, que transforma o sistema nervoso periférico num sábio barbudo ajoelhado. Estes desenhos não são simples grafitis eruditos. Operam uma transmutação alquímica do saber anatómico em visão alucinada, lembrando as colagens de Max Ernst mas com uma precisão cirúrgica que pertence apenas a Fabelo.

O Malecón habanero torna-se na sua obra outro texto a decifrar, uma página urbana onde se escrevem os desejos e as frustrações de todo um povo. Em Malecón Barroco e Contemplação da Pérola, essas frescos monumentais onde mulheres nuas cavalgam o parapeito mítico, Fabelo não pinta simplesmente um lugar. Cartografa um imaginário coletivo, esse teatro ao ar livre onde há décadas se encena o drama cubano.

O artista transforma este passeio marítimo numa cena barroca onde se amontoam corpos voluptuosos, máscaras carnavalescas, caudas demoníacas. Mas olhem de perto: entre as curvas sensuais e as asas de anjo, surgem ganchos, forquilhas, pregos que perfuram violentamente o muro. Esta dualidade entre celebração carnal e ameaça mortal atravessa toda a obra de Fabelo, como se Rubens e Bosch tivessem decidido pintar juntos após uma noite de rum no Malecón.

A sua série Pratos Negros de 2002 leva esta lógica ao absurdo. Pratos de porcelana apresentam “refeições” impossíveis: um elefante confrontado com um caçador, um braço de boneca truncado de onde emerge uma cabeça minúscula, um monte de excrementos acompanhado por uma colher. Estas naturezas-mortas perversas funcionam como haikus visuais, fragmentos de narrativa que recusam constituir-se numa história linear.

A instalação The Weight of Shit (2007) merece atenção. Uma balança comercial vintage sustenta um monte de fezes falsas e uma colher. O título joga com as palavras como Duchamp com seus ready-mades, mas a referência mais óbvia continua a ser a Merda d’artista de Piero Manzoni. Exceto que, onde Manzoni guardava sua merda em caixas herméticas, Fabelo a expõe, pesa, quantifica. É toda a diferença entre a arte conceptual europeia e a necessidade cubana: aqui, até a merda deve ser medida, avaliada, talvez até racionada.

As panelas recicladas ocupam um lugar central nesta economia de sobrevivência. Fabelo empilha-as em totens (Towers, 2007), monta-as em forma de Cuba (Island, 2006), transforma-as em catedral (Cafedral, 2003). Estes objetos usados tornam-se os tijolos de uma arquitetura de resistência, as páginas negras nas quais ele grava rostos anónimos, como se cada panela carregasse a memória de todas as refeições que serviu e de todas aquelas que não pôde servir.

Quando desenha sobre estes fundos de panelas escurecidas por anos de uso, Fabelo não está apenas a reciclar. Ele pratica uma arqueologia do quotidiano, exumando os vestígios de vidas ordinárias para os transformar em ícones. Os rostos que emergem da fuligem não são retratos individuais, mas aparições coletivas, os fantasmas de uma história doméstica que se recusa a desaparecer.

O próprio artista reconhece esta dimensão: “Todos os cubanos são recicladores inatos” [3]. Mas esta reciclagem vai além da simples necessidade material. É uma filosofia, uma poética da transformação onde cada objeto abandonado se torna potencialmente sagrado. Quando Silvio Rodríguez lhe dedica uma canção que fala do “país onde até o lixo é amado”, toca no cerne da abordagem de Fabelo.

Essa transmutação dos resíduos em arte encontra a sua expressão mais monumental em Delicatessen (2015), aquela panela gigante coberta por centenas de garfos exposta no Malecón durante a Bienal de Havana. A obra funciona como um grito silencioso, uma fome coletiva materializada em escultura pública. Os garfos fincados como flechas transformam o utensílio doméstico em monumento guerreiro, a necessidade cotidiana em reivindicação política.

As influências de Fabelo são múltiplas e assumidas. Ele cita frequentemente Dürer, Rembrandt, os mestres holandeses. Mas é com Goya que mantém a relação mais complexa. A exposição MUNDOS: GOYA Y FABELO em Madrid em 2023 não se limita a juntar as obras. Revela uma profunda filiação entre os dois artistas, essa mesma capacidade de transformar o grotesco em sublime, a crítica social em visão alucinada.

Como Goya, Fabelo é um cronista do seu tempo que recusa o realismo plano. Suas criaturas híbridas, suas mulheres-pássaro, seus homens-inseto participam dessa mesma tradição do capricho como forma de verdade. Mas onde Goya permanece ancorado na Espanha dos Iluminismos, Fabelo navega nas águas turvas do século XXI cubano, entre a penúria endêmica e a globalização impossível.

O uso da seda chinesa bordada nas suas pinturas recentes adiciona uma camada extra a este testemunho visual. Os motivos florais preexistentes tornam-se um véu que distancia o espectador do sujeito, tornando as figuras ainda mais desejáveis. Esta técnica recorda as experimentações de Sigmar Polke em lençóis, mas com uma sensualidade toda caribenha.

Em Three-Meat Skewer (2014), três mulheres nuas de salto alto, transformadas em caracol, porco e pássaro, estão espetadas num espeto, prontas a ser consumidas. A imagem é de uma violência frontal, mas a seda bordada confere-lhe uma elegância perversa, como se Sade tivesse encomendado ilustrações a Fragonard.

Esta tensão entre brutalidade e refinamento atravessa toda a obra de Fabelo. As suas instalações mais agressivas (Round, 2015, onde homens nus seguram garfos como fuzis enquanto caminham na beira de um caldeirão gigante) convivem com desenhos de extrema delicadeza em páginas de livros médicos.

O artista rejeita as categorizações fáceis. Quando lhe perguntam se se sente livre para se expressar em Cuba, responde: “Eu sou o meu próprio administrador” [4]. Esta declaração não é uma evasiva diplomática, mas uma reivindicação de autonomia artística. Fabelo não faz arte política no sentido partidário do termo. Faz arte que politiza, que transforma cada gesto criativo num ato de resistência.

As esferas suspensas da instalação Mundos (2005) resumem esta abordagem. Cinco globos cobertos respectivamente com invólucros de balas (Petromundo), ossos (Mundo cero), carvão vegetal, talheres e baratas flutuam no espaço da exposição. Cada esfera representa uma catástrofe potencial: a guerra do petróleo, a extinção, a destruição ambiental, a fome, a sobrevivência pós-apocalíptica. Mas a sua apresentação suspensa, quase graciosa, transforma esses presságios funestos em móbiles cósmicos.

Esta capacidade de transmutar o horror em beleza, o desperdício em tesouro, o quotidiano em mito faz de Fabelo muito mais do que um “Daumier contemporâneo”. É um alquimista visual que opera na fronteira entre vários mundos: entre Cuba e o internacional, entre literatura e artes plásticas, entre crítica social e lirismo pessoal.

A sua obra recente apresentada no Instituto Cervantes sob o título Grafomanía revela a amplitude desta obsessão gráfica. Mais de 150 desenhos em todas as superfícies imagináveis, desde papel kraft até tachos de metal, testemunham o que o artista denomina o seu “vício” pelo desenho. Mas este vício não é uma fraqueza. É o motor de uma criação que recusa hierarquias entre suportes nobres e superfícies improvisadas.

Os rinocerontes que aparecem regularmente no seu trabalho funcionam como totens pessoais. Em Romantic Rhinos (2016), uma sereia dorme pacificamente enquanto um grupo de rinocerontes miniatura atravessa as suas costas. A imagem é de uma poesia enigmática, como se Fabelo tivesse encontrado a forma de reconciliar a força bruta e a graça, a realidade e o sonho.

Esta reconciliação dos contrários talvez defina melhor a arte de Fabelo. Num contexto cubano marcado por contradições e impossibilidades, ele desenvolveu uma linguagem visual capaz de abraçar simultaneamente a alegria e a dor, a abundância e a escassez, a liberdade e a restrição. As suas mulheres voluptuosas com asas de anjos e caudas de demónios encarnam esta dualidade fundamental.

O artista está atualmente a trabalhar numa série de bronzes, material que descreve como “definitivo” mas não definitivamente escolhido. Esta fluidez na escolha dos meios reflete uma abordagem da arte como um processo contínuo de transformação. Em Fabelo, nada está fixo, tudo permanece numa metamorfose permanente.

O seu atelier em Havana tornou-se um local de peregrinação para colecionadores internacionais, embora, como ele nota ironicamente, poucos cubanos possam dar-se ao luxo de comprar arte. Esta situação paradoxal de um artista celebrado mundialmente mas economicamente desligado do seu próprio público local é emblemática das contradições cubanas contemporâneas.

Fabelo não se queixa desta situação. Continua a criar com uma energia que parece inesgotável, transformando cada limitação numa oportunidade criativa. Quando faltam telas, pinta em seda. Quando falta bronze, empilha tachos. Esta adaptabilidade não é apenas técnica, é filosófica.

A exposição “Fabelo’s Anatomy” no Museum of Latin American Art de Long Beach em 2014 marcou a sua primeira exposição individual num museu americano. O título, um trocadilho com “Gray’s Anatomy”, destaca esta obsessão pelo corpo como território de exploração. Mas ao contrário dos desenhos anatómicos que cortam e classificam, os desenhos de Fabelo recompõem e hibridizam.

Em Dream Dough (2017), uma mulher com um penteado de concha repousa num prato de massa, esperando ser devorada juntamente com os fios entrelaçados de massa. A imagem evoca simultaneamente “The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover” de Peter Greenaway e “Delicatessen” de Jeunet e Caro. Mas onde estes filmes usam o canibalismo como metáfora da decadência burguesa, Fabelo faz dele uma celebração ambígua do desejo.

Esta ambiguidade moral atravessa toda a sua obra. As suas personagens nunca são inteiramente vítimas ou algozes, anjos ou demónios. Habitam um espaço intermédio onde as categorias morais tradicionais desmoronam-se. Talvez seja por isso que o artista recusa o rótulo de opositor político. A sua arte não denuncia, revela. Não julga, mostra.

As recentes esculturas de rinocerontes em tamanho real expostas no Kennedy Center (Sobrevivientes, 2023) marcam uma viragem para uma monumentalidade mais afirmada. Estas feras coloridas que invadem o espaço público funcionam como embaixadores de um mundo paralelo, o de Fabelo, onde a sobrevivência passa pela metamorfose permanente.

O artista tem 75 anos este ano, mas a sua obra não mostra qualquer sinal de esgotamento. Pelo contrário, cada nova exposição revela novas facetas do seu universo proteico. Das baratas de Kafka aos rinocerontes de Washington, dos tachos reciclados de Havana às sedas bordadas de Pequim, Fabelo continua a tecer a sua teia, criando uma rede de correspondências visuais que desafia as fronteiras geográficas e culturais.

O que impressiona em Fabelo é esta capacidade de transformar a precariedade em riqueza, a coerção em liberdade. Num mundo das artes frequentemente obcecado pela novidade e ruptura, ele pratica uma arte de continuidade e metamorfose. As suas referências aos mestres antigos não são nostálgicas mas vitais, como se Goya, Bosch e Dürer fossem seus contemporâneos, seus cúmplices nesta enterprise de decifração do mundo.

Fabelo lembra-nos que a verdadeira arte não busca agradar ou chocar, mas revelar. As suas criaturas híbridas, os seus objetos transfigurados, as suas mitologias pessoais não são fugas à realidade mas meios de a penetrar mais profundamente. Num contexto cubano onde a própria realidade parece muitas vezes irreal, o seu realismo mágico aparece paradoxalmente como a forma mais honesta de testemunho.

A obra de Roberto Fabelo permanece difícil de categorizar, e aí está a sua força. Nem puramente cubana nem verdadeiramente internacional, nem completamente figurativa nem totalmente fantástica, nem estritamente política nem simplesmente estética, ocupa um território intermédio, um entre-dois fértil onde as contradições se tornam criativas. Talvez isso seja ser um artista autêntico no século XXI: recusar caixinhas, multiplicar metamorfoses, transformar cada limitação em nova possibilidade.


  1. Peter Clothier, “Fabelo: Art Review”, Huffpost, 2014.
  2. “In Conversation: Roberto Fabelo on Fabelo’s Anatomy”, Cuban Art News Archive, 2014.
  3. “Roberto Fabelo: ‘I love even this island’s trash'”, OnCuba Travel, sem data.
  4. Richard Chang, “Cuban art star makes Long Beach stop”, Orange County Register, 2014.
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Referência(s)

Roberto FABELO (1950)
Nome próprio: Roberto
Apelido: FABELO
Género: Masculino
Nacionalidade(s):

  • Cuba

Idade: 75 anos (2025)

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